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Raízes do Brasil – Capítulo 1

RAÍZES DO BRASIL – Capítulo 1

Estou dando um curso chamado Lendo a História do Brasil. Toda 2a. feira, de 19-21h. Na Av. Rui Barbosa, no Flamengo.

Nosso primeiro professor foi Machado de Assis. Em “O Alienista” ele não só pôs em causa o cientificismo positivista da sua época mas procedeu a uma crítica impiedosa do nosso sistema político e da nossa falta de cultura cidadã.

Nosso segundo professor está sendo o historiador Sérgio Buarque de Hollanda com seu Raízes do Brasil. Estou escrevendo um pequeno texto sobre a atualidade deste livro publicado em 1936.

Como talvez sirva para alguém, eis aqui alguns trechos dos prefácios de Antonio Candido e do primeiro capítulo:

AULA 05 – LENDO A HISTÓRIA DO BRASIL – Prof. Marcos Alvito – 30/7/18

“O significado de Raízes do Brasil” – Antônio Cândido (1967) – trechos importantes

– A geração de Antônio Cândido aprendeu “a refletir e a se interessar pelo Brasil” em função de três livros: Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo. Para ele: “São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo.” (p. xi)
– Raízes do Brasil [doravante RB]: “seu êxito de qualidade foi imediato e ele se tornou um clássico de nascença. (…) “O seu respaldo teórico prendia-se à nova história social dos franceses, à sociologia da cultura dos alemães, a certos elementos de teoria sociológica e etnológica também inéditos entre nós. No tom geral, uma parcimoniosa elegância” (p. xii)
– “RB é construído sobre uma admirável metodologia dos contrários, que alarga e aprofunda a velha dicotomia da reflexão latino-americana. (…) A visão de um determinado aspecto da realidade histórica é obtida, no sentido forte do termo, pelo enfoque simultâneo dos dois; um suscita o outro, ambos se interpenetram e o resultado possui uma grande força de esclarecimento.” (p. xiv)
– “Com este instrumento, Sérgio Buarque de analisa os fundamentos do nosso destino histórico, ‘as raízes’” (…) “Trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender os brasileiros.” (p. xv)
– “seu método repousa sobre um jogo de oposições e contrastes, que impede o dogmatismo e abre campo para a meditação de tipo dialético.” (p. xxi)
– “Num momento em que os intérpretes do nosso passado ainda se preocupavam sobretudo com os aspectos de natureza biológica, manifestando, mesmo sob aparência do contrário, a fascinação pela ‘raça’, herdada dos evolucionistas, SBH puxou a sua análise para o lado da psicologia e da história social, com um senso agudo das estruturas.” (p. xxi)
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“Post Scriptum” – Antônio Cândido (1986) – trecho importante

“Talvez tenha sido ele o primeiro pensador brasileiro que abandonou a posição “ ilustrada” , segundo a qual cabe a esclarecidos intelectuais, políticos, governantes administrar os interesses e orientar a ação do povo. Há meio século, neste livro, Sérgio deixou claro que só o próprio povo, tomando a iniciativa, poderia cuidar do seu destino. Isto faz dele um coerente radical democrático, autor de contribuição que deve ser explorada e desenvolvida no sentido de uma política popular adequada às condições doBrasil, segundo princípios ideológicos definidos.
Por isso, repito com realce o que escrevi no prefácio de 1967: uma das forças de Raízes do Brasil foi ter mostrado como o estudo do passado, longe de ser operação saudosista, modo de legitimar as estruturas vigentes, ou simples verificação, pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos integrais, isto é, os que contam com a iniciativa do povo trabalhador e não o confinam ao papel de massa de manobra, como é uso.”

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Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda – trechos importantes

Capítulo I: Fronteiras da Europa (coloquei alguns conceitos em negrito)

“A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.” (p. 3)

“cultura da personalidade” ( altamente desenvolvida entre os ibéricos)  “Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes…” (p. 4)

“É dela que resulta largamente a singular tibieza das formas de organização, de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida.” (p. 4)

“À frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulars da história das nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir. Os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas.” (p. 5)

“Se semelhantes característicos predominaram com notável constância entre os povos ibéricos, não vale isso dizer que provenham de alguma inelutável fatalidade biológica ou que, como as estrelas do céu, pudessem subsistir à margem e à distância das condições de vida terrena.” (p. 8)

“Efetivamente, as teorias negadoras do livre arbítrio foram sempre encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e portugueses. Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrasse pleno reconhecimento.
Foi essa mentalidade, justamente, que se tornou o maior óbice, entre eles, ao espírito de organização espontânea, tão característico de povos protestantes, sobretudo de calvinistas. Porque, na verdade, as doutrinas que pregam o livre arbítrio e a responsabilidade pessoal são tudo, menos favorecedoras da associação entre os homens. Nas nações ibéricas, à falta dessa racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das suas formas características nas ditaduras militares.” (p. 9)

“Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. Sua atitude normal é precisamente o inverso da que, em teoria, corresponde ao sistema do artesanato medieval, onde se encarece o trabalho físico, denegrindo o lucro, o ‘lucro torpe’.” (p. 9)

“A ação sobre as coisas, sobre o universo material, implica submissão a um objeto exterior, aceitação de uma lei estranha ao indivíduo. Ela não é exigida por Deus, nada acrescenta à sua glória e não aumenta nossa propria dignidade. Pode dizer-se, ao contrário, que a prejudica e a avilta. O trabalho manual e mecânico visa um fim exterior ao homem e pretende conseguir a perfeição de uma obra distinta dele.” (p. 10)

“Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insane pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusive de qualquer esforço, de qualquer preocupação.” (p. 10)

“Também se compreende que a carência dessa moral do trabalho se ajustasse bem a uma reduzida capacidade de organização social. Efetivamente o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e, como tal, estimula a organização social dos homens e sustenta a coesão entre eles.“ (p. 10)

“A bem dizer, essa solidariedade, entre eles, existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesse – no recinto doméstico ou entre amigos. Círculos forçosamente restritos, particularistas e antes inimigos do que favorecedores das associações estabelecidas sobre plano mais vasto gremial ou nacional.” (p. 10)

“À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que rara e difícil, a obediência aparece algumas vezes, para os povos ibéricos, como virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência – obediência cega, e que difere fundamente dos princípios medievais e feudais de lealdade – tenha sido até agora, para eles, o único princípio politico verdadeiramente forte. A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem. Não existe, a seu ver, outra sorte de disciplina perfeitamente concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na obediência.” (p. 11)

Fonte: HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. 16.ed.