Cap. 17 – Quer apostar? – A Rainha de Chuteiras
Quer apostar?
As casas de apostas fazem parte do cenário do futebol na Inglaterra. Os torcedores nem precisam sair do estádio, há lojas de apostas dentro de quase todos eles. Antes do jogo ou até no intervalo os torcedores, além de beberem sua cerveja e comerem sua tortinha salgada ou seu hambúrguer, podem arriscar seu dinheirinho à vontade. Para falar a verdade, nem é preciso sair de casa. Manchester United e Arsenal faziam o jogo decisivo da temporada 2007-8. O letreiro eletrônico na lateral do campo não parava de piscar: aposte agora – Cristiano Ronaldo para fazer o primeiro gol 4/1. A única coisa que o telespectador tem que fazer é pegar seu controle remoto da TV a Cabo, apertar alguns botões e ele pode fazer suas apostas sentado na poltrona da sala.
A aposta mais comum, é claro, gira em torno de derrota, empate ou vitória. Mas também pode-se apostar em quem fará o primeiro gol da partida, no resultado exato (3×1, por exemplo), em que minuto sairão os gols e por aí vai. Claro que também pode-se fazer uma aposta combinada. Digamos: o Liverpool vai ganhar do Arsenal de 2×0 e o primeiro gol vai ser feito por Steven Gerrard aos onze minutos de jogo. Como há gosto pra tudo, pode-se apostar em quem vai receber o primeiro cartão amarelo, quantos corneres (ou laterais) vão ser cobrados durante a partida) e coisas semelhantes. Há também as apostas que não se restringem a somente uma partida, do tipo o Chelsea vai ser o campeão da Premier League, o artilheiro vai ser Fernando Torres, o Manchester United ganhará a Champions League, o Oxford United vai subir para a 4a. Divisão… E é claro que se aposta em qual será o próximo técnico a ser demitido e, quando isso acontece, aposta-se em quem vai ser contratado em seu lugar. Apostou-se como nunca entre a demissão de Steve Maclaren e a contratação do italiano Fabio Capello para técnico da seleção inglesa. Aposta-se em jogos de praticamente todas as divisões, além de torneios internacionais, amistosos etc. Somente a Copa de 2006 rendeu um bilhão de libras às casas de apostas (cerca de 3,35 bilhões de reais).
Claro que não se aposta somente em futebol. A indústria do jogo movimenta 38 bilhões de libras por ano (cerca de 127 bilhões de reais). Só na National Lottery (Loteria Nacional) os ingleses apostam 5 bilhões de libras (quase 17 bilhões de reais) anualmente. A aposta mais tradicional ainda é nas corridas de cavalos, mas também se aposta em corrida de greyhound – aquele cachorrinho alongado que parece subnutrido -, tênis, cricket, basquete, dardos, boxe, handball, hóquei no gelo e inúmeros outros esportes, dentre eles “corrida” de pombos. Sem falar no resultado de eleições, concursos musicais ou reality shows. É uma febre nacional.
Até 1961 não havia casa de apostas. Podia-se apostar nos cavalos ou nos cachorrinhos, mas o sujeito tinha que ir até as corridas ou, no máximo, telefonar. Claro que havia todo um submundo de bookmakers ilegais, combinando apostas nas esquinas ou em pubs, o dinheiro trocando de mãos dentro do toalete. O amor pelas apostas já estava lá, tanto que seis meses depois da legalização, já havia dez mil lojas de jogo. De início o Parlamento inglês, preocupado com a “depravação da juventude”, obrigava as casas de apostas a terem persianas fechadas o tempo todo. Em 1986, a lei é afrouxada, permitindo melhoras no conforto das lojas, com instalação de cadeiras, máquinas vendendo bebidas e, o que é mais importante: telas de televisão transmitindo as corridas. Recentemente o próprio governo resolveu participar da festa e criou a sua Loteria Nacional em 1995, interessado nos bilionários recursos gerados pela indústria do jogo. Na Páscoa de 2008, pela primeira vez as casas de apostas ficaram abertas na Sexta-feira Santa, desde as nove horas da manhã. A Igreja Anglicana fez o seguinte pronunciamento, em tom resignado:
“Nós desejamos que os operadores mantenham suas lojas fechadas na 6a. Feira Santa. Mas para aqueles que insistirem em abrir, esperamos que doem uma porção decente dos seus lucros para programas educacionais, pesquisa e tratamento voltados para tratar do crescente problema do jogo.”
Agora só é proibido abrir no Natal. Por enquanto. Mesmo assim, pode-se apostar pela Internet 24 horas por dia, em qualquer dia do ano. Os sites dos clubes oferecem oportunidades para apostar, bem como os de jornais respeitáveis, como o The Guardian. Às sextas-feiras, este jornal dedica uma página inteirinha do seu caderno de esportes a dicas de apostas em jogos de futebol, sugerindo os melhores palpites. Muito pouca coisa, se compararmos ao encarte de 16 páginas que o tablóide sensacionalista The Sun publica todos sábados, dia em que acontece a maioria dos jogos de futebol.
Segundo a revista The Economist, um dos setores de maior crescimento da indústria do jogo têm sido as apostas no futebol. Com a TV a cabo transmitindo os jogos da Premier League para o mundo todo, as grandes empresas do mercado recebem apostas vindas de todo o planeta, pagas com cartão de crédito internacional. O montante astronômico movimentado pelas apostas representa uma porta aberta para a corrupção de árbitros e jogadores. Em 4 de abril de 2008, o jornal inglês The Independent pôs na primeira página uma notícia bombástica: um ex-jogador da Premier League, viciado em apostas e devendo 50 mil libras (quase 170 mil reais) ao seu bookmaker, teria combinado com colegas de entregar um jogo, disputado dois anos atrás. Embora o nome do jogador não tenha sido revelado, sabe-se que a própria Associação dos Jogadores de Futebol Profissional da Inglaterra financia uma clínica de recuperação para jogadores. David Bentley, um jovem e habilidoso meiocampista do Blackburn Rovers e da seleção inglesa admitiu ter sido viciado em jogo. Ele chegava a fazer cem apostas por dia em cavalos, cachorros, cassino e bingo pela Internet, dentre outros. Em entrevista à televisão ele afirmou: “Comecei apostando algumas libras. Logo eram centenas, depois milhares. Você pode ganhar uma certa quantia e depois perder tudo. Eu acordava pela manhã e a primeira coisa em que pensava era em fazer uma aposta.”
Bentley não é um caso isolado. Jogadores famosos como Michael Owen e Wayne Rooney são apostadores inveterados. Alex Ferguson, o respeitado técnico do Manchester United, orgulha-se de ser proprietário de cavalos de corrida. Uma pesquisa realizada pelo próprio sindicato dos jogadores de futebol em 2000 revelou que mais de um terço deles costuma apostar em jogos de futebol e pelo menos cinco deles revelaram que haviam sido convidados a “entregar” jogos. Na década de 60, três jogadores do Sheffield Wednesday foram presos exatamente por isso. Ou seja, a indústria de apostas representa uma ameaça cada vez maior de corrupção. Mas em uma época de comercialismo absoluto, com os clubes transformados em empresas visando o lucro, pelo menos quatro clubes da Premier League tem o patrocínio de casas de apostas estampado em suas camisas e todos eles tem parceria com uma companhias de apostas.
Disposto a entender um pouquinho mais desse mundo, resolvo experimentar. Vou a Wembley ver um jogo das eliminatórias da Eurocopa: Inglaterra versus Estônia. Dentro da confortável área interna, guichês de apostas pra todo lado. A Inglaterra era favorita absoluta, o que mesmo para um apostador iniciante significava ganhar (e arriscar) muito pouco. Adivinhar o placar? Apostar na Estônia seria jogar dinheiro fora. Empate? Acho que nenhum amante do futebol gosta de empate, a não ser em casos especiais quando o seu time está perdendo até os 49 do segundo tempo e aquele centroavante muquirana consegue finalmente acertar o gol. Bem, vejamos: que tal Steven Gerrard, o talentoso meio-campista do Liverpool, marcando o primeiro gol da partida? Gerrard chuta bem de longe, cobra faltas, pênaltis. Enfim, parecia um bom palpite. E até que estava “pagando bem”: 11 por 2, ou seja, eu ganharia a exorbitante quantia de cinco libras e meia apostando uma. .
Já na arquibancada, uma festa bonita, quase todo o estádio de vermelho e branco, todo mundo de pé cantando o God Save the Queen, platéia contentíssima em ver a seleção nacional. Nada tenho contra a Estônia, mas confesso que estava torcendo para a Inglaterra. Ou melhor, estava torcendo para Steven Gerrard marcar o primeiro gol. Foi algo estranho: minha percepção do jogo estava completamente distorcida. Toda a vez que a Inglaterra atacava eu não ficava de olho somente na jogada, mas procurava ver onde estava aquele em que eu tinha apostado uma pratinha. Isso não foi nada. O pior foi quando ao fim de dez minutos a Inglaterra finalmente marcou o gol que estava para sair assim que o juiz apitou o início da partida. O estádio todo levanta-se para comemorar, com exceção de centenas de simpáticos torcedores da Estônia. Eu também me levanto, mas meio de má vontade, porque o gol havia sido marcado por Shaun Wright-Philips. A lógica do apostador e a do torcedor não combinam bem. Já pensou: seu time goleando de 4×0 e você chateado por ter apostado em um 2×1? Ou até pior do que isso: seu time ganhando de 2×0 e você torcendo para sair um gol do adversário…
Acostumado a viver com salário de professor, eu havia apostado uma quantia insignificante. Mas aquela experiência me fez perceber que não é somente o dinheiro, ou melhor, às vezes o dinheiro não importa. É a excitação que a aposta proporciona.
Uma das teorias mais importantes acerca da centralidade do esporte nas sociedades modernas aponta exatamente para este fato: a busca da excitação. O sociólogo alemão Norbert Elias defendeu a tese de que teria ocorrido no Ocidente um processo secular na direção de uma pacificação relativa dos costumes, diminuindo a tolerância diante da violência ainda comum na Idade Média, por exemplo. Este “processo civilizador”, como ele o chamou, teria sido concomitante ao desenvolvimento de um maior autocontrole psíquico por parte dos indivíduos, cada vez mais educados e submetidos a uma pressão coletiva no sentido de restringirem suas manifestações emocionais. Em suma, um mundo menos violento mas ao mesmo tempo cheio de regras e limitações. Os esportes, neste tipo de sociedade, teriam um papel importantíssimo a desempenhar: por um lado proporcionam ambientes e ocasiões próprias para uma liberação de sentimentos. Mas ao mesmo tempo reforçam os controles sociais pois até mesmo nos esportes existem limites e regras. A aplicação mais famosa dessa teoria foi sido sua explicação para o hooliganismo. As apostas, todavia, também se encaixam nesta explicação: são uma forma de proporcionar excitação em um mundo tediosamente controlado e previsível.
Meu amigo Andy mora em Gloucester e é engenheiro. Na verdade, sua paixão mesmo é a música e até ano passado ele e alguns amigos ainda conseguiam manter uma banda de rock amadora que se apresentava nos barzinhos da região. Ele me disse ter uma conta virtual aberta em uma das maiores casas de apostas da Inglaterra: a William Hill. Andy descobriu que podia-se apostar a partir de dez pence, ou seja, dez centavos de libra (33 centavos de real). E durante toda a temporada de futebol ele apostava 10p em três times de futebol com os quais ele simpatizava. Quando nos víamos era quase sempre a primeira coisa de que ele falava: “Ganhei 36 centavos essa semana!” me dizia com seu jeito brincalhão. No caso de Andy, obviamente, ele não aposta pelo dinheiro, pois as quantias envolvidas são insignificantes. O que ele tem em comum a pessoa que apostou duzentas mil libras (670 mil reais) que o Chelsea iria ganhar do Liverpool (uma aposta real segundo o The Guardian) ou com milhões de ingleses que frequentam as milhares de casas de apostas espalhadas por todo o país, dentro ou fora dos estádios de futebol, é a busca da excitação.
Confissões de um apostador iniciante: Naquele dia em Wembley, não apostei somente em Gerrard. Como o Brasil jogava com a Colômbia pelas eliminatórias da Copa, arrisquei mais uma libra na vitória dos canarinhos. O Brasil empatou de zero a zero. E eu também teria ficado no zero, ou melhor, no prejuízo total, se não tivesse apostado em um outro time de camisa amarela, o glorioso Oxford United, que bateu por 1×0 o Farsley Celtic, também da Blue Square Premier, casa de apostas que patrocinava o campeonato da 5a. Divisão.