ADORÁVEL (continuação)
“1. ‘Num belo dia de outono, saí para fazer compras. Paris estava adorável naquela manhã…, etc’
Um mundo de percepções vem bruscamente formar uma impressão ofuscante (ofuscar, é no fundo impedir de ver, de dizer): o tempo, a estação, a luz, a avenida, a caminhada, os parisienses, as compras, tudo isso contido em algo que já tem vocação de lembrança: um quadro, em suma, o hieróglifo da benevolência (assim como Greuze o teria pintado), o desejo bem humorado. Paris inteiro á minha disposição, sem que eu queira alcançá-lo; nem apatia, nem cupidez. Esqueço todo o real que, em Paris, ultrapassa seu charme: a história, o trabalho, o dinheiro, a mercadoria, a dureza das grandes cidades; só vejo nele o objeto de um desejo esteticamente retido. Do alto do Pére-Lachaise, Rastignac desafiava a cidade: Agora, nós dois; eu digo a Paris: Adorável!”
Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.