Cap. 19 – A aldeia mágica e o mais inglês dos esportes
A aldeia mágica e o mais inglês dos esportes
To Margaret and Louis, Steve “Highlander”, Mark, Debbie and DJ, Aubrey and all my friends in Cuddesdon
Há manhãs em que você acorda como se fosse um dia qualquer. Você se esquece de que os deuses existem e eles podem aprontar… Aquele domingo foi um dia assim. O mais belo azul tingia o céu e o sol era quente como se Oxforshire fosse em Ipanema. Saí de manhã caminhando por uma dessas estradas inglesas no meio do campo, só mato e flores dos lados, sem vontade de chegar a lugar algum.
Eu estava indo para Cuddeson, uma pequena aldeia onde vivem apenas 430 almas. Mas que almas! Fica a menos de dez quilômetros de Oxford. Numa primeira incursão, alguns dias antes, fora atrás de um pub e ficara sabendo que naquele domingo haveria um jogo de cricket. Cricket, why not? Fui para lá pensando em tirar umas fotos, apreciar o jogo, tentar entender um pouquinho – se é que um brasileiro pode entender o cricket – e depois escrever uma crônica.
Ao chegar os preparativos para a festa estavam a todo o vapor. Fui logo convocado por Margaret para carregar caixas e caixas de cerveja para debaixo das barracas armadas no parque em frente ao campo. Mark e Louis reuniram a rapaziada e montamos mais uma barraca, colocamos umas lonas para proteger a vidraça de um vizinho e estava tudo pronto para o jogo. Ou melhor, quase pronto.
Acontece que o pessoal da outra aldeia não apareceu para jogar. E agora? O industrioso Mark nem pestanejou: vamos formar dois times e jogar entre nós. E dá-lhe de convencer maridos barrigudos e esportistas de poltrona a pegarem no bat (taco de cricket) para uma partidinha. No desespero, até garotos de 14 anos entram na brincadeira. Mas eles estavam precisando de todo mundo, afinal no cricket são onze contra onze e estava difícil de arranjar tanta gente. E foi assim que um brasileiro acabou jogando o mais inglês dos esportes…
Muito antes do futebol tornar-se um esporte propriamente dito, com regras oficiais, federações e campeonatos regulares, o cricket já era um jogo profissional. No século XVIII os proprietários de terras já contratavam certos empregados sobretudo por sua habilidade em bating and bowling (rebater e arremessar). É que o cricket era sobretudo um jogo da aristocracia rural. Claro que hoje o cricket é jogado em grandes estádios, tem suas partidas transmitidas pela televisão e pelo rádio, é analisado em detalhes nos jornais, igualzinho aos outros esportes. Mas a alma do cricket, o verdadeiro espírito deste jogo só habita as aldeias. O próprio ritmo do jogo indica isso. As partidas de cricket duravam quatro, cinco dias. Mesmo no apressado mundo de hoje, uma partida mais curta, de só um dia, começa às duas da tarde e só vai terminar lá pelas sete e meia.
É que no meio da partida os jogadores dos dois times param para tomam chá e comer biscoitos. Nem vou tentar explicar todos os detalhes do jogo. Digamos que é uma mistura de boliche com baseball. Difícil de imaginar, eu sei. Vamos tentar de outro jeito. Uma área gramada oval. No centro do gramado um retângulo com cerca de vinte metros de comprimento e três metros de largura, chamado pitch. Nos dois extremos do pitch, três hastes de madeira (stumps) com cerca de 70 centímetros de altura presas ao solo. Na extremidade dessas hastes, dois outros pedacinhos de madeira na horizontal (hails) que encaixam na parte de cima dos stumps. Esse conjunto das três hastes verticais com dois pedacinhos de madeira unindo-as é chamado de wicket. Como já disse, há onze jogadores em cada time. A bola, que cabe na palma da mão, menor do que uma bola de tênis, é feita de cortiça recoberta de couro e pesa cerca de 160 gramas. É dura feito uma pedra e pode machucar bastante. Quando topo completar o número de jogadores eles me fazem assinar uma declaração dizendo que eu me responsabilizava por qualquer dano ou contusão que eu sofresse durante a partida. Era pegar ou largar e eu resolvi correr o risco.
De trinta a quinze minutos antes da partida começar os dois capitães jogam cara-ou-coroa (toss). Nosso capitão naquele dia já havia jogado cricket em clubes, um sujeito com quase dois metros de altura e com um fortíssimo arremesso. Eu fiquei muito feliz quando soube que iria jogar no time dele. Os capitães, como era de se esperar em um jogo de origem aristocrática, são muito mais importantes do que no futebol. Além de escolher se o time começa rebatendo ou arremessando, são eles quem estabelecem a ordem dos batsmen (rebatedores) e dos bowlers (arremessadores), combinam as dimensões da área de jogo, a duração da partida e tudo o mais. Somente eles podem se dirigir aos dois árbitros da partida (umpires).
O capitão que vencer o toss escolhe se quer começar rebatendo (batting) ou arremessando (bowling). Basicamente, isso equivale a atacar e defender. O bowler (arremessador) fica em uma extremidade do pitch e o batsman (rebatedor) na outra, portando um bastão de madeira. Começa o jogo: o bowler vem correndo e arremessa a bola na direção do wicket defendido pelo rebatedor, que usa uma proteção que vem da canela ao joelho (inclusive) e um capacete. Se o arremessador conseguir derrubar as hastes horizontais do wicket ele elimina o primeiro rebatedor. Isso é importante porque depois que dez batsmen (rebatedores) forem eliminados, completa-se um innings (assim mesmo, com “s”) e os dois times trocam de posição: o time que atacava (rebatia) passa a defender (arremessar) e vice-versa. Quando os dez batsmen do time que agora está rebatendo também forem eliminados, cada um dos times terá completado seu innings. O mais prestigiado tipo de partida, consistindo em um jogo entre duas seleções, chamado de test, normalmente tem a duração de dois innings para cada lado. Isso normalmente demora de quatro a cinco dias, jogando-se seis horas de cricket por dia. Em Cuddeson, é claro que nossos capitães haviam combinado uma partida com uma duração bem menor, mesmo assim jogamos durante algumas horas, com direito a um intervalo em que não bebemos chá (como está na regra) e sim cerveja…
Voltemos à nossa partida. Quando o bowler lança a bola tentando atingir o wicket, o rebatedor tem que evitar isso e, se possível, bater na bola com seu bastão de madeira (bat) e correr até o outro wicket, trocando de posição com um segundo rebatedor que estava à espera do outro lado. Cada vez que os dois batsmen trocam de posição completa-se um run (corrida), ou seja, um ponto. Dependendo de como ele bateu na bola, pode até dar tempo de fazer mais pontos, sempre trocando de posição com o outro rebatedor. O ideal é o batsman conseguir rebater a bola para fora do campo. Se isso acontecer sem ela quicar no gramado ele consegue seis runs (pontos), se ela bater no campo antes de sair ele marca quatro pontos. Cada bowler arremessa seis bolas antes de ser substituído. Este conjunto de seis arremessos é chamado de over. É claro que eu simplifiquei bastante. Há muito mais coisa, mas o objetivo desta crônica não é explicar todas as 42 laws – como são chamadas solenemente as regras do cricket. Para resumir: um time ataca rebatendo, correndo e marcando pontos e outro time se defende arremessando a bola para tentar atingir o wicket e eliminar os rebatedores. Quem marcar mais runs vence o jogo, cuja duração é variável e combinada previamente pelos capitães. Também pode haver empate, mas isso é raro.
O cricket tem sua origem na Inglaterra medieval, da mesma forma que o futebol, embora de início não tenha perturbado tanto as autoridades, devido a seu caráter mais pacífico. De início era praticado principalmente por aristocratas, mas desde o início a plebe vinha assistir e logo começou a jogar também. Os nobres gostavam de jogar apostando muito dinheiro na vitória do seus onze jogadores, não sendo incomuns quantias de até 1.000 guinéus (uma moeda de ouro) por partida. Isso tornava o jogo mais emocionante, inclusive para os espectadores, que começaram também arriscar seu dinheirinho. Os donos de pubs começaram a se interessar por aquela multidão que se juntava em torno do pitch. No século XVII os cervejeiros já faziam campos de cricket junto a seus estabelecimentos. Além de vender comida e bebida, passam a alugar bastões e bolas. O jogo vai se tornando cada vez mais popular e logo chega a Londres, onde aposta-se furiosamente, obrigando as autoridades a limitar o montante apostado para evitar “a desordem e os excessos”. Essa lei data de 1664, mostrando como àquela altura o cricket já era uma febre.
Um século depois e o cricket já tem suas primeiras laws colocadas no papel em 1744. O jogo era tão popular que os milhares de interessados em simplesmente assistir são obrigados a pagar entrada. Normalmente os times eram capitaneados por patronos nobres, que financiavam a equipe, inclusive contratando plebeus para jogar. Ou seja, em pleno século XVIII, o cricket já era um esporte profissional. Mas eram observados os costumes do tempo: os que jogavam por dinheiro eram chamados de players (jogadores), recebendo por partida, além do prêmio por vitória, é claro. Os aristocratas, em campo teoricamente apenas pelo amor ao jogo (se esquecermos das apostas), eram chamados de gentlemen (cavalheiros). Podiam até jogar juntos, mas um player não podia dirigir a palavra a um gentleman. Onde há dinheiro e apostas há corrupção e às vezes as partidas iam acabar no tribunal, cabendo ao juiz decidir quem iria embolsar a quantia estabelecida em contrato. Era coisa muito séria.
Em meados do século XVIII, uma pequena aldeia localizada na região de Hampshire, no sul da Inglaterra, foi a meca do cricket. A aldeia de Hambledon e a região próxima a ela forneciam os melhores jogadores da época, que costumavam bater com certa facilidade verdadeiras “seleções” da Inglaterra reunidas com o intuito de derrotar Hambledon. Milhares de pessoas vinham presenciar estes jogos “esperando pacientemente e assistindo com ansiedade a cada mudança no destino do jogo, como se aquele evento fosse o encontro de dois exércitos para decidir a sua liberdade”, nas palavras de John Nyren. A aldeia de Hambledon passou a ser conhecida em toda a Inglaterra como “O berço do cricket”.
É claro que o time de Hambledon era patrocinado por nobres. Alguns desses gentlemen eram bons o suficiente para empunhar o bastão. Mas o núcleo e a alma do time estava nos humildes habitantes de Hambledon e das aldeias próximas. Os players eram remunerados por partida, mas a maioria deles tinha outra profissão: eram camponeses em sua maioria, mas também havia sapateiros, carpinteiros, donos de pub etc.
Aos poucos, entretanto, a importância econômica que vai adquirindo o esporte faz com que o centro de gravidade do cricket mude para Londres, uma cidade com quase um milhão de habitantes em meados do século XVIII. O processo de cercamento dos campos e a Revolução Industrial levam ao rápido crescimento urbano em detrimento do meio rural. Aos poucos o cricket jogado nas aldeias, embora continuasse a ser praticado, perde em importância para o esporte praticado nas grandes cidades, explorado comercialmente. Os aristocratas formavam clubes de cricket que patrocinavam equipes, cujos jogadores treinavam várias vezes por semana. Afinal, havia sempre muito dinheiro em jogo.
À medida em que a Inglaterra expandia seu império e multiplicava suas relações comerciais por todo o planeta, as colônias e o resto do mundo iam tomando contato com os esportes praticados pela metrópole. Em muitos países, como Índia, Paquistão, Sri Lanka, Austrália e alguns países do Caribe, o cricket tornou-se o esporte mais popular. É também muito importante na Nova Zelândia, África do Sul e Zimbabwe. No total, mais de cem países são afiliados ao International Cricket Council, o órgão que governa mundialmente o esporte.
Os jogos internacionais entre seleções (Tests) começaram a ser disputados no século XIX e a partir daí desenvolveram-se rivalidades esportivas apaixonadas, às vezes com dimensões políticas como no caso da partida entre Índia e Paquistão. A mais tradicional disputa do cricket mundial é confronto entre Austrália (uma antiga colônia britânica) e a Inglaterra. Tudo começou quando a Austrália venceu um disputado jogo contra a Inglaterra no Oval, em Londres, em 1882. Um gozador colocou um obituário satírico no Sporting Times com o seguinte teor:
“Em afetuosa recordação do CRICKET INGLÊS, que morreu no Oval em 29 de AGOSTO de 1882, profundamente lamentado por um grande círculo de entristecidos amigos e conhecidos. Descanse em paz.
Nota: O corpo será cremado e as cinzas levadas para a Austrália.”
Os jornais ingleses começaram a promover a próxima partida entre as duas seleções, a ser realizada na Austrália, como “a busca pelo retorno das Cinzas”. E os ingleses deram o troco naquele mesmo ano. Para revidar a chacota, queimaram um stump, colocaram as cinzas numa urna e as trouxeram para a Inglaterra. Desde então Inglaterra e Austrália se enfrentam anualmente em nome de um vaso contendo cinzas…
Na Inglaterra, pátria-mãe do cricket, ele perde em popularidade para o futebol, é claro, mas é preciso entender que o próprio futebol deve muito ao cricket. O cricket desenvolveu-se e floresceu como esporte organizado um século antes do futebol. Não é coincidência, por exemplo, que o número de jogadores no futebol tenha sido finalmente estabelecido em onze, da mesma forma que no cricket. Quando em 1888 a Football League criou o primeiro campeonato por pontos corridos da história, com doze clubes, inspirou-se no formato já existente no cricket para a disputa entre os condados da Inglaterra. Muitos clubes de futebol importantes, como o Everton, Preston North End, Sheffield Wednesday e Sheffield United surgiram a partir de times de cricket que queriam manter-se preparados durante o inverno. Até quando em um estádio de futebol uma torcida canta provocativamente “Who are you?” os torcedores, mesmo sem saber, estão se referindo à história do cricket. É que quando as public schools começaram a praticar o cricket, os jogos entre elas eram combinados a partir de convites. Só que as escolas mais tradicionais não aceitavam disputar partidas com estabelecimentos mais recentes e menos importantes. Por isso, quando Eton, a escola mais tradicional de todas, foi convidada por Shrewsbury para um jogo de cricket no início do século XIX, respondeu com uma carta lacônica e brutal. Dizia apenas: “Harrow nós conhecemos, Winchester nós conhecemos, mas quem são vocês (who are you)?”.
No século XIX, o cricket era visto por muitos como a expressão da superioridade inglesa sobre outros povos, levando a afirmativas tingidas de xenofobia, como esta editor do Gentlemen’s Magazine, o Reverendo John Mittford:
“O cricket é o orgulho e um privilégio dos ingleses somente. No seu nobre e favorito divertimento, nenhum povo jamais pretendeu penetrar: um francês ou um alemão não saberiam de que lado empunhar o bastão, mesmo que isso lhes fosse dito.”
Ultrapassada essa fase carregada de orgulho imperialista com conotações racistas, a força do cricket para simbolizar a identidade nacional inglesa permaneceu. Para muitos ele é o esporte mais tipicamente inglês, devido a seu ethos bem característico. É o chamado “espírito do cricket”. Segundo a definição que hoje consta do preâmbulo das 42 laws, “spirit of the game” envolve o respeito “aos seus oponentes, ao seu capitão e a sua equipe, ao papel dos umpires (árbitros) e aos valores tradicionais do jogo”. Usa-se a expressão “this is not cricket” (isso não é cricket) para atos contrários ao “espírito do jogo”, estejam ou não previstos na regra. A dimensão profissional do jogo, hoje parte da indústria do entretenimento explorada sobretudo pela televisão, faz com que muitas vezes esse “espírito do cricket” seja posto de lado. Mas essa importância atribuída à ética, somada à ênfase no respeito à lei (pelo menos em teoria), faz desse jogo o mais inglês dos esportes. Afinal, o intervalo para o chá e os biscoitos é obrigatório…
Aquela partida em Cuddeson, jogada em um glorioso dia de sol em um gramado impecável de onde se avistava um lindo vale, deu-me vontade de conhecer um pouco mais sobre o cricket. Acontece que o verão já estava no fim, logo vieram o frio, o vento e a chuva, sem falar nos dias em que o sol se punha antes das cinco horas da tarde. Tive que esperar até o verão seguinte para retomar o contato com o esporte do bastão e da bola, mas isso aconteceu em grande estilo.