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Edward Palmer Thompson: uma vida extra-muros

ALVITO, Marcos. “Edward Palmer Thompson: uma vida extra-muros” In: Brasil de Fato, 2 de abril de 2012.

Edward Palmer Thompson: uma vida extra-muros

Edward Palmer Thompson (1924-1993) parece que veio ao mundo para ser dissidente. Já no final da vida, em uma entrevista, diz à repórter que gostava de uma polêmica

Por Marcos Alvito

Edward Palmer Thompson (1924-1993) parece que veio ao mundo para ser dissidente. Já no final da vida, em uma entrevista, diz à repórter que gostava de uma polêmica. Depois refaz a afirmação: “eu gostava, não gosto mais”. Por fim, já rindo, tem que admitir: “na verdade, continuo gostando”. Com o perdão da expressão, era uma espécie de Che Guevara intelectual.

Nasceu em Oxford mas formou-se em Cambridge. Seus pais eram missionários metodistas e aos dezoito anos ele já era filiado ao Partido Comunista da Grã-Bretanha. Ao ingressar na Universidade de Cambridge participa com destaque do movimento estudantil. Interrompe os estudos para pilotar tanques e lutar na Itália e na África durante a II Guerra Mundial. Seguia o exemplo do irmão mais velho, Frank, que acabou morrendo na Bulgária, para onde tinha ido como voluntário lutar contra o fascimo. Seu pai, embora religioso, era um escritor engajado na luta contra o imperialismo britânico na Índia. Na verdade era um espírito livre capaz de criticar tanto aos ingleses quanto aos indianos, sem falar da própria religião, que em uma carta chegou a chamar de “a maior peste do mundo” (1). Surpreendente para um pastor…

Thompson admite ter herdado esta postura inconformista do seu ambiente familiar:

“Cresci com a convicção de que todos os governos são espúrios e imperialistas, e acreditando que a postura de um indivíduo deva ser sempre hostil ao governo” (2)

Assim que termina a guerra alista-se como voluntário (junto com muitos outros jovens ingleses) para participar da construção da “Ferrovia da Juventude” na Iugoslávia. Foi ali que conheceu sua futura mulher, a também historiadora Dorothy Thompson, em uma atmosfera de trabalho pesado (usavam instrumentos rudimentares), congraçamento e muita crença na possibilidade de mudar o mundo.

Após retornar, vai trabalhar no Departamento de Cursos “extra-muros” da Universidade de Leeds, no norte da Inglaterra, uma região de forte tradição operária. É interessante analisarmos o nome do departamento: “extra-muros”. Sem dúvida deriva da Idade Média, onde as universidades eram enclaves protegidos. Mas transmite muito bem a ideia ainda dominante de uma academia fechada em si mesma, avessa ao “mundo lá fora”. Por exemplo, à época a Universidade de Warwick havia feito um convênio com uma associação educacional operária. Sendo assim, os alunos de Thompson no curso noturno eram gente do povo, donas de casa, funcionários, sindicalistas, professores de segundo grau e sobretudo trabalhadores. Nem todos os professores estavam de acordo com esta política de abertura dos portões da academia. Conta-se que numa das primeiras reuniões de departamento frequentada por Thompson ele respondeu ao ser perguntado pelos seus propósitos: “formar revolucionários”. Ganhou dois aliados e a desconfiança do restante do departamento, inclusive do diretor, que não via com bons olhos o convênio com a Associação Educacional dos Trabalhadores.

O interessante é que Thompson dava aula de Literatura e História. Seu primeiro livro, na verdade, é uma análise do escritor, artista e socialista utópico do século XIX, William Morris. Este amor à literatura era algo comum entre os historiadores marxistas britânicos: além de Thompson, Hobsbawm, Christopher Hill e Raymond Williams entre outros compartilhavam esta paixão. Na verdade, Thompson deu enorme valor às fontes literárias no seu trabalho, como lembra Christopher Hill (3)

“Como Karl Marx, Thompson caminhou na contracorrente ao usar a literatura como fonte para a história social e econômica (…) Quem – senão Thompson – citaria Chaucer, Tristam Shandy, Wordsworth, Dickens e os poetas do século XVIII Stephen Duck e Mary Collier em uma artigo sobre ‘Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial’?”

Thompson leciona durante dezenove anos no curso noturno para trabalhadores em Leeds, dos 22 aos 41 anos. Alto, esguio, bonito e cheio de energia, é lembrado por carinho por seus alunos, que elogiavam sua capacidade de fazê-los sentir que os assuntos dos quais ele tratava tinham relação com a vida desses alunos. Thompson, por sua vez, aprendia muito com os alunos, com a experiência concreta da classe operária, algo que seria muito importante para a elaboração da sua obra-prima The making of the English Working Class. Nas palavras do próprio em um relatório acerca das atividades escolares de 1948-9:

“De modo geral, o tutor acredita ter aprendido mais o que ele transmitiu … e apesar de alguns erros iniciais, a classe aprendeu a trabalhar no espírito desejado na WEA [Worker’s Educational Association – Associação Educacional dos Trabalhadores] – não como o tutor e a audiência passiva, mas como um grupo combinando diversos talentos e fundindo diferentes conhecimentos e experiências para um fim comum.” (4)

Um dos seus alunos na década de 50, Peter Thorton, explica como eram as aulas:

“As aulas de Edward Thompson … tinham esse efeito de fazer com que você percebesse que a história não era algo separado e a parte; ela era uma progressão da qual você era parte. Eu sempre sentia isso. E quando ele tratava de coisas como os tecelões manuais de Yorkshire, os ludistas, o desenvolvimento social da revolução industrial nesta parte do mundo, você muito rapidamente percebia o quanto você e a sua gente eram parte daquilo.” (5)

Além de professor dedicado, ao mesmo tempo rigoroso e gentil, Thompson continua no Partido Comunista da Grã-Bretanha, inclusive tendo um posto na direção da sua região. Em 1956, todavia, ele acabará se desligando do partido. Quando os crimes de Stalin são denunciados por Nikita Kruschev, Thompson e seu amigo John Saville editam um jornal mimeografado criticando a postura do partido. São convidados a sair. Ele tinha 42 anos. A partir daí forma juntamente com companheiros a New Left ou Nova Esquerda Britânica, origem da revista New Left Review. Marxista convicto, Thompson definia-se como um “socialista humanista”. Sair do partido não significava abrir mão do sonho e da luta pela transformação social, muito pelo contrário.

Mas o fato que irá mudar definitivamente a vida de Edward Palmer Thompson será a publicação, em 1963, de The making of the English Working Class, qualificado por Hobsbawm como um vulcão histórico em erupção de 848 páginas. Até a publicação deste livro, Thompson só era conhecido nos restritos círculos da esquerda britânica. O historiador Sergio Silva nos dá uma ideia da importância e do impacto polêmico de The Making (6):

“[Thompson] escreve um livro para desmentir nada mais, nada menos que uma das teses mais importantes e conhecidas de O capital. Para Thompson, o proletariado não seria um resultado da industrialização”

O problema é que Marx não chegou a concluir O Capital. Ficou faltando, exatamente, um prometido volume sobre as classes sociais. De qualquer forma, para Sergio Silva, em O Capital Marx deriva a existência da classe operária da lógica de funcionamento do capital, ou seja, do modo-de-produção capitalista e do próprio nascimento da burguesia. Para Thompson, ainda segundo Sergio Silva (7):

“a lógica do capital (mesmo entendido como relação social) não pode explicar o processo histórico real. Isso não significa, de maneira alguma, que, para ele, o processo histórico não tenha uma lógica. Muito pelo contrário, ele entende justamente que somente a lógica do processo pode explicar o desenvolvimento do capitalismo, o movimento do capital, a relação capitalista de produção”.

De forma bem simples, podemos dizer que a classe operária de Thompson não deriva mecanicamente de um modo-de-produção abstrato e sim de um processo concreto, histórico, em que ela se constitui na luta de classes. A sua constituição, o seu fazer-se a si própria, não pode ser explicado somente pelo econômico, mas tem que levar em consideração as tradições, valores, costumes. Não há mais fronteira entre infra e super-estrutura, não há determinação nem em primeira nem em última instância. Thompson liberta o marxismo da prisão do economicismo.

Do ponto de vista político a tese de Thompson era pura dinamite. Tinha implicações políticas profundas, pois a consciência de classe da classe operária era construída pela mesma no decorrer das suas lutas, desautorizando aqueles (sobretudo os intelectuais do partido) que se acreditavam em condições de servir de farol a iluminar os caminhos dos trabalhadores.

Ao contrário daqueles que buscam em Marx os elementos para contradizer o próprio Marx, Thompson não teve medo de dizer que, em O Capital, Marx havia caído na armadilha do economicismo, cuja origem (esta sim em última instância), deriva da adesão à lógica do capital como a única possível.

O livro é um sucesso imediato, o que surpreende Thompson e Dorothy, acostumados a uma vida pacata de professores de curso noturno: estudar, cuidar da casa e dos filhos de dia e trabalhar à noite, além da militância, é claro. Thompson o escrevera como o resultado de dez anos de magistério, das conclusões e questões a que chegara trabalhando com seus alunos. Ele escreve para eles e para os militantes, não pensa no mundo acadêmico e a forma do livro, com seu texto irônico e sarcástico, é bastante herética em relação à camisa-de-força dos textos emanados das universidades.

Apesar disso ou talvez exatamente por isso, Thompson irá alcançar renome mundial: na década de 1980 chegou a ser o historiador britânico mais citado e um dos cem autores mais citados no mundo em todo o século XX segundo o Arts and Humanities Citations Index (1976-1983).

Em 1965, com 41 anos, recebe o seu primeiro convite para trabalhar “intramuros” na Universidade de Warwick, dirigindo um centro de pesquisa voltado para a História Social. Ali desenvolve pesquisas sobre a Inglaterra no século XVIII e forma uma geração de historiadores como Peter Linebaugh e Douglas Hay, com quem publica Albion’s Fatal Tree: Crime and Society in Eighteenth-Century England. A lua de mel com a academia, entretanto, dura pouco. Em 1971 sai da universidade depois que um grupo de alunos descobre que direção pretendia expulsar um aluno por motivos políticos. Thompson pede demissão e sai atirando: publica ainda naquele ano o livro Warwick University Limited, criticando a comercialização da universidade. Nunca mais ele viria a ter um emprego regular em qualquer universidade. Hobsbawm tem certeza de que isto foi uma retaliação do establishment universitário à rebeldia de Thompson.

Eric Hobsbawm, aliás, seu amigo e colega de longa data no grupo dos “historiadores” Partido Comunista da Grã-Bretanha, o define assim apesar das respeitosas polêmicas que travara com Thompson (9):

“As fadas que o visitaram em seu berço (…) trouxeram-lhe muitos dons: um poderoso intelecto aliado à intuição de poeta, eloquência, amabilidade, charme, presença de espírito, uma voz maravilhosa, uma admirável expressão dramática, que ficou grisalha e fendida com o passar do tempo, carisma e celebridade em profusão.”

Na década de 70, Thompson trabalhou por breves períodos em universidades norte-americanas e continuou sua atividade política, travando ferozes debates no interior do Partido Trabalhista, no qual ingressara a contragosto (por achar necessário à luta política naquele momento). Faz críticas sobretudo ao desrespeito às liberdades civis. Mas também participa das polêmicas no seio do marxismo: em 1978 escreve A miséria da teoria – ou um planetário de erros, uma crítica contundente ao marxismo estruturalista de Althusser então na moda. De Althusser e seus seguidores diz o seguinte “… todos eles são Geschichtenscheissenschlopff, merda a-histórica”. É neste contexto de disputa teórica que deve ser inserido o texto “Folclore, Antropologia e História Social”, originário de uma palestra ministrada por Thompson na Índia em 1977 e que será objeto de uma postagem. Neste mesmo ano, Thompson toma parte em um seminário onde expõe suas diferenças em relação à posição estruturalista, para nossa alegria devidamente filmado e hoje disponível no Youtube (parte 1 de 3): <http://www.youtube.com/watch?v=i3Rk-h9Ugd4&feature=player_embedded#t=0s>

Na década de 1980 ele participa e logo torna-se o maior líder do movimento pacifista e anti-nuclear na Europa. Fazia comícios inflamados nos parques de Londres, atraindo multidões. Ao fim da década de 80 volta a lecionar em universidades, novamente nos Estados-Unidos mas também na Inglaterra (Manchester). Nos últimos anos de vida, já doente, dedica o pouco tempo que lhe restava a preparar publicações de textos escritos há muito tempo, o que redunda na publicação do importantíssimo Costumes em comum, entre outros livros. Além de livros de História, ele escreveu livros de caráter político e militante (Writing by Candlelight p.ex.), um livro de poemas e até mesmo um livro de ficção científica: The Sykaos Papers

Como diz Hobsbawm, Thompson morre aos 69 anos cuidando do seu jardim em Worcestershire. Dois anos antes ele consegue terminar a preparação de Costumes em comum, adiada em duas décadas por conta das lutas políticas em que se engajou. Na introdução, escrita por um Thompson já debilitado pela doença, a força das suas ideias e do sonho com um outro mundo, todavia, continuam intactos:

“Como o capitalismo (ou seja, ‘o mercado’) recriou a natureza humana e as necessidades humanas, a economia política e seu antagonista revolucionário passaram a supor que esse homem econômico fosse eterno. Vivemos o fim de um século em que essa idéia precisa ser posta em dúvida. Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus códigos, expectativas e necessidades alternativas pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades implícita no ser humano. Isso não poderia até nos preparar para uma época em que se dissolvessem as necessidades e expectativas do capitalismo e do comunismo estatal, permitindo que a natureza humana fosse reconstruída sob uma nova forma? É possível que eu esteja querendo demais.”

O mais bonito nesta passagem, a meu ver, é o uso particular que ele faz da expressão “natureza humana”. É claro que Thompson não acredita numa natureza humana fixa, eterna, imutável. O que ele está apontando de forma sutilmente irônica é que a lógica do mercado se enraíza tão profundamente na experiência e na visão de mundo das pessoas que torna-se natural. Estudar outras épocas, outros homens, outras experiências, significa relativizar a lógica sob a qual vivemos, por perceber que existe uma “gama de possibilidades implícita no ser humano”. Para Thompson nós poderíamos nos reconstruir, ou melhor, nós podemos ainda nos reconstruir “sob uma nova forma”.

Um pensamento assim, ao mesmo tempo rigoroso e poético, utópico e combativo, generoso e polêmico, não cabe dentro de muros.

 

 

Notas:

(1) PALMER,Bryan D. Edward Palmer Thompson: posições e oposições. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p.35

(2) Idem, ibidem, p.25

(3) HILL,Christopher. In: THOMPSON,E.P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas,Editora da Unicamp. p.5.

(4) Peter Searby & John Rule and Robert Malcolmson, “Edward Thompson as a teacher: Yorkshire and Warwick”, in J. Rule & R. Malcolmson (eds.), Protest and survival. Essays for E. P. Thompson, London, The Merlin Press, 1993. p.14. Apud BADARÓ, Marcelo, E. P. THOMPSON e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Mimeo. p.24. (no prelo)

(5) Idem, ibidem, p.17 apud BADARÓ, opus cit. p.24.

(6) SILVA,Sergio “Thompson, Marx, os marxistas e os outros” In: THOMPSON,E.P. (2001) As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas,Editora da Unicamp,2001.pp.60-61.

(7) Idem, ibidem, p.63

(8) Idem, ibidem, p.68

(9) HOBSBAWM,E. “E.P.Thompson” In: THOMPSON,E.P. (2001) As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas,Editora da Unicamp,2001.p.16

(10) THOMPSON,Edward P. Costumes em comum. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. pp. 23-24.

 

Fonte: Brasil de Fato, 2/4/12.

 

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