LEITURAS DE ANTROPOLOGIA # 008 – Parte 2
O EVOLUCIONISMO (Cont.)
III. O MÉTODO: COMPARAÇÃO E DEDUÇÃO
“Se a lei estiver em alguma parte, estará em toda a parte”
E.B.TYLOR
Já foi comum ver na teoria evolucionista uma mera derivação da teoria darwiniana ao campo das sociedades humanas. Hoje em dia, modificou-se radicalmente esta formulação, a ponto de quase invertê-la: Darwin é que seria fruto de um meio intelectual marcado pela idéia evolucionista. Bastaria citar Klemm e sua divisão em 3 estágios da evolução das sociedades humanas em selvajaria, submissão e liberdade (divisões filosóficas e iluministas !), isto tudo em 1843, mais de uma década antes da Origem das Espécies.
Uma das conquistas científicas mais importantes a influenciar no desenvolvimento do evolucionismo sem dúvida foi a arqueologia pré-histórica, a qual, a partir da década de 1830 – com as descobertas de Boucher de PERTHES, pôs em cheque a explicação bíblica. Três décadas depois, já estava firmemente comprovado que os “europeus anteriormente haviam sido selvagens” (HARRIS: 145). Marvin Harris vai ao ponto de dizer que Tylor e os outros evolucionistas pretendiam dar corpo às séries estabelecidas pela arqueologia.
Outra contribuição importante para reforçar a validade do método comparativo junto aos antropólogos foi dada pelos estudos filológicos de evolução das línguas indo-européias. Em suma, a teoria evolucionista não foi a primeira a lançar mão do método comparativo. Tylor, em Origins of Culture, reconhece a influência de diversas ciências na formulação do modelo científico da “ciência da cultura”: física (pp.2 e 18), biologia (p.14), botânica (pp. 8-9) e estudos de literatura (p.18).
Quanto ao método comparativo, este fundamentava-se em uma premissa: a unidade psíquica do homem. Como veremos adiante, esta crença não impedir a idéia de diferenças raciais como um dos elementos explicativos da teoria evolucionista. Por vezes, na ausência de “dados”, o procedimento podia esgotar-se numa operação essencialmente dedutiva (MORGAN,1980: 176):
“Os grandes princípios que regem a ação humana constituem o guia mais seguro quando, na falta de outros dados, a sua aplicação nos aparece como tendo sido necessária.”
É aquilo que Edward Tylor (OC: 6) chama de “semelhança geral existente na natureza humana” e que permite comparações sem levar em conta tempo e espaço. Acreditavam tão firmemente nesta idéia que por vezes há uma discrepância conspícua entre o dado etnográfico e a conclusão dele derivada. Desta forma, Morgan (1980:174) deduz da maneira pela qual um chefe de 2a. categoria era designado entre os iroqueses que “os bárbaros conheciam as motivações clássicas que estimulam a ambição pessoal” e afirma que este detalhe “Revela também a identidade da natureza humana, seja qual for o nível, baixo ou elevado, em que o homem se encontra na escala do progresso.” Éclaro que não se trata do ponto de apoio central da argumentação de Morgan, mas apenas de um exemplo do alcance global da teoria evolucionista: até a mais ínfima porção de material etnográfico seria explicável através de tal esquema e por sua vez reforçaria a sua “validade”, numa espécie de movimento de um cão mordendo o próprio rabo.
Daremos um outro exemplo de excesso dedutivo. Para Morgan, a gens foi a célula básica de onde formou-se a fratria, logo a tribo e, por último, a confederação. Depois de chegar à conclusão de que a gens era democrática, imediatamente seguia-se a conclusão de que também a fratria, logo a tribo e, como não poderia deixar de ser, a confederação, eram democráticas (MORGAN, 1946: 84). Um outro exemplo de “silogismo evolucionista” (Idem: 104): “o que é verdade para os iroqueses o é para todas as tribos índias”.
Seria injusto, contudo, reduzir o método a uma construção lógica. Afinal, tanto Morgan quanto Tylor não somente realizaram pesquisa de campo (bem mais restrita do que o seu tema, obviamente), mas ambos tiveram preocupação em não se valerem somente das coleções de fatos etnográficos registradas por missionários e viajantes – diga-se de passagem que a erudição de Tylor é colossal. Morgan enviou questionários e, quanto a Tylor, chegou a realizar uma comparação entre mais de trezentos povos, assim resumida por Evans-Pritchard (pp.137-8):
“estudando as suas regras de casamento e descendência, e catalogou-as em tabelas para indagar aquilo a que chamava ‘adesões’ ou correlações encontradas num número suficiente de casos para tornar improvável que a associação fosse fortuita. Este procedimento dar-nos-ia explicações causais de validade universal.”
O conceito de adesões relaciona-se ao chamado “teste da recorrência”, isto é: consciente da desigual qualidade do material etnográfico à sua disposição, Tylor via na repetição de determinados elementos culturais uma prova da validade das conclusões, independentemente de uma análise detalhada de cada fragmento de informação (o que ademais seria impossível). Deste modo, vê-se que havia uma preocupação em aprofundar o rigor científico do método utilizado. Harris (p.157) resume muito bem o que estamos querendo dizer quando destaca que o método comparativo foi usado de forma rude, mas não irresponsável. De qualquer forma, temos a “impressão” de que a busca de cientificidade e de mecanismos para aumentá-la nos parece mais presente em Tylor do que em Morgan. Um pequeno exemplo: Tylor costuma definir com bastante frequência os seus conceitos-chave como cultura ou civilização, “survival”, etc.
Este último termo foi outro instrumento metodológico fundamental, assim definido por Tylor (OC: 16) :
“Sobrevivências são os processos, costumes, opiniões e outros que continuaram a ser praticados pela força do hábito em um estado da sociedade diferente daquele em que eles surgiram, e portanto eles permanecem como provas e exemplos de uma condição anterior da cultura a partir da qual o novo estado se desenvolveu.”
Não seria demais dizer que este conceito abre todo um novo campo à pesquisa antropológica: o estudo do chamado folclore. Agora a antropologia não dependerá somente dos dados da arqueologia, das coleções narrativas de missionários e viajantes e dos ocasionais (e incipientes) trabalhos de campo. Através da observação direta da própria sociedade do estudioso ele poderátentar estabelecer relações e sequências. Morgan, ao contrário de Tylor, não define “survival”, mas aplica a ferramenta metodológica, como no caso da explicação para a existência do nome de família como (MORGAN, 1946: 80-1):
“uma sobrevivência do nome da gens num sistema de filiação masculina onde ele é transmitido pelos homens. A família moderna, na medida em que é designada por um nome, ‚ uma gens não organizada, cujos laços de parentesco foram quebrados e cujos membros estão dispersos por toda a parte onde é possível encontrar o nome de família.”
Ainda neste caso parece ser perceptível haver uma diferença entre Morgan e Tylor. Enquanto o último partia do presente, por exemplo, do sistema decimal, para tentar chegar ao passado, quando o homem contava nos dedos (1960: 21); Morgan faz de certa maneira o trajeto contrário: a sobrevivência, neste caso, nada mais é do que a confirmação de uma construção mais lógica do que investigativa.
De qualquer forma, Morgan proporciona uma base física (de caráter lamarckiano) à idéia das sobrevivências, que seriam transmitidas através da herança cerebral (1946: 77):
“O nosso cérebro, conservado graças à reprodução, é igual ao que pensava no crânio dos bárbaros e dos selvagens dos tempos passados; chegou até nós carregado e saturado das idéias, aspirações e paixões que o tinham ocupado no decurso dos períodos volvidos.”
E mais: para Morgan existiriam germes de pensamento, desenvolvendo-se segundo a lógica natural do próprio cérebro, o que seria mais uma prova da unidade humana (MORGAN,1946: 77).
IV. FUNDAÇÕES (OS RESULTADOS) – CONCLUSÃO
“Entre os antropólogos sociais, o jogo de construir novas teorias sobre ruínas de teorias velhas ‚quase uma doença profissional. Os argumentos contemporâneos são construídos a partir de fórmulas elaboradas por Malinowski, Radcliffe-Brown e Lévi-Strauss, os quais, por sua vez, estavam apenas repensando’ Rivers, Durkheim e Mauss, que se inspiraram em Morgan, Mclennan e Robertson Smith – e assim por diante.” E.R.LEACH
Contra os evolucionistas pesam algumas acusações infundadas, como a de que fossem “unilinearistas” ortodoxos ou de que não concedessem lugar algum à difusão, mas mesmo um defensor explícito como Harris não deixa de afirmar o racismo tanto de Morgan quanto de Tylor (pp.137ss.). A unidade psíquica era apenas potencial, e Tylor dá até mesmo os motivos para o domínio da raça branca (1960: 126):
“Parece razoável a hipótese de que a última que se formou na região temperada foi a raça branca, menos apta do que as outras para resistir ao calor extremado ou viver sem os confortos da civilização, mas dotada da faculdade de elevar-se ao conhecimento científico e governar, faculdades que hão colocado em suas mãos o cetro do mundo.”
E para os que pensam poder ter havido um mal-entendido, o que dizer depois que o mesmo Tylor define raça como (p.97): “uma geração de indivíduos cuja natureza é herdada de ancestrais comuns.” ? Ele fala de diferenças de temperamento entre as raças pp.87 ss.), de aspecto simiesco das raças inferiores (pp.73-4) contrastando com o rosto reto (perfeição geométrica helênica ?) do europeu, que teria um cérebro mais capaz e complexo – dando-lhe vantagem intelectual.
Quanto a Morgan, o caso é ainda mais grave. Um ano antes da publicação do seu trabalho sobre a liga iroquesa, em que ele realiza um soberbo trabalho etnogr fico (ver TRAUTMANN), ele afirma diante do Congresso norte-americano que o negro era uma outra espécie, e mais (apud HARRIS:139):
“Chegou a hora de fixar alguns limites para a reprodução desta raça negra entre nós (…) É uma raça muito fraca intelectualmente para que a deixemos se propagar e estou perfeitamente satisfeito em perceber que o sentimento por esta raça é de hostilidade por todo o norte do país. Nós não temos nenhum respeito que seja por ela.”
Embora alguns anos depois Morgan adote o monogenismo, ele nunca vai abandonar de todo o determinismo racial. Até no caso dos seus adorados iroqueses, cujo volume cerebral é quase o de um ariano médio (1980: 179), ele ir apontar uma grave carência: a ausência do espírito de lucro, móvel da civilização e do progresso (HARRIS: 137).
Todavia, paremos para refletir: Morgan e Tylor são contemporâneos de Gobineau, cuja obra racista Ensaio sobre a desigualdade das raças é publicada em 1853. Muito tempo depois, já em 1906, no início do século XX, portanto, um antropólogo físico norte-americano leva a cabo uma pesquisa racista medindo 152 cérebros de negros e brancos (STOCKING:127). Sendo assim, não nos admiremos que Morgan e Tylor fossem racistas. Admirável, isto sim, ‚o fato de que não fizeram repousar as suas explicações – como era usual na época e continuou a sê-lo durante muito tempo – predominantemente no fator racial, muito pelo contrário.
Concluindo, podemos dizer que Morgan e Tylor lançaram os fundamentos da moderna disciplina antropológica. Toda a ciência é construída a partir de hipóteses explicativas, da sua experimentação e substituição. Suas questões, seus métodos e conceitos representavam à época um enorme avanço e uma mudança radical em comparação com o tipo de explicação existente anteriormente e que ainda tinha na Bíblia seu principal ponto de partida.
Edward Tylor e Lewis Morgan proporcionaram a exploração futura de valiosos ramos da análise antropológica como a questão do parentesco – que se tornará um dos temas centrais da disciplina – ou do animismo, retomado por Lévy-Bruhl, Durkheim …
Se por vezes o estilo de Morgan beira o épico (1980:175-6), como quando do comentário sobre a criação do cargo de general: “foi um grande acontecimento na história do progresso humano” a explicação é bem simples. Ele estava tomado do entusiasmo daqueles que sabem estar participando de um momento revolucionário na história do pensamento.
BIBLIOGRAFIA:
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(1958) The origins of culture. New York: Harper Torchbooks. No texto abreviado como OC.