Cap.46 – Uma velha amizade: o pub e o futebol – A Rainha de Chuteiras
Uma velha amizade: o pub e o futebol
Não há nada mais inglês do que o pub. E não é para menos. Durante séculos o pub foi o coração da vida social nas aldeias e cidades. Ali amigos e companheiros de trabalho se reuniam para celebrar. Combinavam-se negócios e contratavam-se trabalhadores, que iam no pub também para procurar serviço. No pub faziam-se reuniões políticas, planejavam-se protestos e manifestações. Antes que os trens revolucionassem os transportes, o pub era ponto de troca de montaria e hotel para os viajantes. Era centro de atividades comunitárias: assembléias, festas, danças. Acima de tudo, é claro, era o lugar para se beber álcool, um divertimento extremamente popular.
Além disso, o pub sempre foi o centro de uma série de jogos e esportes, praticados no interior do estabelecimento ou no terreno adjacente. Boxe, luta-livre, tênis, corridas a pé e cricket, dentre muitos outros, eram organizados pelo proprietário do pub, que fornecia um prêmio em dinheiro e coletava as apostas. Além de comida e bebida, o dono do pub vendia divertimento em várias formas. Antes que fossem proibidos, os violentos e cruéis “esportes” com animais eram extremamente populares: briga-de-galo, briga de cães, cães contra ursos, contra touros e até contra macacos.
No século XIX, esta posição do pub como centro de lazer foi tolhida por uma série de medidas. As brigas-de-galo foram proibidas pelo Parlamento em 1849, fruto da pressão de movimentos que se opunham à crueldade contra os animais. A cruzada moral dos reformadores sociais levou à proibição das apostas em 1853, retirando do pub uma das suas atrações e fontes de renda, embora apostas ilegais tenham continuado a todo o vapor. Outras formas de lazer surgiam, como os parques e os salões musicais, estes últimos praticamente derivados dos espetáculos musicais que antes eram realizados no pub. E para piorar, por volta de 1850 as ferrovias haviam praticamente extinto o uso de carruagens, diminuindo ainda mais a movimentação comercial dos pubs.
Nas duas últimas décadas do século XIX, os pubs encontravam-se em crise, tendo havido uma diminuição significativa da demanda de cerveja. Foi neste contexto que os pubs se voltaram para o futebol como uma arma de recuperação. Muitos clubes haviam se formado a partir de frequentadores de pubs, que utilizavam as dependências para trocar de roupa e muitas vezes jogavam no gramado pertencente ao estabelecimento. Para os donos dos pubs era uma forma de recuperar parte da clientela perdida, sobretudo quando os clubes conseguiam atrair públicos cada dia mais significativos. À medida em que alguns clubes prosperam e começam a cobrar ingressos o pub passa a alugar o campo. Nem sempre era uma relação tranquila, pois a cobiça de alguns proprietários levava os clubes a mudarem de sede. Foi o caso, por exemplo, do Arsenal e do Wolverhampton Wolves, que tiveram problemas e foram obrigados a trocar de campo. E do Everton, como já vimos, episódio que acabou levando à criação do Liverpool F.C.
Na verdade, é o pub que começa a depender cada vez mais do futebol e não o contrário. O enorme interesse despertado pelo esporte era explorado ao máximo pelo pub: os resultados finais das partidas e até dos jogos em andamento eram enviados para os pubs por telégrafo nos sábados à tarde; lá se vendiam as edições extraordinárias dos jornais sobre a rodada daquele dia. Os pubs eram o local de reunião dos torcedores antes de viajarem para acompanhar seu time em outras cidades e muitas vezes era o dono do pub que tomava conta da “caixinha” com as economias dos torcedores visando exatamente as despesas de transporte. Muitas vezes os donos concediam empregos a jogadores famosos como forma de atrair mais clientela.
Na verdade, os pubs cada vez mais deixavam de ser independentes e de fabricar a própria cerveja. Acompanhando o processo de industrialização e de concentração de capital, cada vez mais as companhias que fabricavam cerveja passam a ser controladoras dos pubs. Em 1900, 90% dos pubs de Londres pertenciam a uma destas companhias só podendo vender as cervejas permitidas. A competição entre os pubs era cada vez mais acirrada.
É neste contexto que os fabricantes de cerveja começam a investir no futebol, procurando controlar os pubs próximos aos estádios e muitas vezes estabelecendo ligações diretas com os clubes: além do arrendamento do campo, comprando parte das ações do clube e participando da diretoria dos mesmos. Por volta de 1910, 15% dos diretores dos clubes da primeira divisão inglesa eram ligados ao negócio da bebida. No início do século XX, por exemplo, tanto o Manchester United como o Liverpool eram totalmente controlados por fabricantes de cerveja. No caso do United, o clube foi salvo da falência pelo dono dono da Manchester Breweries, John H. Davies. Foi ele, aliás, que por motivos comerciais, mudou o nome do clube – antes chamado Newton Heath, para Manchester United.
As grandes companhias de cerveja por vezes financiavam a compra ou o melhoramento de estádios, eventualmente comprando o campo e depois alugando-o de volta ao clube. É claro que vendiam seu produto também no interior do estádio, onde começaram a exibir propaganda. Como o futebol estava se tornando um esporte nacional na Inglaterra, sobretudo a partir da criação do campeonato da Football League em 1888, os fabricantes de cerveja viram na associação com este esporte uma forma importante de aumentar sua penetração junto ao seu principal público-alvo: a classe trabalhadora. A aliança com as cervejarias permitia aos clubes driblarem as restrições à remuneração dos jogadores: era muito comum atrair bons atletas dando-lhes a administração de um pub ou um trabalho como garçom. É claro que isto também permitia uma escala de trabalho bastante folgada para não atrapalhar os compromissos com o clube. E a presença dos jogadores, como já vimos, era uma atração a mais para a casa.
Para além dos interesses comerciais, o pub continou sendo parte indispensável dos rituais de sábado. Horas antes do jogo, os torcedores concentram-se nos pubs nas imediações do estádio. Ali fazem seu “aquecimento” para a partida, reencontrando os conhecidos, iniciando conversas sobre as possibilidades do time e logo passando às canções entoadas coletivamente – já com ajuda do álcool. E de lá saem em grupo para tomar seus lugares na arquibancada. Quando o jogo é fora de casa, os torcedores visitantes frequentam os pubs tradicionalmente “neutros”, evitando e sendo impedidos pela polícia de frequentar os pubs onde se reune a torcida da casa.
Terminada a partida, os pubs voltam novamente a reunir os torcedores, desta vez para analisar o resultado, reclamar do técnico, dos jogadores e do juiz, comemorar a vitória ou afogar a derrota em cerveja. Além dos torcedores, durante muito tempo existiu uma “drinking culture” (cultura da bebida) entre os jogadores profissionais. Fazer parte do grupo significava participar das rodadas de cerveja após os jogos e treinamentos. Muitos treinadores não só aceitavam isso, mas estimulavam a ida coletiva ao pub como uma forma de construir um espírito de grupo. Alguns clubes eram reconhecidamente apegados ao álcool, como o Liverpool, o Arsenal e o Manchester United. Neste último, no início da década de 1980, alguns jogadores participavam do que era chamado o “Old Trafford Drinking Club”. Nem é preciso dizer que era comum jogadores terem problemas de alcoolismo, mesmo antes de pendurarem as chuteiras. Essa “drinking culture”, aceitável para um público de classe trabalhadora, começou a ser substituída por preocupações com a saúde e a nutrição dos atletas e uma “preparação científica” após a criação da Premier League no início da década de 90. Muitos jogadores e sobretudo técnicos estrangeiros, como Arsène Wenger, contratado pelo Arsenal em 1996, ficavam estarrecidos com essa aceitação do álcool na cultura do futebol britânico em geral e do inglês em particular. Outro francês, Gerard Houllier, contratado como treinador do Liverpool em 1999, disse o seguinte acerca da “drinking culture” entre os jogadores ingleses:
“Deixe-me explicar o que me surpreende aqui [na Inglaterra]. Um jovem jogador de início não bebe, se cuida. Mas quando ele chega ao time titular, ele pensa que tem que mostrar que é um homem, ele tem que beber.”
Recentemente, os pubs vieram a ganhar mais um inesperado papel. Com a transformação do futebol inglês operada a partir da criação da Premier League em 1992, boa parte do público tradicional do futebol passou a não ter mais condições de frequentar os estádios, devido ao aumento radical do preço dos ingressos. Entre a temporada 1988-89, anterior à criação da nova liga, e a temporada 1994-95, a terceira da Premiership, muitos clubes tiveram seus ingressos majorados em mais de 100%. No caso do Manchester United, por exemplo, o valor da entrada mais do que triplicou neste período. Para piorar a vida dos torcedores, o futebol, antes transmitido pela televisão aberta, passou a ser exclusividade da televisão por assinatura (Sky). A solução foi passar a assistir ao jogo no pub, que passou a comprar uma licença especial para poder transmitir os jogos.
Além do motivo econômico, os pubs também passaram a ser o refúgio dos torcedores insatisfeitos com a nova política de controle e vigilância. Obrigados a assistir ao jogo sentados em lugares marcados, sem poder se levantar, sem poder torcer à vontade e sob o olhar atento dos stewards e dos circuitos internos de TV, alguns torcedores passaram a se refugiar nos pubs. Os pubs acabaram por ser o local de uma recriação dos rituais coletivos antes presentes nos estádios. Pode-se beber todas, cantar à vontade, comemorar livremente. Uma pesquisa de 2002 demonstrou que o número de pessoas que assistiam aos jogos em pubs superava os torcedores presentes nos estádios. É que ali, embora longe da bola, se está mais perto dos amigos.