/O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – NOS ÁUREOS TEMPOS

O DRUMMOND NOSSO DE CADA DIA – NOS ÁUREOS TEMPOS

NOS ÁUREOS TEMPOS

Nos áureos tempos

a rua era tanta.

O lado direito

retinha os jardins.

Neles penetrávamos

indo aparecer

já no esquerdo lado

que em ferros jazia.

Nisto se passava

um tempo dez mil.

 

A viagem do quarto

requeria apenas

a chama da vela.

Que longa, se o rosto

fechado no livro.

E dos subterrâneos

a chave era nossa,

como na cascata

a moça indelével

se banhava em nós,

espaço e miragem

se multiplicando

nos áureos tempos.

 

Nos áureos tempos

que eram de cobre

muita noite havia

com chuva soando.

Farto da cidade

um atroz coqueiro

ia para o mato

E vinha o assassino

no pó do correio.

A riqueza da África

se perdia em vento.

E era bem difícil

continuar menino.

 

Chegando ao limite

dos tempos atuais,

eis-nos interditos

enquanto prosperam

os jardins da gripe,

os bondes do tédio,

as lojas do pranto.

O espaço é pequeno.

Aqui amontoados,

e de mão em mão

um papel circula

em branco e sigilo

talvez o prospecto

dos áureos tempos.

 

Nos áureos tempos

que dormem no chão,

prestes a acordar,

tento descobrir

caminhos de longe,

os rios primeiros

e certa confiança

e extrema poesia.

Não me sinto forte

o quanto se pede

para interpretá-los.

O jeito é esperar.

 

Nos áureos tempos

coração-sorriso

meus olhos diamante

meus lábios batendo

a alvura de um cântico.

Do arraial trocado

sinto roupas novas

e escuto as bandeiras

pelo ar, que se entornam.

 

Nos áureos tempos

devolve-se a infância

a troco de nada

e o espaço reaberto

deixará passar

os menores homens,

as coisas mais frágeis,

uma agulha, a viagem,

a tinta da boca,

deixará passar

a relva dos sábados

deixará passar

minha namorada,

deixará passar

o cão paralítico,

deixará passar

o círculo da água

refletindo o rosto…

Deixará passar

a matéria fosca,

mesmo assim prendendo-a

nos áureos tempos.