LEITURAS DE HISTÓRIA # 001 – Parte 1
OS CANGACEIROS, Luiz Bernardo Pericás
O antropólogo Clifford Geertz disse certa vez que não há melhor ocupação para um cientista social do que destruir um medo, logicamente fruto da falta de compreensão. Podemos parodiá-lo e dizer que também deveria ser incluída na tarefa dos cientistas sociais a destruição de lendas românticas. É o que o historiador Luiz Bernardo Pericás faz com o cangaço. Depois da leitura do seu livro, torna-se impossível continuar a acreditar em bobagens como a de que Lampião fosse uma espécie de Robin Hood do sertão, lutasse por sua honra e fosse defensor dos fracos diante de um sistema opressivo encabeçado pelos coronéis.
Começemos do começo. Embora a palavra “cangaço” com o sentido atual já tenha aparecido nas décadas de 1830-40, considera-se que o fenômeno ocorreu propriamente entre 1850 e 1940, data do assassinato de Corisco, “o último cangaceiro”. O livro de Pericás dedica uma atenção maior ao período entre 1890 e 1940, ou seja, trata do cangaço durante a Primeira República e em parte do primeiro governo Vargas, quando atuaram alguns dos mais famosos cangaceiros da história: Antonio Silvino, Sinhô Pereira, Ângelo Roque, Jararaca e os já citados Lampião e Corisco.
O autor considera que, embora já existissem bandos independentes desde a década de 1850 (e até antes), é só por volta de 1890 que o cangaço se torna epidêmico. Apenas nos oito anos entre 1919 e 1927 existiram cerca de 54 bandos diferentes. Ademais, sobretudo no século XX os bandos se profissionalizam passando a viver do cangaço, mudança que é acompanhada de um aumento da “ferocidade” exemplificada na disseminação de torturas e assassinatos com requintes de crueldade.
Neste período, também, o cangaço adquiriu e refinou um estilo próprio, um modo de vida e até mesmo uma estética: indumentária, linguagem, religiosidade, táticas de guerrilha, formas de se relacionar com as mulheres do bando, com os fazendeiros e com a polícia. A composição dos bandos era muito mais heterogênea do que se pensa:
“alguns escravos recém-libertos (ou filhos destes), agricultores, comerciantes, almocreves, foragidos da Justiça, desertores da Força Pública e do Exército, fazendeiros, negros, brancos, cafuzos, caboclos, paraibanos, baianos, potiguares, alagoanos, sergipanos, cearenses e pernambucanos.”
Logo de saída, Pericás trata de não deixar pedra sobre pedra da teoria do “banditismo social” de Hobsbawm. Em primeiro lugar pelo fato do historiador inglês usar um modelo muito geral e universalizante e tentar encaixar os mais diversos casos no seu esquema teórico, sem muita base documental. Questiona também as fontes utilizadas por Hobsbawm: lendas e folclore, ou seja, elementos muito mais imaginários e míticos, cheios de idealizações. Podemos pensar, por exemplo, em Lampião na literatura de cordel, bem diferente do que era o bandido na realidade, como veremos. Para Hobsbawm, estes “bandidos sociais” seriam vistos pela população camponesa pobre como heróis e vingadores, “símbolos do protesto social”, mesmo que de caráter pré-político e inconsciente.
Pericás põe a pique esta interpretação trazendo diversos elementos. Para começar, os grupos de cangaceiros não se originam de elementos que se revoltam e se agrupam. Pelo contrário, normalmente eram formados como grupos de jagunços e guarda-costas de algum coronel e que depois se desprendiam, tornando-se bandoleiros independentes. Pior ainda para a hipótese de Hobsbawm seria o fato de que muitas vezes a liderança destes bandos estava nas mãos de filhos de famílias importantes. Eles começavam liderando uma busca por vingança e acabavam chefiando bandos de cangaceiros.
Corisco era provavelmente neto de um grande fazendeiro de Alagoas. Jesuíno Brilhante era fazendeiro, dono de lavoura e gado, tendo estudado em boas escolas. Antônio Silvino vinha de uma “respeitável família de fazendeiros”. Sinhô Pereira era neto de um barão. Até mesmo Lampião vinha de uma família com um nível social acima da maioria dos sertanejos: seu pai tinha uma pequena fazenda com lavoura e criação de animais, além de também produzir artigos de couro. Há também o caso extremo de Ulisses Liberato, que entre 1918 e 1922 foi um cangaceiro importante nos sertões da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Ulisses era filho de fazendeiro e teve educação esmerada, sabendo falar até inglês e francês! Claro também havia chefes cangaceiros de origem humilde, como o temido Lucas de Feira, ex-escravo que atuou no século XIX.
De qualquer forma, não dá para dizer que filhos de fazendeiros estavam liderando uma revolta contra o sistema…
Ademais, como fica bastante claro ao ler o livro, os cangaceiros não eram outsiders e sim parte do sistema político não-oficial: eram aliados e rivais de coronéis, por quem eram combatidos ou apoiados e ajudados. Lampião, por exemplo, era amigo e recebia proteção, nada mais, nada menos, do que do governador de Sergipe. Vossa Excelência não deixava a polícia agir no interior para não perturbar o cangaceiro. Além disso, fornecia armas modernas e bastante munição ao bandido. Os chefes do cangaço sempre se sentiram muito à vontade para estabelecer acordos e compromissos com a elite: fazendeiros importantes, deputados e como vimos até governadores.
Sendo assim, não há como enquadrar os cangaceiros na teoria de “bandidos sociais”. Havia alguma simpatia por eles junto ao povo somente pelo fato de confrontarem a polícia, que também era violentíssima. Mas quem tinha contato direto com os cangaceiros perdia totalmente esta ilusão. Nem Lampião nem nenhum outro cangaceiro tinha nenhuma preocupação em redistribuir riqueza ou em minorar o sofrimento da população sertaneja. O máximo que Lampião fazia era permitir ao povo continuar o saque das lojas comerciais depois que ele já tivesse delas roubado o que lhe interessava.
Agora, é óbvio que as fileiras do cangaço, daqueles que eram comandados pelos chefes, eram engrossadas graças a uma estrutura latifundiária concentrada e injusta, redundando em condições de vida miseráveis e desesperadoras para boa parte da população sertaneja. Um cangaceiro, que era pago por semana, recebia mais por semana do que dez vezes mais do que um trabalhador rural. E muitos homens ingressavam no cangaço para escapar do serviço militar que se dava em condições lastimáveis e degradantes. E havia também a questão cultural: havia toda uma tradição oral acerca dos cangaceiros, dos seus feitos, reforçada pelo cordel. O próprio Lampião, entre os 9 e 12 anos de idade, organizava grupos de meninos com estilingue para brincarem de cangaceiros. Ou seja, também havia uma certa “aura” em torno do cangaço.
Mas isso é muito relativo. Porque muitas cidades e regiões, que já haviam sido visitadas por eles, tinham verdadeiro pavor aos cangaceiros. E também das volantes, soldados do governo especializados no combate ao cangaço. De ambos os lados a população sertaneja sofria violências inomináveis. Pericás assinala que os cangaceiros impunham a sua autoridade a partir de punições corporais e torturas semelhantes às existentes no Brasil escravista. Se a elite branca dos senhores de escravos antes marcava suas “peças” a ferro e fogo, não espanta que os cangaceiros também o fizessem. No bando de Lampião, Zé Baiano era um conhecido “ferrador”. Quando algumas “damas respeitáveis” de Canindé escreveram uma carta dizendo que usariam cabelos curtos mesmo que Virgulino não quisesse, o bandido envia Zé Baiano para dar-lhes uma lição. Zé Baiano invade a cidade e marca com ferro em brasa o rosto de cada uma delas com o JB, exceto a que estava grávida.
Os cangaceiros também gostavam de usar o “cipó de boi”, um chicote de várias tiras feitas de pênis de boi ressecado ao sol e tratado com sebo de carneiro. As tiras ficam tão duras que se assemelham a um arame de aço flexível. A crueldade não parava por aí: estupros frequentes muitas vezes seguidos de assassinato, olhos arrancados, corte da pele com a pessoa ainda viva e muitos mais que não irei aqui detalhar. Se Lampião tinha um “ferrador” oficial no seu bando, Corisco tinha um “castrador”, mostrando a frequência com que recorria a esta “punição”. Diga-se de passagem que os soldados das volantes eram igualmente violentos e cruéis, não somente com os cangaceiros mas também com a população civil.
Pode-se dizer que a população sertaneja vivia que nem a ostra: entre o mar e a pedra, continuamente aterrorizada em um contexto violência extrema em meio ao conflito incessante entre cangaceiros e volantes.
(Continua)