/LEITURAS DE HISTÓRIA # 002 MEDO BRANCO DE ALMAS NEGRAS (1996), Sidney Chalhoub

LEITURAS DE HISTÓRIA # 002 MEDO BRANCO DE ALMAS NEGRAS (1996), Sidney Chalhoub

LEITURAS DE HISTÓRIA # 002

MEDO BRANCO DE ALMAS NEGRAS (1996), Sidney Chalhoub

Eis o objetivo do texto segundo o autor (pp. 171-172)

“o objetivo desse pequeno artigo é investigar especificamente os significados possíveis do aparente antagonismo entre a população negra da cidade do Rio de Janeiro e os governantes e burocratas republicanos. O interesse aqui é mostrar que havia um sentido cultural profundo na hostilidade dos negros a algumas medidas da administração republicana. Na verdade, talvez seja possível sugerir que um dos sentidos da proclamação da República foi tentar por um dique e anular, ou pelo menos disciplinar, a influência cada vez mais decisiva que as agitações nas ruas da Corte estavam a desempenhar nos rumos que tomavam os conflitos no interior da classe dominante.”

O artigo começa mencionando a preocupação de Rui Barbosa de que a monarquia estaria insuflando os libertos contra os republicanos. Ele tinha medo da mobilização dos negros, que via como despreparados para a vida em sociedade (“vítimas da escravidão”, “libertos inconscientes”). Republicano que era, frustrava-se com a popularidade do Imperador após o 13 de maio.

Depois da Proclamação da República os republicanos irão se vingar: perseguirão capoeiras, bicheiros, cortiços etc. Seria importante levar em conta esta impopularidade da república para entender a Revolta da Vacina em 1904.

Já o Imperador, vai continuar muito popular mesmo depois do 15 de novembro de 1889. O autor menciona um artigo de João do Rio, do começo do século XX em que o jornalista, numa visita à cadeia, constata, entre os negros, a predominância de tatuagens monarquistas. Outro índice é o nome dos cordões de carnaval.

O mais importante, na verdade, é que os negros haviam “instituído uma cidade própria” contra a qual a República se voltou, esta cidade tinha uma dinâmica própria, solapadora da escravidão, arredia e altiva.

Um documento de 1857, já propunha enviar dezenas de africanos livres (que estavam depositados na Casa de Correção) para o Espírito Santo, para afastá-los do “teatro dos seus vícios”, ou seja: a cidade do Rio de Janeiro, vista como cidade negra perigosa e imprevisível, onde podiam estar se tramando conspirações interprovinciais e até internacionais.

Em 1835 o Natal fora marcado pelo medo de uma revolta de escravos das províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais (que não passou de um susto, mas sem dúvida era um reflexo da revolta dos malês em Salvador alguns meses antes)

O fantasma do Haiti (1805) sempre presente em uma cidade em que cerca de metade da população era constituída por escravos e libertos na primeira metade do século XIX.

Os negros lutavam para permanecer neste “teatro urbano privilegiado”, como os que planejaram o assassinato do seu senhor porque ele iria vendê-los (provavelmente) para uma fazenda de café. O senhor, que sobreviveu à tentativa, tenta não perder suas “mercadorias”. Na argumentação do senhor, ele tenta negar (estrategicamente) o saber dos negros, alegando “o embrutecimento dos seus espíritos e falta absoluta de educação”.

É preciso observar que este saber escravo existia, como se depreende da argumentação do escravo Cyriaco que queria permanecer na cidade, mencionando a sua circulação pela cidade inteira.

Havia batalhas entre a cidade codificada e desejada pelos brancos x cidade instituída pelos negros (cidade esconderijo)

Bráulio, 20 anos, que foge da fazenda em Valença e adota na Corte o nome de Braz e a diz-se preto livre, mas acaba na Casa de Detenção, talvez traído pelas cicatrizes nos calcanhares devido aos castigos no tronco.

O meio urbano escondia a condição social dos negros, misturando as identidades de pretos e pardos, escravos ou livres, trabalhadores cativos ou assalariados, amparados em uma ampla rede de relações sociais mas levava à construção de uma suspeição generalizada contra os negros.

Antes de adotar a tática da suspeição generalizada, os administradores da cidade tentaram evitar a transformação da cidade em esconderijo através de proibições: Código de Posturas de 1830 proibia pessoas cativas sentadas à porta de casas de negócio; o de 1838 recomenda aos donos de tavernas que não permitam o ajuntamento de mais de 4 escravos e estabelece que os escravos encontrados das 19h em diante sem carta do seu senhor (datada daquele dia), seriam presos por oito dias.

Consequências dessa movimentação negra: destruir vagarosamente a cidade branca ordenada, mas (p.179): “Ao mesmo tempo, o medo branco dessas almas negras já tentava engendrar a cidade armadilha da suspeição generalizada”.

– “a cidade negra era também solidária. Ela era capaz de buscar e tecer solidariedades de formas diferentes e com objetivos dos mais variados.”

– Pequenos furtos, movidos pela necessidade (latas de goiabada, roupas, galinhas) e que eram vendidos por comerciantes brancos.

– Medidas dos administradores contra a cidade solidária: Código de Posturas de 1830 multa e prisão para quem tivesse casa de negócios que comprasse bens que se julguem furtados; o de 1838 proibia os belchiores (lojas de bens e roupas usadas) sem assinar termo de não comprar coisa alguma a escravos ou a pessoas suspeitas (uma nova e ampla categoria).

– Os administradores demonstravam estar preocupados com seus bens e esta paranóia branca da propriedade é ironizada no famoso lundu do Pai João

– O fantasma baiano (1835) e a moderação dos castigos: Código de Posturas de 1838 pedia aos fiscais que vigiassem “o mau tratamento e crueldades que se costumam praticar com escravos”, possivelmente para evitar o levante em massa; ex. Vizinhos incriminam casal que havia morto a “neguinha” Margarida.

– O medo branco parece ter aumentado após 1870 quando mostra-se que a classe dominante não tolerava mais senhores que supliciavam seus escravos (ex. Escrava Francelina que em 1872 é absolvida por 5×3 da acusação de assassinar sua cruel senhora por envenenamento – este caso mostra haver uma rede de solidariedade: um fiscal da freguesia amigo de Margarida teria comprado o veneno, um plano envolvendo homens livres, um pardo e talvez até sua ex-proprietária)

– Além dessa solidariedade vertical, havia também uma rede horizontal bem mais apertada entre os escravos e negros livres (amante que consegue dinheiro para alforriar parceiro ainda cativo, africanos que se unem para denunciar gatuno, grupos de batuque e dança, manifestações religiosas).

– Chalhoub critica Celso Furtado, que demonstra ter um preconceito contra os libertos muito próximo da visão dos proprietários de escravos do século XIX: sem hábitos de vida familiar, sem se preocupar em acumular bens, retardado mental e com tendência para o ócio; os negros aparecem aqui como obstáculos ao nosso desenvolvimento, desajustados em estado de patologia social.

– O medo que políticos imperiais e republicanos tinham do liberto.

– O medo como uma dimensão oculta da história (ele é sempre negado, recorrendo-se a argumentos lógicos elaborados para combater o que se teme) tão válida para elucidar momentos ou períodos históricos quanto (p.185) “o estudo da acumulação de capital, ou a análise das mudanças nos processos de produção”.

– Os republicanos tiveram um medo profundo da cidade negra, da cidade diferente.

– O medo branco da cidade negra parece ter aumentado com o fim da escravidão e da monarquia, levando à intolerância e truculência dos republicanos frente à cidade negra, movidos pelo medo, em nome do progresso e da ordem, da higiene, da moral, dos bons costumes, da civilização.

– Numa briga de quitandeiras, as duas pretas, uma delas chama a outra de branca (sinônimo de frouxo) e Luiz Edmundo atesta o desafio (com pronúncia negra) aos guardas civis:

‘Eu vou bebê,
Eu vou me embriagá,
Eu vou fazê baruio,
Prá poliça me pegá.
A puliça não qué
Que eu dance aqui,
Eu danço aqui,
Danço acolá’

– Augusto, pardo de 35 anos, foi assassinado por um guarda civil (as diferenças precisam ser eliminadas) em 1909 ao provocá-lo dizendo que o governo não tinha dinheiro mas pagava vagabundos pra ficarem em pé nas esquinas.

– Medidas republicanas como perseguir capoeiras, demolir cortiços, reprimir a vadiagem eram “golpes deliberados contra a cidade negra”

– Esta (p.189) “luta entre modos diferentes de viver deu-se nas ruas” e “A revolta da Vacina em 1904 pode ter sido o último grito de protesto da cidade negra clássica”

Chalhoub, um dos nossos principais historiadores, usa vários tipos de fontes neste artigo: processos criminais (sobretudo), correspondência policial, documentação do Ministério da Justiça, Códigos de Posturas da Câmara Municipal, periódicos e fontes literárias.

Seu método, como sempre, é hermenêutico ou interpretativo, no sentido da antropologia de Geertz: análise do significado político e social de histórias de vida entrevistas em processos criminais

Fonte:
CHALHOUB,Sidney
[1996b] “Medo branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio de Janeiro” In: Discursos Sediciosos,Ano I, no. 1: 169-189.

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