Cap.44 – Owls e Blades – A Rainha de Chuteiras
Owls e Blades
A primavera começou com neve. Eu havia saído de casa devidamente preparado para as excentricidades do clima inglês: dois pares de meias grossas, camiseta por baixo, camisa de manga comprida, suéter, casacão e luvas. Mesmo assim eu batia queixo na arquibancada de Hillsborough em pleno sábado à tarde. Estava ali para ver o Sheffield Wednesday encarar o Crystal Palace (de Londres) em uma das rodadas finais da Championship (2a. divisão).
Se há uma cidade na Inglaterra que pode se vangloriar de ser o berço do futebol é Sheffield. Não que o esporte tenha sido inventado aqui, afinal ele foi fruto de um processo secular de elaboração. Mas o clube de futebol mais antigo do mundo foi fundado aqui em 1857: o Sheffield Football Club. Três anos depois já havia quinze clubes de futebol na cidade. Chegaram a estabelecer uma regra comum, que foi adotada em outras cidades antes das regras da Football Association predominarem definitivamente, o que só aconteceu quando os clubes de Sheffield aderiram a elas em 1877.
Em plena efervescência econômica graças à indústria do aço e das minas de carvão, Sheffield vira sua população triplicar desde o início do século XIX, caminhando para as duzentas mil pessoas na segunda metade do dezenove. A classe operária da cidade era famosa por sua resistência à implantação do tempo capitalista, disciplinado e regular: muitos patrões eram obrigados a conviver com o costume da Saint Monday, ou seja, da segunda-feira “sagrada”, em que não se trabalhava. O costume só perdeu força quando foi substituído pela meia-jornada no sábado. Os trabalhadores de Sheffield tiveram atuação importante no movimento cartista e na formação dos primeiros sindicatos. O historiador E.P. Thompson afirma que Sheffield era um centro da propaganda jacobina, favorável ao sufrágio universal. E recorda que em meados do século XIX, os operários da cidade gostavam de cantar um hino em homenagem ao pensador radical Thomas Paine, ao invés do God Save the Queen:
Facts are seditious things
When they touch courts and Kings.
Armies are rais’d.
Barracks and bastilles built,
Innocence charged with guilt,
Blood most unjustly spilt,
God stand amaz’d
(Os fatos são coisas revolucionárias
Quando alcançam cortes e reis.
Exércitos são recrutados.
Barracas e bastilhas erguidas,
A inocência é acusada,
O sangue é mui injustamente derramado,
Deus fica estarrecido)
Talvez por conta das conquistas proporcionadas pela luta política, o operariado da cidade parecia dispor de mais tempo livre do que em outros centros industriais. Em seu livro sobre as condições da classe trabalhadora na Inglaterra, Engels afirma que os salários em Sheffield eram melhores do que a média. Maior renda e mais tempo livre proporcionavam meios e disponibilidade para a prática de esportes. Dentre o operariado da cidade, o futebol e o cricket eram os preferidos.
Como o cricket só podia ser jogado durante o breve verão inglês, muitos clubes de futebol de Sheffield surgiram como uma maneira de manter a turma do taco em forma e reunida durante o inverno. Foi o caso do The Wednesday, um clube de futebol originário de um time de cricket formado por comerciantes que, como o nome indica, costumavam tirar sua folga às quartas-feiras. A nova agremiação, fundada em 1867, logo se torna o clube de futebol mais importante e popular da cidade, cujo nome veio mais tarde a incorporar, tornando-se o Sheffield Wednesday. A hegemonia do Wednesday foi brutalmente abalada vinte e dois anos depois, em 1889, quando o pessoal do Sheffield United, até então somente um clube de cricket, resolve fundar um clube de futebol, de olho na renda da bilheteria. De início tiveram que contratar jogadores profissionais escoceses e logo conseguiram “roubar” alguns jogadores do Wednesday. Estava declarada guerra entre os clubes, sobretudo depois que o United baixou o preço dos ingressos para atrair mais público.
O confronto entre os dois, iniciado em 1890, imediatamente se torna o clássico da cidade, que passa a dividir-se em duas. No segundo ano da rivalidade, 23 mil pessoas amontoaram-se para assistir ao confronto. Quando o United derrota o Wednesday por 5×0, logo são produzidos cartões “fúnebres”: “In loving remembrance of the Sheffield Wednesday football team… who were safely put to rest…at Bramall Lane.” (Em saudosa lembrança do time de futebol do Sheffield Wednesday … que foi posto para dormir o sono eterno… em Bramall Lane (estádio do United). No jogo de volta o Wednesday devolve a goleada, aplicando um 4×1, que também foi devidamente comemorado com um cartão fúnebre. O clima também era carregado dentro de campo: eram comuns as agressões entre os atletas. Em 1892 os jogadores pularam no meio da multidão para participar de uma briga generalizada, que só foi contida por quarenta policiais.
Quando o Wednesday mudou-se para o estádio de Hillsborough no bairro de Owlerton, o clube passou a ter o apelido de The Owls (Os Corujas). Curiosa, mas não surpreendentemente, o antigo apelido da equipe, The Blades (Os Lâminas – referência à indústria do aço), passou a ser adotado pelos rivais do Sheffield United. De qualquer forma, a forma pela qual Owls e Blades referem-se aos rivais é idêntica: ambas as torcidas chamam os adeptos do outro clube de The Pigs (Os Porcos).
O jogo daquela tarde não seria contra o maior rival, mas era supremamente importante para o Wednesday, que estava com a corda do rebaixamento no pescoço na antepenúltima colocação. Já o seu adversário londrino, o Crystal Palace, buscava a zona de classificação para os playoffs e uma possível e sonhada subida para a bilionária Premier League. Quando dois ônibus com os torcedores do Palace chegam ao estádio, escoltados por dois motociclistas da polícia, não há nenhum grande aparato a esperá-los além de dois ou três policiais que assistem ao seu desembarque. A torcida do clube de Londres ia ficar no West Stand, o mesmo onde ocorrera a tragédia de Hillsborough em 15 de abril de 1989, quando morreram 96 torcedores do Liverpool. Ainda hoje, mesmo depois das reformas efetuadas após 1989, a entrada desse setor é acanhada e apertada, já que daquele lado há casas e comércio em volta do estádio.
Ali perto há uma pequena loja dedicada à venda de programas antigos. Mick, o proprietário, diz trabalhar há vinte anos nesse comércio de lembranças futebolísticas. Ele tem programas até de 1913. Eu compro um programa do jogo seguinte à tragédia de Hillsborough. Na capa, há apenas uma foto com uma montanha de flores. Dois torcedores dos Owls, ao saberem que sou brasileiro, fazem questão de me mostrar o programa de quando Pelé jogou ali. Também há torcedores do Crystal Palace dando uma olhada nas caixas de plástico abarrotadas de programas de todas as épocas.
Pergunto a Mick acerca da existência de um pub nas redondezas. Ele avisa que naquela rua só havia “rough pubs” (pubs “da pesada”), só para torcedores do Wednesday e onde eu provavelmente não poderia e não deveria entrar. Disse que estariam fechados e que eu teria que bater na porta. Mordido pela curiosidade, vou a um pub e vejo o aviso de que é preciso passe para entrar. Um dos três enormes seguranças que guardavam a entrada não quer nem conversa e manda logo um “aqui só com o passe”. Isso dá uma medida do grau de rivalidade existente em Sheffield: os pubs fechados para os Owls são uma medida preventiva para evitar a presença de Blades.
Em uma cidade de forte tradição operária como Sheffield, a vida social sempre girou em torno dos pubs. Havia pelo menos um ao lado do portão de cada fábrica. A forja do aço e a extração de carvão eram trabalhos pesados e perigosos. Era preciso celebrar ao fim de cada dia. Além disso, os trabalhadores achavam que a cerveja era fortificante, além de limpar a garganta e matar a sede. Até hoje a cerveja de Sheffield é uma das mais fortes e apreciadas da Inglaterra. Nos primeiros tempos, a maioria dos clubes da cidade tinha sua sede em um pub e alguns deles, como o próprio Wednesday, começaram jogando no campo do estabelecimento. Posteriormente, as associações de torcedores surgiram e elegeram como local de encontro os pubs. Celebrar a masculinidade e o companheirismo com pints e pints de cerveja trouxe seus problemas e ainda hoje Sheffield tem sérios índices de alcoolismo. Deve ser por isso que não se vende cerveja no interior do estádio do Wednesday, ao contrário da maioria dos clubes da Inglaterra.
Desisto da cerveja e compro um Fish and Chips (Peixe com batatas fritas) bem embrulhado no papel como deve ser. É o melhor que já comi na Inglaterra, apesar de ter sido devorado no banco de um parque próximo, exposto à fúria dos elementos: muito frio, um sol “gozador” que aparecia mas não esquentava nada e um vento bom pra soltar pipa. Noto que há torcedores do Crystal Palace passeando por ali tranquilamente. E não havia policiamento por perto.
Castigado pela primavera inglesa, resolvo entrar mais cedo no estádio. Agora já não há grades separando os torcedores do campo como em 1989, quando os torcedores do Liverpool morreram esmagados e sem conseguir respirar comprimidos junto às cercas que impediam uma possível invasão do campo. Hoje em dia, com lugares sentados, marcados e numerados, seria impossível ocorrer uma superlotação fatal como no dia da tragédia. Apesar de ter seu nome para sempre ligado ao dia mais triste da história do futebol inglês, Hillsborough é um belo estádio. Foi inaugurado em 1914, com um projeto do famoso Archibald Leitch, um escocês responsável pelo desenho de dezenas de estádios daquela época. Na marca registrada de Leitch, um belo frontão decora a parte de cima do South Stand, uma arquibancada lateral à esquerda de onde estou. Mas não é uma questão propriamente estética: as linhas são simples, com quatro stands formando um retângulo em torno do gramado, mas ali dentro sente-se aquele ambiente de tensão típico de um verdadeiro estádio de futebol.
Meia hora antes da partida, o estádio ainda está praticamente vazio. Estou sentado atrás do gol, na área mais popular, onde costumam ficar os torcedores mais fiéis. Alguns jogadores, com roupa de treino, fazem aquecimento dentro do campo. Com o uniforme de listras verticais azul e brancas, calções e meias pretas, o indefectível mascote do clube, uma gigantesca coruja, bate bola com algumas crianças. Quando chego ao “meu” lugar, meu vizinho, um senhor alto, meio careca e com alguns cabelos totalmente brancos, me avisa que estou no lugar errado. Como tem season-ticket ele se senta sempre ali e adverte que o meu assento pertence a um sujeito que vem de Birmingham para ver os Owls.
Depois que mudo de lugar começamos a conversar. Com muito orgulho e os olhos brilhando, diz que a primeira vez que veio a Hillsborough foi em 1951. Acha que era melhor quando o pessoal ficava em pé: “somente aqui nessa arquibancada ficavam 28 mil pessoas”. Nesse tempo o estádio – hoje com capacidade para pouco menos de 40 mil pessoas – chegou a comportar um público de mais de 70 mil. Resignado, afirma que o Wednesday já teve bons times, mas nesta temporada está sofrendo com muitos desfalques por conta de contusões. Apesar disso, faz questão de lembrar, ganharam do United por dois a zero. Quando pergunto o que aconteceria se um filho dele quisesse torcer para os Blades ele nem responde: só faz uma careta. Um sujeito na fileira da frente vira a cabeça imediatamente ao ouvir a palavra Blades.
Pouco antes dos jogadores entrarem em campo começa a nevar, viva a Primavera! Quando o jogo começa aquela arquibancada já está bem cheia. Com menos de trinta segundos a torcida já xingou o técnico adversário de wanker e bastard. Neil Warnock foi técnico do rival United durante sete anos e a sua presença no banco do Crystal Palace esquentou os ânimos da torcida da casa. Também não é para menos: quando dirigia os Blades, Warnock afirmou a uma revista que se alguma vez se tornasse o técnico do Wednesday ele compraria um bando de pernas-de-pau, faria o clube ser rebaixado e depois se mudaria para a Cornualha (Cornwall), uma região afastada no extremo sudoeste da Inglaterra. No programa do jogo, o técnico do Wednesday, Brian Laws, tentava motivar a torcida lembrando que Neil Warnock ficaria bem feliz se pudesse derrotar o time da casa “mantendo a gente lá embaixo da tabela”. A coluna do capitão do time, Lee Bullen, bota mais lenha na fogueira: “Essa tarde, o estádio de Hillsborough ‘acolhe’ um treinador que a maioria dos torcedores do Wednesday adora odiar.”
Para animar ainda mais a galera, bem no começo do jogo, os Owls já pressionando em busca do primeiro gol, um zagueiro do Crystal Palace dá um carrinho tão decidido que, além de derrubar o atacante do Wednesday também leva ao chão o bandeirinha, que fica estendido à espera de atendimento médico. Essa eu nunca havia visto antes. A torcida da casa é quente: muita gente levanta durante o jogo, reclama de faltas, gesticula, xinga. Não cantam nenhuma música para o Crystal Palace. Mas pelo menos três vezes eles cantam uma música que celebra o “Boxing Day Massacre”, quando derrotaram o United por quatro a zero. Acontece que o jogo foi há muito tempo, em 1979, quando os dois clubes amargavam a terceira divisão. Naquela época ir a um jogo na casa do adversário era uma espécie de rito de passagem para os adolescentes de Sheffield, uma forma de provar o seu valor. Owls e Blades tinham fama em todo o país de serem torcidas “barra pesada”.
A força dessa rivalidade entre Owls e Blades explica a dedicação e a fidelidade dos torcedores de ambos os clubes, a despeito da ausência de grandes conquistas. Há mais de cinquenta anos que nenhum dos clubes de Sheffield vence a primeira divisão ou a F.A. Cup. Mesmo assim, em uma cidade com meio milhão de habitantes a média de público de Wednesday e United somados está por volta dos 50 mil torcedores, o que é excelente.
Hoje, por exemplo, apesar dos maus resultados e da baixa temperatura, há vinte mil pessoas presentes. Tecnicamente, o jogo não é grande coisa, mas é muito movimentado. O Wednesday, diante da sua torcida e tendo que vencer de qualquer maneira, parte com tudo para o ataque. O Crystal Palace, todo de vermelho, assusta no contra-ataque e mete uma bola na trave. Do outro lado do campo, cerca de mil torcedores visitantes vibram, mas no geral eles não fazem muito barulho.
O Wednesday continuava no ataque, valendo-se de Franck Songo’o, um ousado e habilidoso atacante camaronês emprestado pelo Portsmouth. É aquele tipo de jogador que toda a vez que pega na bola a torcida fica acesa, na expectativa de que algo de bom pode acontecer. Ele marcara três gols em três partidas e fazia seu quarto jogo pelos Owls. A defesa do Palace não sabia o que fazer para marcá-lo: só era parado com faltas. O Wednesday abre o placar na metade do primeiro tempo em uma bela tabelinha que pôs Ben Sahar frente à frente com o goleiro adversário, o argentino Juan Speroni. Songo’o continuava dando trabalho e o time da casa esteve perto de marcar o segundo gol. Mas antes do intervalo o Palace empata com uma falta bem cobrada no ângulo esquerdo pelo número 14, o ruivo Ben Watson.
No segundo tempo a torcida fez o que podia para empurrar o time. Wade Small, que fazia boa dupla de ataque com Songo’o coloca o Wednesday na frente mais uma vez, dois a um. Com bom humor, a torcida canta “We are going up” (Nós vamos ser promovidos). Faltando pouco mais de vinte minutos para terminar, os Owls se retraem e o Crystal Palace começa a pressionar pelo empate. O clima é um espetáculo à parte: neva e faz sol umas dez vezes. Lá para o fim do jogo a temperatura cai bastante e neva para valer, flocos grossos. Os dedos da minha mão começam a ficar meio dormentes e vejo que a situação é séria quando o cara ao meu lado também começa a tremer de frio. Dentro de campo, todavia, a partida pegava fogo.
Os Owls pareciam aquele boxeador que tenta se segurar nas cordas nos últimos segundos do derradeiro assalto. O Crystal Palace, no mais tradicional estilo inglês, apela para o bombardeio aéreo. A defesa do Wednesday segura a pressão, dando chutões para todo lado. Elegantemente vestido de púrpura, Lee Grant, o goleiro dos Owls, faz uma defesa milagrosa já no finzinho do jogo. Um sujeito comenta em tom apavorado: “What was that?” (O que foi aquilo). Agora vem aquela cena clássica do futebol. Noventa minutos. A torcida da casa pede o fim do jogo. Neva firme e forte, parece noite apesar de não serem nem cinco da tarde. Há uma série aparentemente infinita de córneres a favor do Crystal Palace, bem em frente a nossa arquibancada. Mais um. A torcida da casa se levanta como se fosse assistir a um pênalti a seu favor. Mas não era. A pequena área parece ter mais pernas que uma centopéia. Cabeçada pra lá, pra cá, bate-rebate e a bola entra. Um jovem perto de mim lamenta: “Why we always do that?” (Por que sempre fazemos isso?).
Para desespero geral, o juiz dá dois minutos de acréscimo. “Agora só falta perder”, comenta outro torcedor quando o Crystal Palace vem para o ataque mais uma vez. Termina dois a dois. Não há uma só vaia por parte da torcida do Wednesday. Ao contrário, ela aplaude um time que lutou muito, bem de acordo com os valores da combativa classe trabalhadora de Sheffield.