LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 007
IDENTIDADE EM MASHPEE (1988), James Clifford
Era uma vez uma pequena cidade em Massachusetts, a algumas horas ao sul de Boston. Mashpee sempre fora conhecida como “cidade dos índios” e de 1869 a 1964 o conselho da cidade sempre esteve na mão de índios. Acontece que nas décadas de 1950 e 1960 Mashpee acabou se tornando um bom lugar para aposentados, casas de campo, condomínios, empreendimentos imobiliários luxuosos e até dois campos de golfe. O conselho passou a ser dominado pelos brancos e as terras antes livres para caça e pesca agora ostentavam placas de “não ultrapasse, propriedade privada”.
Foi nesse contexto que os que se consideravam indígenas iniciaram, em 1976, um processo na corte federal em nome do Conselho Tribal de Wampanoag. O que a Tribo Wampanoag reivindicava: dois terços do território de Mashpee. Ou seja: eles queriam sua cidade de volta.
Acontece que o estatuto legal de Tribo foi contestado por uma grande empresa imobiliária, pela cidade de Mashpee (representando mais de uma centena de proprietários de terras) e por uma série de companhias: de seguros, negócios de vários tipos etc. O artigo do antropólogo e historiador James Clifford examina sobretudo o julgamento, onde as questões da identidade, da autenticidade, da cultura, da tradição, da validade do oral e do escrito são examinadas de forma contrastiva pelas duas partes. Isso permite a Clifford uma aguda reflexão sobre esses conceitos chave, sobre sua validade e sobre os dilemas que eles contém.
O juiz do processo estabeleceu que o Conselho Tribal deveria provar ter havido continuidade na existência da Tribo Wampanoag e das suas instituições desde 1790, em termos de raça, território, comunidade e liderança. O problema para a causa dos índios é que tinham ocorrido muitas mudanças ao longo do tempo. Desde aproximadamente 1800 não se falava mais na língua indígena. As instituições de governo tribal não estiveram claramente presentes no último século e meio. A maioria dos indígenas havia se convertido à religião Batista. E por fim, ao longo dos séculos eles haviam casado com índios de outros grupos, brancos, negros e outros grupos. Os índios, na verdade, eram participantes ativos na economia e sociedade modernas: eram homens de negócios, professores, pescadores, trabalhadores domésticos, pequenos empreiteiros etc. Ademais, se em um relato confiável de 1859 havia apenas um branco em Mashpee, na década de 1970, quando se deu o julgamento, havia três brancos para cada não-branco (incluídos os índios).
Clifford está interessado neste episódio por ser um “experimento em tradução, parte de um longo conflito histórico e de uma negociação em torno das identidades de ‘índio’ e de ‘americano'”. Ele admite que a Tribo Wampanoag defendia um caso difícil: não tinha terras tribais, não tinha língua própria, não tinha religião claramente distinta, não tinha uma estrutura política clara e indubitável. Mas eles tinham um lugar e uma reputação, pois durante séculos Mashpee fora reconhecida como uma cidade indígena e aquelas mesmas terras haviam sido entregues a um grupo de índios desde 1665. Ou seja, como diz Clifford: “olhados de um jeito, eram índios, olhados de outro, não eram”. Trata-se de problematizar a maneira pela qual se encara a autenticidade cultural e a identidade coletiva.
Quebrando de uma vez o suspense, os índios perderam a ação. Os jurados decidiram que a tribo tinha existido em certo período histórico mas não em todos, o que seria necessário para a Tribo Wampanoag vencer a causa. De certa maneira, isto já era de se esperar na medida em que o juiz estabeleceu de tal forma critérios de continuidade ao longo dos séculos que a tarefa de comprovar a existência de um governo indígena regular e bem estabelecido se tornava impossível. Mas houve também outros fatores, muito bem analisados por Clifford.
Para começar, a oposição entre o oral e o escrito, com a enorme precedência do segundo em relação ao primeiro enquanto prova. Explicando melhor: os advogados dos índios baseavam-se sobretudo na persistência de alguns traços da tradição oral e na etnografia, atestando certas festas e costumes, bem como as entrevistas com indígenas falando de suas memórias ou de suas práticas religiosas e outras. Quanto à questão da conversão ao cristianismo, por exemplo, alegaram que muitas vezes era somente aparente, pois internamente preservavam sua religião, ou, no máximo, adotavam sim o cristianismo, embora à sua maneira (não sendo exclusivistas) e mantendo sua religião. Sobre a mestiçagem, alegaram que era uma tradição indígena e que as crianças nascidas de um casamento misto tinham pleno direito a participar da tribo. Por fim, trazem um especialista em etnologia indígena norte-americana que fala da diferença entre assimilação (quando uma cultura deixa de existir) e aculturação, que segundo ele era comum entre outras tribos dos Estados Unidos.
Por outro lado, os advogados da parte contrária basearam seu relato em documentos escritos, com sua aura de verdade. A partir deles, muito bem selecionados e concatenados, tentaram provar que nunca tinha havido uma tribo indígena em Mashpee, apenas uma comunidade nascida do encontro colonial, uma coleção de índios de diferentes tribos e outras minorias que buscaram refúgio naquele local. Teriam sido dizimados pela doença, convertidos ao cristianismo e progressivamente assimilados à sociedade americana. Eles podiam, no máximo, ser considerados um grupo étnico, como os ítalo-americanos ou os irlandeses-americanos. O depoimento do historiador Francis Hutchins durou cinco dias e aparentemente apenas contou uma história a partir dos fatos, que é claro, foram selecionados, agrupados e interpretados por ele. Para fechar, os advogados das companhias e dos proprietários trouxeram uma socióloga que havia feito uma pesquisa quantitativa com 50 índios residentes em Mashpee a partir da qual ela afirmava que havia pouca familiaridade com mitos e lendas indígenas.
Qual é a opinião de Clifford:
“A ‘tribo’ Mashpee tinha sua maneira de desaparecer e aparecere; mas alguma coisa estava persistentemente, embora não continuamente, lá. O testemunho que ouvi me convenceu de que vida indígena organizada existiu em Mashpee nos últimos 350 anos. Ademais um significativo renascimento e reinvenção da identidade tribal estava claramente se processando. Eu concluí que, se a habilidade de agir coletivamente como índios é atualmente ligada ao status tribal, os índios vivendo em Mashpee e aqueles que retornam regularmente deveriam ser reconhecidos como uma ‘tribo'”
O problema, na visão de Clifford, estava nas premissas compartilhadas pelo juiz e pelo senso comum acerca de determinadas categorias. A primeira delas é o que ele chama de “integridade cultural”. É a ideia de que uma cultura tem que ser totalmente coerente e tão encaixada como as partes de um só organismo. De que não pode ter contradições, mutações ou a emergência de novos elementos. Esta concepção inflexível de cultura não aceita a coexistência de elementos “modernos” e “tradicionais” como ocorria no caso do curandeiro da tribo, que acreditava na Mãe Terra mas trabalhava numa imobiliária. Esta noção de cultura criticada por Clifford, fala em sobrevivência ou morte de uma cultura, mas nunca na sua transformação, no sentido proposto por Sahlis [e já abordado aqui]. Para ele, “os índios de Mashpee fizeram e refizeram a si mesmos através de alianças específicas, negociações e disputas”.
A pergunta final proposta por Clifford é a seguinte: é possível construir outras narrativas para além de morte ou sobrevivência, assimilação ou resistência? Para ele, o que houve em Mashpee foram quatro séculos de derrota, renovação, negociação política e inovação cultural e a história dos índios de Mashpee deveria ser vista como uma série de transações culturais e políticas e não como um tudo-ou-nada de conversão ou resistência.
Em outras palavras, como ele diz, a história dos índios de Mashpee reflete o dilema dos índios norte-americanos: encontrar um caminho diferente através da América capitalista.
P.S: Este artigo está no livro The Predicament of Culture: Twentieth Century Etnography, Literature and Art.Cambridge: Harvard University Press, 1988. As traduções dos trechos citados foram feitas por mim de forma livre. Existe tradução para o Castelhano mas até o presente momento não existe para o Português.