A semana começa com o curso Lendo o Brasil, 2a. feira, das 19-21h, no Flamengo:
Eis mais um capítulo de Raízes do Brasil:
AULA 08 – LENDO A HISTÓRIA DO BRASIL – Prof. Marcos Alvito – 20/08/18
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda – trechos importantes
Capítulo IV: O semeador e o ladrilhador (coloquei alguns conceitos em negrito; entre colchetes estão os subtítulos que o próprio autor deu)
[A FUNDAÇÃO DE CIDADES COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO]
– “Essa primazia acentuada da vida rural concorda bem com o espírito da dominação portuguesa, que renunciou a trazer normas imperativas e absolutas, que cedeu todas as vezes em que as conveniências imediatas aconselharam a ceder, que cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão.” (p. 95)
– “Em nosso próprio continente a colonização espanhola caracterizou-se largamente pelo que faltou à portuguesa: por uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e politico da metropole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação estáveis e bem ordenados. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a fundação das cidades espanholas na América.” (pp. 95-96)
[ZELO URBANÍSTICO DOS CASTELHANOS: O TRIUNFO COMPLETO DA LINHA RETA]
– “Já à primeira vista, o próprio traçado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõem-lhes antes o acento voluntário da linha reta. (…) O plano regular (…) foi simplesmente um triunfo da aspiração de ordenar e dominar o mundo conquistador. O traço retilíneo, em que se exprime a direção da vontade a um fim previsto e eleito, manifesta bem essa deliberação.” (p. 96)
– “Uma legislação abundante previne de antemão, entre os descendentes dos conquistadores castelhanos, qualquer fantasia e capricho na edificação dos núcleos urbanos.” (p. 96)
– Descreve as minuciosas determinações para o estabelecimento de cidades na América espanhola (pp. 96-97)
– “no plano das cidades hispano-americanas, o que se exprime é a ideia de que o homem pode intervir arbitrariamente, e com sucesso no curso das coisas e de que a história não somente ‘acontece’, mas também pode ser dirigida e até fabricada.” (pp. 97-98)
– “o esforço dos portugueses distingue-se principalmente pela predominância de seu caráter de exploração commercial” x “os castelhanos, ao contrário, querem fazer do país ocupado um prolongamento orgânico do seu.” (p. 98)
– Esta intenção da colonização espanhola pode ser vista, por exemplo, na fundação de universidades em meados do século XVI, levando à criação de 23 universidades durante o período colonial, 6 das quais de primeira categoria. Ali estudaram dezenas de milhares de filhos da América. (p. 98)
– “Dir-se-ia que, aqui, a colônia é simples lugar de passage, para o governo como para os súditos.” (p. 99)
– “E acresce o fato significativo de que, nas regiões de nosso continente que lhes couberam, o clima não oferecia, em geral, grandes incômodos. Parte considerável dessas regiões estava situada fora da zona tropical e parte a grandes altitudes. Mesmo na cidade de Quito, isto é, em plena zona equinocial, o imigrante andaluz vai encontrar uma temperatura sempre igual, e que não excede em rigor à de sua terra de origem.” (p. 99)
[MARINHA E INTERIOR]
– “Os portugueses, esses criavam todas as dificuldades às entradas terra adentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha.” Tomé de Souza, o primeiro governador-geral, estabeleceu duras penas para quem adentrasse o território sem licença para isso: açoites para os peões e vinte cruzados para quem fosse de ‘maior qualidade’ (p. 100)
– Havia motivos estratégicos para isso: evitar o contato dos brancos com indígenas, que podia levar a guerras, exportar o que era produzido nas terras junto ao mar, pois os produtos do sertão custariam a chegar e para isso se incorreria em custos que inviabilizariam a exportação. (p. 101)
– São Paulo, centro de ações de apresamento de índios e de busca de pedras preciosas, foi uma exceção, um povoamento interior com tendências à autonomia: “terra de pouco contato com Portugal e muita mestiçagem com forasteiros e indígenas, onde ainda no século XVIII as crianças iam aprender o português nos colégios como as de hoje aprendem o latim”. (p. 102)
– “No terceiro século do domínio português é que temos um afluxo maior de emigrantes para além da faixa litorânea, com o descobrimento do ouro das Gerais” (…) “E mesmo essa emigração faz-se largamente à despeito de ferozes obstruções artificialmente instituídas pelo governo” (…) Em 1720 chega-se a proibir as passagens para o Brasil, permitidas somente a “pessoas investidas de cargo público” acompanhadas somente de alguns indispensáveis criados. Afora isso, somente bispos, missionários e religiosos que já houvessem professado no Brasil e estivessem retornando a seus conventos. Particulares, somente os que tivessem negócios importantes a tratar, com prazo de retorno fixado (pp. 102-103).
– “Então, e só então, é que Portugal delibera intervir mais energicamente nos negócios de sua possessão ultramarine, mas para usar de uma energia puramente repressive, policial, e menos dirigida a edificar alguma coisa de permanente do que a absorver tudo quanto lhe fosse de imediato proveito. É o que se verifica em particular na chamada Demarcação Diamantina, espécie de Estado dentro do Estado, com seus limites rigidamente definidos, e que ninguém pode transpor sem licença expressa das autoridades.” Os moradores eram todos regidos por leis especiais e governados despoticamente pelo intendente-geral. Havia uma devassa geral permanente e uma teia de calúnias e vinganças (p.103)
– “A circunstância do descobrimento das minas, sobretudo das minas de diamantes, foi, pois, o que determinou finalmente Portugal a por um pouco mais de ordem em sua colônia, ordem mantida com artifício pela tirania dos que se interessavam em ter mobilizadas todas as forças econômicas do país para lhe desfrutarem, sem maior trabalho, os benefícios.” (p. 103)
– “A facilidade das comunicações por via marítima e, à falta desta, por via fluvial, tão menosprezada pelos castelhanos, constituiu pode-se dizer que o fundamento do esforço colonizador de Portugal. Os regimentos e forais concedidos pela Coroa portuguesa, quando sucedia tratarem de regiões for a da beira-mar, insistiam sempre em que se povoassem somente as partes que ficavam à margem das grandes correntes navegáveis, como o rio São Francisco.” (p. 104)
– “No Brasil, a exploração litorânea praticada pelos portugueses encontrou mais uma facilidade no fato de se achar a costa habitada de uma única família de indígenas [tupi-guarani], que de norte a sul fala o mesmo idioma. É esse idioma, prontamente aprendido, domesticado e adaptado em alguns lugares, pelos jesuítas, às leis da sintaxe clássica, que há de servir para o intercurso com os demais povos do país, mesmo os de casta diversa. Tudo faz crer que, em sua expansão ao largo do litoral, os portugueses tivessem sido sempre antecedidos, de pouco tempo, das extensas migrações de povos tupis e o fato é que, durante todo o período colonial, descansaram eles na área previamente circunscrita por essas migrações.” (p. 105)
– “É significativo que a colonização portuguesa não se tenha firmado ou prosperado muito fora das regiões antes povoadas pelos indígenas da língua geral.”, o litoral do Espírito Santo, por exemplo, terra de Aimorés, flagelo dos colonos (p. 106)
– “O padre Manuel da Nóbrega, em carta de 1522, exclamava: ‘[…] de quantos lá vieram, nenhum tem amor a esta terra […] todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir’” (…) “Em outra carta, do mesmo ano, repisa o assunto, queixando-se dos que preferem ver sair do Brasil muitos navios carregados de ouro do que muitas almas para o Céu. E acrescenta: ‘Não querem bem à terra, pois têm sua afeição em Portugal; nem trabalham para a favorecer, como por se aproveitarem de qualquer maneira que puderem; isto é geral’” (p. 107)
– “E frei Vicente de Salvador, escrevendo no século seguinte, ainda poderá queixar-se de terem vivido os portugueses até então ‘arranhando as costas como caranguejos’ e lamentará que os povoadores, por mais arraigados que à terra estejam e mais ricos, tudo pretendam levar a Portugal, e ‘se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como papagaios, aos quais a primeira cousa que ensinam é: papagaio real para Portugal, porque tudo querem para lá’.” (p. 107)
– “Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização. Não convinha que aqui se fizessem grandes obras, ao menos quando não produzissem imediatos benefícios. Nada que acarretasse maiores despesas ou resultasse em prejuízo para a metropole.” (p. 107)
– “O preceito mercantilista, adotado alias por todas as potências coloniais até o século XIX, segundo o qual metropole e colônias hão de completar-se reciprocamente, ajustava-se bem a esse ponto de vista. Assim era rigorosamente proibida, nas possessões ultramarinas, a produção de artigos que pudessem competir com os do Reino.” Por exemplo: trigo do R.Grande do Sul, todas as manufaturas de ouro, prata, seda, algodão, linho e lã; para evitar também, além dos lucros, que os habitantes da colônia se tornassem independentes da metropole. (pp. 107-108)
– Mas era permitida a livre entrada de estrangeiros para trabalhar, por exemplo, no comércio, o que foi aproveitado por espanhóis, italianos, flamengos, ingleses, irlandeses e alemães. Tinham que pagar taxa de 10% e não podiam traficar com os indígenas. (p. 108)
[A ROTINA CONTRA A RAZÃO ABSTRATA. O ESPÍRITO DA EXPANSÃO PORTUGUESA. A NOBREZA NOVA DO QUINHENTOS]
– Os portugueses tinham “uma aversão congênita a qualquer ordenação impessoal da existência, aversão que, entre os portugueses, não encontrava corretivo na vontade de domínio, sujeita aos meios relativamente escassos de que dispunham como nação, ne nem qualquer tendência pronunciada para essa rigidez ascética a que a propria paisagem áspera de Castela já parece convidar os seus naturais e que se resolve, não raro, na inclinação para subordinar esta vida a normas regulares e abstratas.” (pp. 108-109)
– “A fantasia com que em nossas cidades, comparadas às da América espanhola, se dispunham muitas vezes as ruas ou habitações é, sem dúvida, um reflexo de tais circunstâncias. Na propria Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante do princípio do século XVIII notava que as casas se achavam dispostas segundo o capricho dos moradores.” (p. 109)
– “A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para segui-lo até o fim. Raros os estabelecimentos fundados por eles no Brasil que não tenham mudado uma, duas ou mais vezes de sítio, e a presença da clássica vila velha ao lado de certos centros urbanos de origem colonial é persistente testemunho dessa atitude tateante e perdulária.” (p. 109)
– Exemplo de Salvador, construída em lugar escarpado quando perto havia um sítio excelente. (p. 110)
– “A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra ‘desleixo’ (…) implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que ‘não vale a pena…’ “ (p. 110)
[O REALISMO LUSITANO]
– “Pode-se acrescentar que tal convicção, longe de exprimir desapego ou desprezo por esta vida, se prende antes a um realism fundamental, que renuncia a transfigurar a realidade por meio de imaginações delirantes ou códigos de postura e regras formais (salvo nos casos onde estas regras já se tenham estereotipado em convenções e dispensem, assim, qualquer esforço ou artifício). Que aceita a vida, em suma, como a vida é, sem cerimônias, sem ilusões, sem impaciências, sem malícia e, muitas vezes, sem alegria.” (p. 110)
– “Comparada ao delirante arroubo de um Colombo, por exemplo, não há dúvida de que mesmo a obra do grande Vasco da Gama apresenta, como fundo de tela, um bom senso atento a minudências e uma razão cautelosa e pedestre. Sua jornada fez-se quase toda por mares já conhecidos (…) com destino já conhecido, e, quando foi necessário cruzar o Índico, pôde disport de pilotos experimentados, como Ibn Majid.” (p. 110)
– “A expansão dos portugueses no mundo representou sobretudo obra de prudência, de juízo discrete, de entendimento ‘que experiências fazem repousado’. “ (p. 110)
– Em Portugal não houve verdadeiramente uma revolução burguesa, que firmasse os valores desta classe, que adotou o ideário da nobreza, tendo como consequência que: “Nenhuma das ‘virtudes econômicas’ tradicionalmente ligadas à burguesia pôde, por isso, conquistar bom crédito” (…) “Boas para genoveses, aquelas virtudes – diligência pertinaz, parcimônia, exatidão, pontualidade, solidariedade social… – nunca se acomodariam perfeitamente ao gosto da gente lusitana.” (p. 112)
– “A visão do mundo que assim se manifesta, de modo cabal, na literatura, sobretudo na poesia, deixou seu cunho impresso nas mais diversas esferas da atividade dos portugueses, mormente no domínio que em particular nos interessa: o da expansão colonizadora. Cabe observer, alias, que nenhum estímulo vindo de fora os incitaria a tentar dominar o curso dos acontecimentos, a torcer a ordem da natureza. E ainda nesse caso será instrutivo o confronto que se pode traçar entre eles e outros povos hispânicos. A fúria centralizadora, codificadora, uniformizadora de Castela, que tem sua expressão mais nítida no gosto dos regulamentos meticulosos – capaz de exercer, conforme já se acentuou, até sobre o traçado das cidades coloniais -, vem de um povo internamente desunido e sob permanente ameaça de desagregação. Povo que precisou lutar, dentro de suas próprias fronteiras peninsulares, com o problema dos aragoneses, o dos catalães, o dos euscaros [bascos] e, não só até 1492, mas até 1611, o dos mouriscos.” (p. 116)
– “[no caso dos castelhanos] O amor exasperado à uniformidade e à simetria surge, pois, como um resultado da carência de verdadeira unidade.” (p. 117)
– “Portugal, por esse aspecto, é um país comparativamente sem problemas. Sua unidade política, realizara-a desde o século XIII, antes de qualquer outro Estado europeu modern, e em virtude da colonização das terras meridionais, libertas enfim do sarraceno, fora-lhe possível alcançar apreciável homogeneidade étnica” (p. 117)
– “Restava, sem dúvida, uma força suficientemente poderosa e arraigada nos corações para imprimir coesão e sentido espiritual à simples ambição de riquezas. (…) podia o humanista Damião de Góis objetar que os proveitos da mercancia eram necessários para se atenderem às despesas com guerras imprevistas na propagação da fé católica.” (p. 117)
[PAPEL DA IGREJA]
– “Mas essa escusa piedosa não impede que, ao menos nas dependências ultramarinas de Portugal, quando não na propria metropole, o catolicismo tenha acompanhado quase sempre o relaxamento usual. Estreitamente sujeita ao poder civil, a Igreja católica, no Brasil em particular, seguiu-lhe também estreitamente as virtudes e circunstâncias.” (…) Os monarcas portugueses exerceram entre nós “um poder quase discricionário sobre os assuntos eclesiásticos. Propunham candidatos ao bispado e nomeavam-nos com clausula de ratificação pontifícia, cobravam dízimos para dotação do culto e estabeleciam toda sorte de fundações religiosas por conta propria e segundo suas conveniências momentâneas.” (p. 118)
– “A Igreja transformara-se, por esse modo, em simples braço do poder secular, em um departamento da administração leiga ou, conforme dizia ao padre Júlio Maria, em um instrumentum regni.” (p. 118)
– “O fato de nossos clérigos se terem distinguido frequentemente como avessos à disciplina social e mesmo ao respeito pela autoridade legal, o célebre ‘liberalismo’ dos eclesiásticos brasileiros de outrora parece relacionar-se largamente com semelhante situação.” (p. 118)
– “Pode-se acrescentar que, subordinando indiscriminadamente clérigos e leigos ao mesmo poder por vezes caprichoso e despótico, essa situação estava longe de ser propícia à influência da Igreja e, até certo ponto, das virtudes cristãs na formação da sociedade brasileira. Os maus padres, isto é, negligentes, gananciosos e dissolutos, nunca representaram exceções em nosso meio colonial. E os que pretendessem reagir contra o relaxamento geral dificilmente encontrariam meios para tanto. Destes, a maior parte pensria como o nosso primeiro bispo, que em terra tão nova ‘muito mais coisas se ão de dessimular que castigar’.” (p. 119)
Edição utilizada: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.