LEITURAS DE SOCIOLOGIA # 001 – Parte 2
Norbert Elias – O PROCESSO CIVILIZADOR
Tentem perceber a diferença entre duas citações que farei:
A primeira delas provém dos Regulamentos da Corte de Wernigerode e data de 1570 (século XVI) (citado em ELIAS,1990:137):
“O indivíduo não deve, como rústicos que não frequentaram a corte ou viveram entre pessoas refinadas e respeitáveis, aliviar-se sem vergonha ou reserva, na frente de senhoras ou diante das portas e janelas de câmaras da corte ou de outros aposentos. Muito ao contrário, todos devem, em todas as ocasiões e em todos os lugares, comportar-se de modo sensato, cortês, e respeitoso em palavra e gesto .”
Se era necessário dizê-lo aos cortesãos, entende-se porque num manual de etiqueta francês da mesma época (Idem:135) fosse feita a recomendação de, antes de sentar, certificar-se “de que seu assento não foi emporcalhado.”
Vamos agora à segunda citação, que data de dois séculos depois (XVIII), retirada de uma carta de Madame du Deffand (neta) a Madame de Choiseul (avó), escrita em 9 de maio de 1768:
“Eu gostaria de lhe contar, querida avó, como contei ao reverendíssimo abade, a minha enorme surpresa quando um grande saco que a senhora me enviou foi trazido à minha cama na manhã de ontem. Apressei-me a abri-lo, enfiei a mão e encontrei uma boa quantidade de ervilhas verdes… e também um vaso… que rapidamente tirei dali de dentro; era um urinol [penico]. Mas era de tal beleza e magnificência que as pessoas de minha família disseram, a uma só voz, que ele devia ser usado como molheira. O urinol ficou em exposição durante toda a noite de ontem e foi admirado por todos. Quanto às ervilhas… nós as comemos até não sobrar nada.”
Qual a diferença entre estas duas citações ? Além da distância cronológica, de dois séculos, o que as separa é uma transformação “de comportamentos e emoções” (ELIAS,1990:94). Este processo que começa a ocorrer de uma forma lenta mas decisiva, em alguns países do Ocidente (principalmente na França) desde o século XVI, foi chamado por Norbert Elias de “processo civilizador”. A teoria do processo civilizador foi a principal contribuição de Norbert Elias às ciências sociais e à história. O processo civilizador é assim definido por ele (ELIAS & DUNNING,1992:33):
“a norma social de conduta e de sentimentos, sobretudo em alguns círculos das classes altas, começou a mudar de maneira bastante pronunciada a partir do século XVI e em uma direção muito concreta. A regulamentação da conduta e dos sentimentos tornou-se mais estrita, mais diferenciada e abrangente, mas também mais equilibrada e moderada, pois eliminou os excessos de autocastigo e autoindulgência. Esta mudança achou expressão em um novo termo cunhado por Erasmo de Roterdã e que se empregou em muitos outros países como símbolo do novo refinamenteo de costumes: o termo civilidade que logo deu origem ao verbo civilizar. Investigações posteriores assinalaram como provável o fato de que os processos de formação dos Estados*, os agrupamentos de nobres nas cortes dos países europeus estivessem relacionados de alguma forma com essa mudança no código sentimental e de conduta.”
* em particular o submetimento de classes guerreiras a um controle mais estrito
O processo civilizador, em suma, é uma transformação de longa duração daquilo que Elias intitula “estrutura de personalidade”. Novas formas de pensar e de se comportar vão sendo interiorizadas e exteriorizadas. Algumas das características dessa “estrutura de personalidade” incluem
i. “o avanço do patamar do embaraço e da vergonha” (ELIAS, 1990:110)
ii. uma diminuição drástica da tolerância diante de atos violentos
iii. e a supressão de características que os homens da época consideram “animais”.
Este processo pode ser chamado de “refinamento” ou de processo de “civilização” (Ibidem). Ele implica em um maior controle de sentimentos, erigindo barreiras emocionais, por exemplo, em termos da vida sexual, “transferida para trás da cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear.” (ELIAS,1990:180)
Este ponto é importantíssimo: o processo civilizador, o tempo todo Elias insiste, não é positivo nem negativo. Por um lado, por exemplo, resulta em um grau menor de aceitação da violência, mas o outro lado da moeda do autocontrole crescente é que o conflito transfere-se para o interior do indivíduo, para a sua vida psíquica, gerando fortes tensões, pois a possibilidade de exteriorizá-las é cada vez mais cerceada (na verdade, este mecanismo de controle ou, se preferirem, de repressão, já está interiorizado). Este processo civilizador, hoje em dia, impõe aos pais um enorme investimento de tempo, esforço e dedicação na educação de seus filhos, sem o que tudo pode vir abaixo. Sim, pode haver retrocessos, processos contra- ou des- civilizadores.
O processo civilizador, entretanto, ao contrário das mentalidades em muitos historiadores franceses, não ocorre ao sabor dos ventos. Ele é fruto de “Um dinamismo social específico”, o qual “desencadeia outro de natureza psicológica” (Ibidem). Vocês devem estar assustadíssimos: quer dizer que Elias estabelece uma relação causal ? Do social para o psicológico, sim senhor, embora este dinamismo psicológico, uma vez iniciado, passe também a influenciar as mudanças. Mas é preciso salientar que Elias usa do método sociogenético, isto é: ele busca as configurações históricas específicas que levaram ao deslanchar de determinado processo. Para Elias, que se recusa a aceitar dicotomias do tipo indivíduo x sociedade, o ponto de partida é aquilo que ele chama de uma figuração, isto é, a forma pela qual os homens estão interligados e de que forma dependem uns dos outros.
No caso do processo civilizador, os soberanos absolutos encontravam-se em uma situação ímpar, aquilo que Elias chama de o “mecanismo régio”. Por um lado, a nobreza, arruinada pela monetarização da economia e pelo processo de pacificação e monopolização do uso da força pelo rei que lhes retirava a possibilidade do enriquecimento pelo saque. Ademais, o monopólio da força garantia o controle do território e o monopólio da tributação. Um reforçava o outro, pois a arrecadação crescente permitiu ao rei fortalecer ainda mais seu poder militar. De outro, uma burguesia crescentemente poderosa economicamente, mas sem prestígio social, poder militar ou político. A maneira pela qual os nobres demonstravam ao rei a sua sujeição, isto é, que doravante iriam abster-se de ações militares de qualquer tipo, aceitando o monopólio militar do soberano, era através do “refinamento”, isto é, de maneiras afastadas ao máximo possível do ethos guerreiro que antes os governava. A burguesia, por sua vez, ansiosa pelo poder, só podia penetrar na corte em tarefas administrativas (que o rei evitava dar aos nobres para impedir qualquer tentativa de golpe), mas aí dava-se um contato com os costumes considerados mais “civilizados”. O refinamento, portanto, espraiava-se por imitação e não por imposição.
Foi um processo não-planejado, fruto, na verdade, das relações entre os grupos sociais em questão. Não era um processo inexorável, inevitável, foi fruto de um contexto histórico específico. Nem a aristocracia, nem o rei, nem a burguesia, foram a causa, mas sim as relações entre esses grupos. Como ele mesmo resume (ELIAS,1993:195):
“A civilização (…) É posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas na maneira como as pessoas se vêem obrigadas a conviver.”
Resumi, reduzi e empobreci o relato de Elias. A leitura da sua obra é indispensável. Cabe apenas salientar que a demonstração histórica de Elias é impecável, vale por todo um curso de história medieval e moderna.
Creio que o principal obstáculo para o correto entendimento da teoria de Elias reside no uso do termo civilizador, o que acaba por evocar o termo civilização, cujo caráter etnocêntrico, eurocêntrico e evolucionista é hoje execrado. Desfaçamos este equívoco. Elias usa o termo civilização por ter sido o termo largamente utilizado no país onde este processo deu-se primeiramente, a França. Mas da mesma forma que para ele não havia um ponto zero da civilização (pois a vida do homem em sociedade pressupõe alguma forma de controle, externo ou interno, maior ou menor,das emoções) Norbert Elias não acreditava que tivéssemos alcançado a civilização, um estágio superior de desenvolvimento, no Ocidente ou em qualquer outra parte do mundo. Ao concluir o 2o. Volume de O Processo Civilizador, Elias afirma claramente [e vão me perdoar a longa citação, mas ela é absolutamente indispensável] (ELIAS,1993:273-4):
“Só quando essas tensões entre e dentro de Estados forem dominadas é que poderemos esperar tornar-nos mais realmente civilizados. No presente, muitas das regras de conduta e sentimentos implantados em nós como parte integral da consciência, do superego individual, são resquícios de aspirações ao poder e ao status de grupos tradicionais e não têm outra função que a de reforçar suas chances de obter poder e manter a superioridade de status. Elas ajudam membros desses grupos a se distinguirem não apenas através de suas próprias realizações pessoais – que, com moderação, são justificadas – mas através da apropriação monopolista das oportunidades de obter poder, o acesso ao qual é bloqueado a outros grupos interdependentes. Só quando as tensões entre e dentro dos Estados forem dominadas é que haverá a possibilidade de que a regulação das paixões e [da] conduta do homem em suas relações recíprocas seja limitada àquelas instruções e proibições que são necessárias para manter o alto nível de diferenciação e interdependência funcional, sem o qual mesmo os atuais níveis de conduta civilizada na coexistência humana não poderiam ser mantidos, e ainda menos superados. Só então haverá uma possibilidade, também, de que o padrão comum de autocontrole esperado do homem possa ser limitado àquelas restrições que são necessárias a fim de que ele possa viver com os demais e consigo mesmo com uma alta probabilidade de prazer e uma baixa probabilidade de medo – seja dos outros, seja de si mesmo. Só com a eliminação das tensões e conflitos entre os homens é que esses mesmos conflitos e tensões que operam dentro dele podem se tornar mais brandos e menos nocivos às suas probabilidades de desfrute da vida. Neste caso, não precisará ser mais a exceção, talvez venha a tornar-se mesmo a regra que o indivíduo possa alcançar o equilíbrio ótimo entre suas paixões imperiosas, a exigir satisfação e realização, e as limitações a ele impostas (sem as quais continuaria a ser um animal selvagem e um perigo tanto para si mesmo quanto para os demais) – enfim, possa chegar àquela condição a que com tanta frequência nos referimos com palavras altissonantes, como ‘felicidade’ e ‘liberdade’: um equilíbrio mais durável, uma sintonia mais fina, entre as exigências gerais da existência social do homem, por um lado, e inclinações pessoais, por outro. Se a estrutura das configurações humanas, de sua interdependência, tiver essas características, se a coexistência delas, que afinal de contas é a condição da existência individual de cada uma, funcionarem de tal maneira que seja possível a todos os assim interligados alcançar tal equilíbrio, então, e só então, poderão os seres humanos dizer a respeito de si mesmos, com alguma justiça, que são civilizados. Até então, estarão, na melhor das hipóteses, em meio ao processo de se tornarem civilizados. Até então poderão dizer, quando muito: o processo civilizador está em andamento, ou, como o velho d’Holbach: ‘la civilisation…n’est pas encore terminé.’ ” (a civilização… ainda não se completou)
CONCLUSÃO
O que eu acho mais admirável em Norbert Elias não é a sua vida nem a sua obra e sim a reunião das duas. Ele participou de uma guerra, , assistiu à deterioração do clima econômico e político da República de Weimar (há um trecho da entrevista em que fala que todo partido da época, toda corrente política, tinha uma milícia própria e que uns batiam nos outros), testemunhou a ascensão do nazismo, causa do seu exílio forçado e da morte de seus pais. A sua obra, entretanto, sublinha uma realização humana que precisa ser aperfeiçoada e levada adiante: o controle de emoções e pulsões humanas que permita o convívio pacífico. Nestes dias da moda pós-modernista da descrença total, a obra de Elias contém uma dimensão ao mesmo tempo otimista e ética:
“Sempre fiquei espantado ao ver o número de pessoas que perdem a coragem em nossos dias, como se nada mais valesse à pena ser feito; há tantas coisas a fazer, e há tanta gente fazendo qualquer coisa ou que se corrompeu intelectualmente. Minha experiência é que vou vendo pouco a pouco algo de novo, e assim dou um exemplo: pode-se fazê-lo, e isso vale à pena. Acho essa falta de coragem, esse niilismo e essas lamentações absolutamente insuportáveis.” (ELIAS,2001:84)
Por fim, nestes dias de uma academia voltada para o próprio umbigo, ou melhor, para a respectiva bolsa da CAPES ou do CNPQ, Elias aponta um papel para os intelectuais:
“Não se deve perder de vista que durante milênios a religião foi o centro da busca de um sentido para a vida humana. Hoje em dia, para muita gente, a religião deu lugar a um grande vazio, e não temos nenhuma alternativa a lhes oferecer. (…) considero que uma de nossas missões essenciais é não mentir e não criar novas figuras do pai ou da mãe. (…) o niilismo para mim é uma atitude de pessoas que se recusam a se tornar adultas.” (ELIAS, 2001:85)
e, por fim, como últimas palavras, para refletir:
“[da I GM como divisor de águas] Tudo o que vivi então me deu a convicção de que só os homens podem ajudar outros homens e que eu era o único que podia ajudar a mim mesmo.” (ELIAS, 2001:80)