LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 002
AS TÉCNICAS CORPORAIS (1936), Marcel Mauss (1872-1950)
Para desespero de seu tio Durkheim, Marcel Mauss jamais terminou sua tese de doutorado. Mauss aparentemente se dispersava em vários projetos ao mesmo tempo, tinha aventuras amorosas, envolvia-se com política, gostava de conversar com os estudantes. Na juventude praticara o boxe, gostava de caminhadas pelas montanhas e do ar livre. Sua sala de aula era totalmente diferente: uma mesa em torno da qual se sentavam todos, ele e os estudantes, a debater.
A ironia disso tudo é que Mauss, que nunca virou doutor, é cada dia mais lido e estudado, sobretudo por conta do Ensaio sobre o Dom (1924), obra central da antropologia moderna. O texto que hoje recomendamos é um artigo de 1936: “As técnicas corporais”. Que ele define como “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se dos seus corpos.” Aqui, neste artigo iluminado, a aparente falta de “concentração” de Mauss dá dividendos, exatamente por ele ser capaz de lançar mão de dados e questões de origem diversa: a evolução nas formas de nadar, as maneiras diferentes de ingleses e franceses na hora de cavar trincheiras na guerra, a dificuldade de um regimento inglês em marchar com música francesa, a modificação na maneira de caminhar das francesas a partir da presença do cinema americano, o adestramento do rebolado das moças maori e muito mais… A partir daí ele recupera o termo latino “habitus”, que depois será muito utilizado por Norbert Elias e por Bourdieu. Ele o define: “Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, mas, sobretudo, com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, com os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, ali onde de ordinário vêem-se apenas a alma e suas faculdades de repetição.”
Mauss tinha plena consciência, muito antes da interdisciplinaridade ser louvada em prosa e verso, que aquele tema se situava na fronteira entre disciplinas, terreno selvagem e por isto mesmo, onde se fazem as maiores descobertas. Mauss não tinha medo de se aventurar por estes territórios não mapeados.
Não cabe aqui resumir este artigo que completou 80 anos e que continua a fecundar uma série de pesquisas e caminhos de reflexão. Vale a pena ler.