Cap.47 – We are still here – Ainda estamos aqui – A Rainha de Chuteiras
We are still here – Ainda estamos aqui
Quando Bob e Sheila se conheceram, ela tinha apenas 17 anos e… deixemos Sheila contar a história:
“Eu estava trabalhando em um pub perto de onde ficava o antigo campo [do Oxford City] e meu marido Robert era uma das pessoas que vinham toda a noite tomar uma bebida. Quando ficamos juntos ele me disse que era um torcedor e eu disse a ele que nunca havia visto um jogo de futebol na minha vida.”
Hoje uma simpática senhora de 60 anos, Sheila exibe uma alegria juvenil ao se lembrar que Bob disse a ela que para o namoro continuar ela teria que se tornar torcedora do Oxford City. E assim foi:
“Então ele começou a me levar aos jogos e eu fui fisgada (ri novamente). Eu comecei a frequentar há 43 anos, nós íamos a todos os jogos em casa e fora. Quando começamos nossa família, trazíamos nossas filhas conosco. Nossa primeira filha tinha apenas uma semana de idade quando assistiu ao seu primeiro jogo de futebol (risada).”
Uma coisa leva a outra e logo Bob e Sheila faziam parte do comitê que geria o clube. Eles participaram do comitê por mais de 20 anos e seu marido chegou a ser um dos principais diretores do clube. Hoje ambos são vice-presidentes vitalícios do Oxford City. Essa honra não impede Sheila de ainda participar diretamente, preparando a comida e recebendo os convidados em dias de jogo. Ela diz que já viu muitos jogadores irem e virem e que tem sido muito interessante. Sheila afirma “que aprecia cada minuto” participando do clube.
O Oxford City foi fundado em 1882, antes mesmo da criação da Football League. Durante um bom tempo foi o clube de futebol mais importante da região, mas no pós-guerra foi eclipsado pelo Oxford United. Ao contrário do United, o City jamais jogou na primeira divisão, o mais alto que chegou foi a 6ª. divisão à época em que Bob começou a frequentar o clube, em 1950. Em 1979, o clube se transformou em empresa e no ano seguinte contratou como técnico Booby Moore – que fora capitão da seleção inglesa em 1966. O Oxford City acabou caindo e o projeto de transformação em um grande clube não deu certo. Em 1988, o clube foi expulso do seu estádio e por um tempo tiveram que abandonar as competições. Sheila lembra dessa época difícil:
“Nós perdemos nosso estádio original, infelizmente. Nós tentamos ficar, apelamos ao Supremo Tribunal (High Court) mas não conseguimos. Ficamos fechados por um tempo. Continuamos com os times juvenis, todo mundo se uniu e nós começamos tudo novamente.”
Formou-se um novo comitê do qual Sheila e Bob faziam parte. O Oxford City voltou a disputar competições jogando em um parque da prefeitura. Sheila conta que iam para lá, colocavam umas cordas à volta do campo e ela preparava chá para os jogadores em um quartinho ao lado do toalete: “foi a partir daí que construímos novamente o clube”.
Na temporada 2007-8, o Oxford City estava disputando o equivalente à oitava divisão. Mas no sábado em que fui até lá pedalando, o City tinha um emocionante confronto válido pela FA Cup contra o Weston Super Mare, uma equipe que estava duas divisões acima. Hoje eles já não jogam em um parque e sim em um modestíssimo estádio para 1.500 pessoas. O Court Place Farm Stadium tem um gramado bem cuidado. Dois lados tem terraces e um deles um pequeno setor coberto com cadeiras para duzentas pessoas. Atrás de um dos gols fica a sede do clube onde funciona o bar que é a principal fonte de receita, derivada não só da venda de bebidas mas do aluguel para eventos sociais.
O estádio, na verdade, ainda pertence à Prefeitura, que tem um acordo com o clube. O Oxford City é um aberto à comunidade e tem nada mais do que 20 equipes de futebol, incluindo várias equipes infantis e juvenis, quatro times femininos, inclusive uma equipe feminina que estava disputando a terceira divisão, um time de veteranos e um time para pessoas com deficiências físicas ou mentais. Esse trabalho junto à comunidade era reconhecido e apoiado pela Football Association.
Quando conversei com o atual presidente do clube, Brian Cox, 66, ele disse que o principal problema do clube é conseguir arrecadar o suficiente para pagar a folha salarial de 1.500 libras (5.025 reais) por semana, afora as outras despesas como pagamento aos juízes e às pessoas que trabalham no estádio. A média de público deles é de apenas 200 pessoas por jogo. Havia uma pequena casinha de madeira onde eram vendidos cachecóis azuis e brancos, camisas e o programa do jogo. Hugh, 42, tomava conta da “loja”. Escocês e torcedor do Hearts, quando ele se mudou para a Inglaterra para se casar com Claire decidiu “adotar” o City como clube. Ele é voluntário, logicamente, e também se responsabiliza por redigir o programa vendido por uma libra e o resumo do jogo que é postado no site do clube.
O City estava se saindo bem na FA Cup: havia vencido seus dois primeiros jogos por 4 a 3 e 4 a 2. Enfrentar um time situado duas divisões acima era um desafio, mas esse tipo de enfrentamento Davi x Golias é um dos maiores atrativos da Copa da Inglaterra, aberta a todos os clubes que quiserem se inscrever. Foram mais de 700 na temporada 2007-8. As regras da competição ajudam os times menores: ao invés de jogos de ida e volta, há apenas um jogo e o local da partida é sorteado. Apenas se houver empate é que há o jogo de volta. Claro que as equipes das primeiras divisões só entram nas últimas rodadas, mas não é incomum que equipes semi-profissionais sobrevivam até enfrentarem um gigante como Liverpool ou Arsenal, o que não só é um grande feito mas também ajuda bastante as normalmente combalidas receitas dos clubes pequenos. Naquela temporada, por exemplo, uma modesta equipe da 6ª. divisão, o Havant & Waterlooville’s iria sobreviver até a 10ª. rodada (são 13 antes da final), só tendo caído diante do Liverpool em Anfield por 5×2, mesmo assim depois de estar na frente duas vezes. Nada mau para um time semi-profissional que incluía um lixeiro, um pintor de paredes, um salva-vidas e vendedor de carros.
Teoricamente, se o Oxford City ganhasse mais um punhado de jogos, logo estaria enfrentando um dos grandes clubes da Inglaterra. Um conto de fadas improvável, é claro, mas não impossível. Esse era o charme do jogo daquela tarde. Sheila e Bob estavam lá, é claro. Assistiram à partida em pé junto à cerca, atrás de um dos gols. E como eles torceram.
Não foram os únicos. Havia algumas crianças e adolescentes e até uma mãe passeando com seu bebê em torno do campo, mas os torcedores de meia-idade representavam uma parcela significativa do público, alguns portando o cachecol nas cores do clube. Barry, por exemplo, hoje vive na Espanha, mas quando passa um tempo na Inglaterra vem ver seu time de coração. Lamenta, mas seu neto hoje torce pelo Manchester United.
O Oxford City trajava o seu tradicional uniforme: calções e meias azuis e camisas com listras horizontais azuis e brancas. O excêntrico camisa 7 Jon Gardner até pintou o cabelo estilo moicano de azul especialmente para a ocasião. Segundo o programa do jogo: “Se a qualidade técnica de Gardner fosse a metade da sua auto-confiança ele estaria jogando na Premier League”. De fato, Gardner esteve envolvido nas poucas chances criadas pelo City na primeira etapa e até chutou uma bola na rede, mas do lado de fora. De qualquer forma, o City lutou muito, ninguém queria deixar o sonho da FA Cup escapar.
Mas o primeiro tempo foi um desastre: o Weston Super Mare, em um belo uniforme amarelo-ouro, tocava a bola demonstrando uma superioridade técnica esperada de um time duas divisões acima. De tranças rastafari, Asham Holgate, o número 10 dos visitantes, fazia uma ótima dupla com o ruivo Ryan Harley. Em toques rápidos e curtos, criavam várias chances de gol. O City recorria aos lançamentos longos, chutões para frente e os tradicionais cruzamentos sobre a área. O estilo mais refinado do Weston Super Mare logo se traduziu em dois gols de vantagem para alegria de uns vinte torcedores que haviam acompanhado o time.
No segundo tempo, tudo o que o City precisava era de um golzinho para manter a chama acesa e incendiar – digamos assim – os cerca de trezentos torcedores presentes. Aos quatro minutos, um zagueiro do Weston mete a mão na bola para impedir uma cabeçada e “todo mundo vê”, menos o juiz, é claro. Um minuto depois, sai o gol em um chute que encobre o goleiro, mas é o terceiro dos visitantes. Três a zero para o Weston e parecia tudo acabado.
Justin Merrit, o técnico do Oxford City, é também jogador do time, um arranjo comum nas divisões inferiores. Naquele dia Merrit havia se colocado no banco de reservas. Aos dez minutos do segundo tempo ele faz três substituições de uma só tacada e, resistindo à tentação de entrar em campo, coloca o jovem Liam Malone, o gigante Alex Stewart e Ikechi Anya, que apesar do nome oriental é negro, baixinho e habilidoso.
Poucos minutos depois de entrar, Anya faz uma linda jogada pela ponta-esquerda, a poucos metros de onde Sheila e Bob assistiam à partida. Ele atrai toda a defesa adversária e toca para trás para que George Rednapp faça o primeiro gol do City. Faltando vinte minutos para terminar, Anya, sempre ele, é lançado pelo grandalhão Alex Stewart e toca por cobertura, colocando o City mais perto do empate. Sheila vibrava. Agora o estádio inteiro vinha junto com cada ataque do City. Na cobrança de uma falta pela direita, em meio a um bolo de jogadores o zagueiro Andy Gunn sobe mais do que todo mundo e cabeceia para empatar. Agora estava 3×3, faltavam quinze minutos e não era proibido sonhar.
Bem, só os contos de fada são perfeitos. Menos de um minuto depois do gol de empate do City, Dean Grubb, o ponta-esquerda dos visitantes, faz uma bela jogada pela direita, driblando um zagueiro e chutando cruzado de esquerda: 4×3 Weston Super-Mare. O City e sua torcida continuaram acreditando e os cinco minutos de acréscimo concedidos pelo juiz – talvez para compensar o clamoroso pênalti não marcado no primeiro tempo – demoraram uma enormidade para os torcedores do Weston, porque a pressão foi constante.
De qualquer forma, o City saiu de campo aplaudido de pé. Um a um os jogadores foram sendo saudados pela torcida à medida em que entravam no túnel gradeado que dava acesso ao vestiário. Sheila e Bob aplaudiram com entusiasmo. Quando a entrevistei depois do jogo, ela disse ser uma torcedora apaixonada. “We live and breathe Oxford City” (Nós vivemos e respiramos Oxford City), diz ela usando o plural para incluir o marido. Ao perguntar pelas filhas, fico sabendo que elas cresceram, se casaram, tem filhos e afazeres e que embora se interessem pelo time não têm mais tempo. “São pessoas muito ocupadas.” Aí abre o mais lindo sorriso da tarde e diz: “But we are still here” (Mas nós ainda estamos aqui).