/Jean-Pierre VERNANT – “A sociedade dos deuses” – esquema-resumo

Jean-Pierre VERNANT – “A sociedade dos deuses” – esquema-resumo

A ESTRUTURA DO TEXTO

89: 0. Tema: a origem dos deuses gregos

89: 1. Interpretações “contestáveis ou prematuras”

1.1. tentativa de explicação total (do tipo deuses masculinos = substrato indo-europeu e deusas = substrato mediterrâneo) impossível separar as informações de que dispomos

89-90:

1.2. Estudo etimológico também não explica, porque tanto num sistema religioso quanto num sistema linguístico o valor do termo não é em função do seu passado e sim do lugar que ocupa no sistema naquele momento.

90: Por exemplo: Zeus, raiz indo-européia do sânscrito dyau’h – brilhar ==> céu MAS Zeus não é uma divindade indo-européia: também é cretense, criança, que morre e ressuscita. Em síntese: Zeus é uma figura complexa, resultado destas fusões

Um outro perigo da etimologia: associar Zeus ao Céu luminoso, à luz diurna e supor que ele e os outros deuses representem forças naturais; o que seria o mesmo que traduzir a religião grega segundo as características do nosso pensamento científico

2. Interpretando Zeus (e a religião grega):

91: 2.1. Zeus = diferentes domínios (para nós): natureza, social, humano e sobrenatural

– A religião grega como um SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO

92: 2.2. O exemplo de Zeus mais de perto

– Zeus = soberania (caráter duplo e contraditório)

93: – Zeus e as atividades humanas (p.ex. rei)

93-4: – Zeus doméstico e familiar

94: – Função integradora e de regulação social dos deuses gregos

3. Os deuses gregos

94-5: 3.1. Não são pessoas

95: 3.2. Outro método de análise: o estudo dos deuses em conjunto, num sistema

96: 3.3. Outro erro: estudar os fatos religiosos como se fossem alheios à vida material e social

3.4. Afastando preconceitos:

– religião para nós: divindade é exterior e transcendente;

96-7: Deus está dentro de nós

97: A esfera religiosa é estreitamente delimitada

3.5. A religião grega e seus deuses:

– Não são exteriores ao mundo e sim parte do cosmos

– Não criaram o mundo: também foram criados

– Não são eternos, apenas imortais,

98: há graus intermediários entre eles e os homens

– Não são todo-poderosos nem oniscientes

98-9: – Há rivalidades e conflitos entre eles; o homem não pode se dedicar a somente um destes polos (p.ex. Hipólito que é punido por se dedicar exclusivamente a Ártemis em detrimento de Afrodite)

99: – Intervém nas questões humanas, estão presentes no dia-a-dia

100: – Zeus é como um rei: move-se em meio a um jogo de forças (do qual faz parte o Destino) que ele tem que levar em consideração

100-1: – A explicação que os homens dão para os acontecimentos tem que levar em consideração os diferentes planos (a ação humana, o Destino, a intervenção divina);

101: – Logo, ao mesmo tempo em que se percebe uma forte presença dos deuses, aos homens cabe a sua própria salvação;

– Essa ambiguidade também existe no que diz respeito às relações entre homens e deuses, entre a orientação geral para se contentar com os limites da humanidade e seitas religiosas e escolas filosóficas que propõem ao homem desenvolver sua parte divina

101-2: – Diversas categorias de seres sobrenaturais, mas classificados de forma diferente pela religião (patamares descontínuos, sem comunicação) ou pela filosofia (maior distância entre deuses e homens, mas ascensão possível)

102: – Polaridade do culto:

Religião cívica e política para integrar o indivíduo aos grupos sociais aos quais pertence

versus

102-3: Religião que cultua divindades que afastam das cidades em direção ao selvagem e à natureza e até desenraizando-os de si mesmos; religião sobretudo de mulheres (não tão bem integradas à pólis) e de tíasos, confrarias e mistérios que são agrupamentos exteriores à organização familiar, tribal e cívica.

103: 4. Conclusão

– Complexidade do SISTEMA RELIGIOSO e das relações entre o sistema religioso e a vida social

– Polaridade e tensão na vida religiosa ==> consciência das contradições do homem, do universo, do mundo divino,

levando a

visão trágica que hoje nos diz algo porque sentimos a ambiguidade da condição humana

– Se os deuses gregos são uma espécie de LINGUAGEM, podemos ouvi-los ainda se nos pusermos a escutá-los.

II. Os deuses não são onipotentes nem oniscientes :

pp.103-4

1. Origem, nascimento dos deuses gregos ? Por mais que remontemos no passado (hoje em dia, com o linear B, até a época micênica), percebemos um SISTEMA RELIGIOSO que já conheceu transformações importantes, tomou empréstimos, onde é muito difícil separar o que é indo-europeu, mediterrâneo, egeu, asiático. Toda tentativa de explicação global como aquela que pretendia relacionar os grandes deuses masculinos a uma origem indo-européia, as divindades femininas a um substrato mediterrâneo, é contestável.

2. O uso da etimologia também não é aconselhável neste caso pois os locutores desconhecem o passado do termo que utilizam, conhecendo apenas o seu valor no SISTEMA GERAL DA LÍNGUA daquela época.

3. Para exemplificar todas estas dificuldades, Vernant irá utilizar o exemplo de Zeus 

Unidade no mito, diversidade no culto

110 – O mito, as criações literárias, insistem sobretudo, no quadro dos deuses, no aspecto da unidade : Homero nos apresenta um Zeus que, como personagem, tem uma relativa unidade. Mas no culto é ao contrário a pluralidade de aspectos do deus que se encontra enfatizada. A religião viva dos gregos não conhece um Zeus único, mas Zeus diferentes, qualificados por epítetos cultuais que os ligam a domínios de atividades definidas

111-2 I. É preciso abandonar os preconceitos modernos para tentarmos entender a religião antiga, não podemos saber a priori se a religião grega tinha a mesma relação com o homem e a sociedade antigas que a religião de hoje para o homem e a sociedade modernas. É preciso distinguir entre as sociedades arcaicas em que a religião domina o conjunto das atividades sociais e as sociedades de hoje em que quase toda a vida coletiva foi laicizada. O fato religioso também tem a sua história.

Os preconceitos modernos

112 – Para nos a divindade é completamente exterior ao mundo : é um deus transcendente que criou o mundo e os homens, mas vive longe deles e não foi criado.

112 – Este deus, estranho a nosso universo, está presente dentro de nós, único lugar onde podemos encontrá-lo, já que é exterior à natureza. É um deus interior e o local de encontro entre o indivíduo e o deus é a alma de cada um. É ao mesmo tempo enquanto criatura humana e indivíduo singular que eu entro em relação com o deus, não enquanto francês, ou membro de uma tal categoria profissional, de uma tal família ou grupo social particular.

112 – Para o homem moderno, a esfera religiosa está estreitamente delimitada. A maior parte das nossas atividades parecem completamente exteriores ao própriamente religioso e como parte do domínio do profano. O religioso está confinado , a vida religiosa tem seu próprio campo e seus objetos próprios.

II. Os deuses gregos não são exteriores ao mundo; são imortais mas não eternos

112-3 – Eles são parte integrante do cosmos. Zeus e os olimpianos não criaram nem o universo físico, nem os seres vivos, nem os homens. Eles mesmos foram criados por potências primordiais que continuam a existir como quadro e substrato do universo : Chaos, Gaia, Eros, Nux, Ouranos, Okeanos. Os deuses cultuados, portanto, são imortais mas não são eternos : eles nem sempre existiram. Estes deuses tomam o poder e Zeus combateu para obter a soberania, mantendo-se graças a aliados, temendo as potências que ele prendeu mas não desarmou, conhece as prerrogativas que ele é obrigado a respeitar. Homero mostra Zeus recuando diante de Nux cheio de um medo reverente e religioso.

113 – A imortalidade dos deuses define-se em contraste com a pobre e efêmera vida dos homens que aparecem para desaparecer como sombras ou fumaça. Os deuses não, vivem em permanente juventude, seu aion, sua vitalidade inesgotável o permite.

113 – Entre deuses e homens há escalões intermediários : os macrobioi iy macraiones : sua existência decorre em miríades e miríades de anos; tal é o caso das ninfas – Nymphai, cujo destino está ligado ao ciclo da vida das árvores onde estas divindades residem.

– Certos deuses podem, por outro lado, ver sua potência e sua vitalidade diminuírem, como Ares que foi até ao ponto de perecer em uma jarra onde dois irmãos haviam conseguido encerrá-lo.

– Certos homens, finalmente, em condições especiais, podem ter acesso ao estatuto divino e viver em companhia dos deuses, até o fim dos tempos, uma existência feliz.

II. Os deuses não são onipotentes nem oniscientes :

113-4 – E.g. Demeter, procurando sua filha Perséfone.

– Helios, que a avisa, não é onisciente, mas o seu olho redondo aberto no alto do céu torna-o uma testemunha infalível pois nada na terra ou na água escapa à luz. Mas Helios nada vê do que se passa nas trevas do futuro. O conhecimento do futuro é reservado a divindades oraculares como Apolo. O poder de Helios, assim como seu saber, estão ligados ao tipo de atividade própria deste astro, estão limitados pela função do deus. Irritado, Helios pode unicamente ameaçar de não mais iluminar o mundo [ou pedir a ajuda de Zeus]; e se ele pretende mudar a rota do seu carro, as Erínias, sem demora, o recolocarão no caminho reto.

III. As potências divinas são de natureza bastante diversa e conhecem rivalidades e conflitos , mas há uma certa unidade :

114 – As disputas entre Zeus e Hera, embora divertidas para os gregos, significavam algo sério : o cosmos lhes aparecia como dilacerado por tensões, contradições, conflitos de prerrogativas e de poder. Eles reconheciam também uma unidade : todos os deuses, remoídos e diversos, Zeus os mantém sob a unidade de uma mesma lei. Mas como a ordem, no universo físico, repousa sobre o equilíbrio de potências opostas, assim como a paz na cidade provém do acordo entre grupos concorrentes, a unidade do cosmos divino é feita de uma harmonia entre potências contrárias.

– O homem não tem o direito de desprezar nenhuma destas potências. Hipólito, por exemplo, ao dedicar-se inteiramente a Ártemis, recusando-se a cultuar Afrodite, rejeita todo um aspecto da condição humana e a deusa irá vingar-se. O erro de Hipólito : não saber reconhecer a parte que em cada um de nós pertence a Afrodite.

IV. Os deuses estão presentes no dia-a-dia 

114: “Presentes no mundo, em suas contradições e conflitos, os deuses intervém nos assuntos humanos. O grego comprova a presença deles no interior de si mesmo, sob a forma de impulsos súbitos, de projetos e ideias que vêem-lhe à

115: cabeça, de pânico ou ardor guerreiro, de um elan amoroso ou pelo sentimento da vergonha.”

V. As barreiras entre homens e deuses, a hierarquia :

115: “Esta presença dos deuses em todo o universo, na vida social e mesmo na vida psicológica dos homens, não significa a ausência de barreiras e mesmo, de uma certa maneira, de barreiras intransponíveis entre a divindade e as criaturas mortais.”

– Os deuses, da mesma forma que os homens, fazem parte de um universo hierarquizado. Da mesma forma que a themis do rei repousa sobre o respeito às timai, às prerrogativas da ordem hierarquizada de que seu reino é solidário e desrespeitá-las significa deslanchar forças que podem colocar em causa a sua soberania, a situação de Zeus é semelhante,

116: no que diz respeito, por exemplo, à questão do destino em Homero : por vezes Zeus parece fixar e decidir o destino, por vezes submeter-se a ele. Talvez o problema esteja, na opinião de Vernant, mal colocado : Homero não conhece um destino fixado de uma vez por todas, a margem de Zeus ou das potências divinas, que são livres para agir. Zeus poderia salvar Sárpedon, seu filho, mas iria desencadear um jogo de forças que acabaria por pôr em causa a ordem do universo e sua própria soberania. [neste caso, as barreiras funcionaram em sentido contrário]

VI. O entrelaçamento de três esferas explicativas : o destino, os deuses, os homens :

116 – Na Ilíada 16,849ss. um guerreiro ao morrer diz, responsabilizando por sua morte :

“Quem me venceu foi o destino sinistro; foi o filho de Leto [Apolo]; foi também, entre os homens, Euforbo.”

117 – Há três explicações diferentes para o fato segundo o nível do real que abordamos. As razões diversas não se excluem porque não estão situadas sob o mesmo plano.

“Compreendemos então como podem coexistir no seio da mesma religião o sentimento muito profundo da presença divina em quase todos os atos da vida humana e o sentimento não menos forte de que sempre cabe aos homens se virarem, de que a salvação depende a princípio deles.”

VII. Ambiguidade : a inferioridade e a parte divina do homem; o reflexo na hierarquia da sociedade divina

117 – Poetas como Homero e Pindaro relembram aos homens infatigavelmente que eles pertencem a uma raça distinta da dos deuses e que o homem não deve tentar igualar-se. Entretanto, em certos meios, seitas religiosas ou escolas filosóficas, recomenda-se ao homem purificar-se para ascender a uma imortalidade feliz, para tornar-se deus.

117-8 – A hierarquia das potências divinas reflete esta ambiguidade, reconhecida pelo culto oficial : theoi , depois daimones, depois heróis, enfim os “bem-aventurados” ou os “fortes”, ou seja, os mortos anônimos cultuados pela família. Há toda uma escala entre deuses e homens, mas é praticamente impossível aos últimos ascender de nivel. Já para os filósofos, a distância entre deuses e homens é aumentada, pois eles rejeitam o antropomorfismo, mas demônios e heróis funcionam como mediadores entre os theoi e os homens. Há, portanto, no pensamento religioso dos gregos, uma tensão entre dois pólos:

“Por vezes ele supõe um mundo divino relativamente próximo dos deuses, as intervenções diretas dos deuses nos assuntos humanos, sua presença ao lado dos mortais, mas em contrapartida a impossibilidade de transpor os escalões entre homens e deuses, de escapar à condição humana. Outras vezes ela admite uma ruptura mais líquida, uma distância maior entre os deuses e os homens, mas em contrapartida ela abre a perspectiva de uma ascensão humana até o mundo dos deuses.”

VIII. A polaridade do culto

118: – Culto cívico e político cuja função essencial é a de integrar aqueles que o realizam nos grupos sociais a que pertencem, qualificando-os como magistrados, cidadãos, pais de família, hospedes, etc e não de retirá-lo de sua vida social para elevá-lo a um plano superior. Neste contexto religioso, a piedade, a eusebeia não aplica-se somente às relações entre os homens

119: e os deuses mas ela abraça todas as relações sociais que um indivíduo pode ter com seus concidadãos, com seus parentes, vivos e mortos, seus filhos, sua mulher, seus hóspedes, os estrangeiros, os inimigos.

versus

119 – Uma religião cuja função é de certa forma inversa e aparece como complementar da primeira : ela dirige-se aos deuses que não são políticos, que não têm templos, que arrebatam seus fiéis longe das cidades, na sua natureza selvagem, e que podem ter por função arrancar os indivíduos das suas relações sociais ordinárias, das suas ocupações habituais, para os expatriar de sua própria vida e como de si mesmos. Este tipo de religião é sobretudo coisa de mulheres, na medida em que elas são bem menos integradas à cidade que os homens, pois elas são precisamente excluídas da vida politica e portanto apropriadas para esta religião “contra-oficial”.

CONCLUSÃO : A COMPLEXIDADE DA RELIGIÃO GREGA E A VISÃO TRÁGICA

119-120 – Complexidade do próprio SISTEMA RELIGIOSO, das relações entre o sistema religioso e a vida social; polaridade e tensão no seio da experiência religiosa, consciência que existem contradições no homem, no universo, no mundo divino. Sem dúvida é necessário relacionar esta concepção religiosa do mundo ao mesmo tempo harmoniosa e dilacerada pelos conflitos com a invenção pelos gregos da tragédia.

120 “Visão trágica, porque o divino é ambíguo e opaco, otimista entretanto pois o homem tem suas próprias tarefas a cumprir. Parece-me que nos constatamos hoje como uma renovação deste sentimento trágico da vida; cada um de nós tem o sentimento da ambiguidade da condição humana. Talvez seja esta a razão pela qual os deuses gregos, os quais eu vos disse que eram de certa forma uma LINGUAGEM, continuam, quando os escutamos, a nos falar.”

VERNANT, Jean-Pierre. “A sociedade dos deuses” In: Mito e sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1992. pp. 89-103.