/LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 004 Esboço de uma teoria da prática (1972), Pierre Bourdieu (1930-2002)

LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 004 Esboço de uma teoria da prática (1972), Pierre Bourdieu (1930-2002)

LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 004

Esboço de uma teoria da prática (1972), Pierre Bourdieu (1930-2002)

Pierre-Félix nasce em uma pequena aldeia ao pé dos Pirineus, no seio de uma família de camponeses. Desde cedo, na escola, fez-se notar pelo brilhantismo intelectual e pelo temperamento explosivo. Era um apaixonado jogador de pelota basca e de rugby, um esporte de equipe por excelência. Cedo foi para Paris, estudar em uma escola preparatória para a entrada na prestigiosa École Normale Superieure. Ali o filho de camponeses, que era interno, se sentiu meio deslocado em meio a colegas que chegavam de carro e chofer. Pierre se vingava sendo o melhor aluno em tudo. Entra na École Normale Superieure e se forma em Filosofia, tendo como colegas Jacques Derrida e Emmanuel LeRoy Ladurie (historiador). É convocado para o serviço militar e recebe uma punição disciplinar sendo enviado para a Argélia.

De imediato se interessa pela sociedade argelina e é ali que amadurece e floresce enquanto cientista social. Primeiramente como antropólogo. Pesquisa exatamente as regiões que eram baluartes da guerrilha nacionalista (contra a França). Numa dessas regiões a Cabília, faz uma magnifica etnografia que constitui a primeira parte de um dos seus livros mais importantes: Esboço de uma teoria da prática, publicado em 1972. Por que o livro é tão significativo? Porque é nesta obra que ele apresenta pela primeira vez, de uma forma mais sistematizada, o conceito de habitus, que será fundamental em toda a sua obra. O livro tem duas partes. A primeira é constituída de três capítulos etnográficos: um sobre o sentimento da honra entre os cabile, outro sobre a casa cabile e suas oposições entre masculino e feminino e o último sobre a questão das regras de casamento na teoria e na prática. É a partir destes exemplos práticos que na segunda parte ele desenvolve sua teoria e sobretudo o conceito-chave de habitus.

Na verdade, a proposta de Bourdieu é tentar elaborar uma teoria que fuja de dois extremos. De um lado o subjetivismo, que explica tudo tão somente por conta da vontade individual, como se o contexto, as condições materiais, por exemplo, não existissem, não influenciassem. Aqui ele estava combatendo Sartre e o existencialismo. Do do outro, o objetivismo, que descamba para o determinismo (de várias naturezas), fazendo desaparecer o indivíduo e suas escolhas. Agora a crítica era a Lévi-Strauss e ao estruturalismo. Bourdieu propõe um conhecimento praxiológico, que permitisse superar esta dicotomia indivíduo-sociedade.

Aqui é que entra o conceito de habitus. Ao longo da vida, mas sobretudo na infância, o indivíduo incorpora os valores da sociedade, sobretudo da sua classe social, eles literalmente tornam-se uma segunda natureza. O habitus, encarnado no corpo, é um sistema que entrelaça a maneira de falar, pensar, comer, andar, os gostos musicais, enfim, tudo aquilo que ele chama de “esquemas adquiridos de pensamento e de expressão”. Em um outro livro, Razões práticas, ele dá a seguinte definição:

“Os habitus são os princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que come o operário e sobretudo a sua maneira de comer, o esporte que ele pratica e sua maneira de praticá-lo, as opiniões políticas que são as suas e sua maneira de exprimi-las, diferente sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes de um industrial, mas são também esquemas classificatórios, os princípios de visão e divisão, os gostos diferentes. Eles criam diferenças entre o que é bom e o mau, entre o que está bem e o que está mal, entre o que é distinto e o que é vulgar, etc., mas este não são os mesmos. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode aparecer como distinto para um, pretensioso ou banal para outro, vulgar a um terceiro.”

Notar que existe uma dimensão inconsciente neste processo. Mas existe também o indivíduo e seus projetos e ele irá, de forma consciente ou não, manipular dentro do possível as regras ao seu favor. Um exemplo retirado do capítulo 3 da primeira parte: entre os cabile existem regras de parentesco que obrigam ao casamento entre primos de uma certa natureza. E quando primos que não se encaixam nessa regra estão interessados um no outro? Busca-se acomodar a genealogia para que isso seja possível. A regra não é quebrada, mas só é respeitada simbolicamente e não ao pé da letra.

Claro que tudo isso pediria um espaço maior para ser explicado. O que é importante aqui é deixar a dica para os que têm dificuldade com o conceito de habitus. A leitura deste livro, começando com os estudos etnográficos para só depois passar à teoria, pode ser um ótimo atalho para conhecer melhor a teoria de Pierre Bourdieu.

P.S: Coloquei no Youtube alguns vídeos com aulas em que explico o conceito de habitus e falo um pouco mais da teoria de Bourdieu