Cap.22 – Come on you Brakes! Vambora, freios! – A Rainha de Chuteiras
Come on you Brakes ! Vambora, freios!
Dentre os quatro mil clubes de futebol da Inglaterra, talvez não haja um grito de guerra mais original do que o do Leamington Football Club. Os torcedores do Leamington costumam cantar durante os jogos: “Vamos lá… Freios!”. Freios? Isso mesmo. É porque o Leamington tem sua história ligada à história da indústria automobilística na região de Warwickshire, bem no centro da Inglaterra. Embora tenha sido fundado ainda no século XIX (em 1891, antes do futebol chegar ao Brasil), o Leamington só se tornou um clube de maior expressão em 1946, ao ser encampado pela Lockheed, a maior empregadora da cidade e fabricante, adivinhem, de freios… Quando em 1973 a empresa foi comprada pela Automotive Products, o nome do time muda novamente, de Lockheed Leamington passa a ser A P Leamington. Infelizmente, o declínio da indústria automobilística levou o clube a vender seu estádio e a fechar as portas em 1988.
Um fanático grupo de torcedores, entretanto, manteve acesa a chama do clube e refundou o Leamington Football Club em 2000. Sete anos antes, em 1993, eles arrecadaram recursos para comprar um terreno em meio aos campos que circundam a cidade. E demoraram sete anos para reunir verba suficiente para construir o novo estádio. Em poucos anos o Leamington subiu várias divisões e hoje em dia já voltou ao lugar onde estava antes de ser extinto em 1988: a British Gas Business Football League Midlands Division, o equivalente à 8a. Divisão.
Aqui a realidade é completamente diferente da milionária Premier League. Os jogadores são semi-profissionais e trabalham na construção civil, são faxineiros, funcionários de escritório etc. Alguns são estudantes universitários. Eles treinam à noite, por duas horas, nas terças e quintas. Recebem apenas uma ajuda de custo, girando em torno de 100 libras (335 reais) por semana. Seria impossível viver com tão pouco.
Marcus Jackson, o atlético e ofensivo lateral direito dos Brakes, resumiu assim seus objetivos: “aproveitar meu futebol, me divertir no fim de semana”. Aos 28 anos, já não tem grandes esperanças. Na verdade, o simpático Marcus sente-se feliz em estar podendo jogar depois de ter fraturado o fêmur, o que levou os médicos a dizerem que sua carreira havia terminado. Ele acha que os Brakes têm uma chance de vencer o campeonato deste ano. A carreira dele começou no West Ham, um grande clube de Londres (onde Carlos Tevez jogou a temporada de 2006-7). Dispensado (segundo ele) por falta de porte físico, depois ele rodou meio mundo no futebol, até assinar com o Leamington duas semanas antes do início da temporada de 2007-8. Pedreiro autônomo, ele tem que parar de trabalhar mais cedo quando os Brakes jogam no meio da semana. Ele acha Shaun Wright-Philips, do Chelsea, o melhor lateral-direito do futebol inglês. Ele acha que os problemas da seleção inglesa derivam do excesso de jogadores estrangeiros, o que tira a chance dos jogadores jovens.
Marcus Jackson e seus companheiros de equipe são treinados por Jason Cadden, 38 anos, um ex-ponta-esquerda que teve sua carreira interrompida por uma contusão no joelho aos 21 anos. Começou a dirigir clubes comunitários e aos 26 Cadden passou a treinar um clube da 10a. Divisão. Há sete anos que ele é técnico dos Brakes e conseguiu trazer o clube quatro divisões acima neste breve período. Não é seu único emprego: ele também trabalha como técnico em várias escolas para complementar sua renda. Diz que ganha o suficiente para “pagar as contas”. Os jogadores são descobertos por ele ou por “olheiros” do clube, normalmente torcedores que enviam dicas. Acha que o futebol profissional de hoje está um pouco fora da realidade, com salários estratosféricos e um absurdo volume de dinheiro. Ele acha que isto acabará prejudicando o futebol a médio prazo. Ele diz que antigamente ninguém na cidade torcia para o Chelsea, Manchester United ou Arsenal. Apesar disso diz que há muitas crianças que além disso torcem para o Leamington. Ele acha que em 5 anos o time poderá estar na 6a. divisão. Acha boa a infra-estrutura do clube, que progrediu muito nos últimos dois anos.
O chairman (presidente) do clube, David Hucker, estabeleceu com clareza as metas do clube. Um sério e compenetrado senhor de 58 anos, Hucker afirmou que tentarão, neste primeiro ano de volta à Midlands Division, ficar na parte de cima da tabela. Depois, de acordo com os resultados, estabelecer novas metas. Nada demagógico ou mirabolante. Afinal, Mr. Hucker, um sério e compenetrado senhor de 58 anos, trabalha como consultor da prefeitura. Como todos os outros dirigentes, ele é voluntário, não recebe um centavo do clube. Vem para o estádio dirigindo um daqueles mini carros tão comuns na Europa. Além de buscar ativamente o contato com os grupos de torcedores do Leamington, Mr. Hucker procura obter espaço na mídia, tanto no rádio como em jornais. Ele mesmo escreve uma coluna comentando o jogo, publicada em mais de um jornal local e no site do clube.
Parece estar dando certo, pois naquela tarde de sábado em que o Leamington enfrentou o Sutton Coldfield Town o novo estádio abrigou um público recorde para a Southern Premier: 648 pagantes! Hucker estava contentíssimo. A bilheteria entretanto, com o ingresso a 6 pounds (20 reais, muito barato para os moldes da Inglaterra), não representa a maior fonte de recursos para o clube, apenas o equivalente a 10-15%. Além do patrocinador, uma empresa de materiais de construção, que gera 25% da renda do clube, a principal fonte de arrecadação é o bar ! Viva a cerveja!
Há outras fontes menores, como os anúncios em torno do campo ou no programa do jogo. Sim, um clube da 8a. Divisão faz um programa para cada jogo, amistoso ou oficial. O clube busca de todas as formas recursos: por 25 libras (83 reais) seu filho pode ser o mascote do jogo, com direito a entrar em campo com os jogadores, foto, bola assinada e uma camiseta comemorativa. Além de dois ingressos e um programa do jogo, é claro. Por um pouquinho mais, 30 libras (100 reais), você pode patrocinar a bola do jogo, com direito a ver seu nome (ou da empresa) no programa. E por apenas 50 libras (167 reais), você pode patrocinar um dos jogadores, o técnico ou até a fisioterapeuta. Com indisfarçável (e merecido) orgulho, Mr. Hucker revela que o clube não deve um centavo a ninguém: “Somos donos do estádio, construímos tudo pouco a pouco, temos feito lucro ano após ano. É a única maneira. Não importa se o clube é da Premier League ou o que seja, o orçamento tem que estar equilibrado.” Sábias palavras.
De fato, a administração impecável e o profissionalismo são o que mais impressiona a um brasileiro acostumado com o caos administrativo do futebol pentacampeão do mundo. Cheguei a Leamington de trem e tive apenas que atravessar a rua para pegar a van disponibilizada gratuitamente pelo clube para levar seus torcedores até o estádio.
Depois de 10 minutos de viagem, chegamos ao campo, construído praticamente no meio do nada. Paguei meu ingresso e fui dar uma olhadinha no estádio. Bem, estádio é uma maneira de falar. Por enquanto, o que há é um gramado muito bem cuidado e cerca de 300 lugares sentados. A maior parte do público assiste ao jogo de pé, ao lado do campo, de onde dá para ouvir os jogadores reclamando do juiz, o técnico passando instruções e até as provocações entre os jogadores. Muito simpático. Aqui o futebol parece ainda ter alma. Há uma pequena casinha de madeira vendendo os produtos do clube, camisas, chaveiros, os tradicionais cachecóis. Do lado de fora, fica um quadro com as escalações dos dois times escritas com pilot.
E começa a partida: o Leamington no seu tradicional uniforme, camisa amarela, calções pretos e meias pretas, versus o Sutton Coldfield Town, todo de azul. Os freios começam no ataque: Ben Mackey, um rechonchudo atacante, abre o placar com um forte chute com um minuto de jogo. Aos dezenove minutos os visitantes têm um pênalti a seu favor, mas Richard “Mozza” Morris, o bravo goleiro dos Brakes, salva a tarde. Os azuis pressionam bastante durante todo o jogo, mas o Leamington faz aquilo que se espera de um time com o apelido de freios e segura o resultado até os 41 do segundo tempo. Depois de uma bela jogada de Richard Adams, James Husband dispara um petardo com a canhota e sela o resultado de 2×0 para os Brakes.
Quando vou comemorar a vitória no bar do clube, tenho uma deliciosa surpresa. O bar todo está decorado com camisas e cachecóis de vários clubes da Inglaterra e de outros países europeus. Ao lado da bandeira amarela e preta do clube, todavia, vejo uma velha conhecida bandeira rubro-negra.
Hoje em dia, a simpática Royal Leamington Spa, com 45 mil habitantes, é sobretudo uma cidade-dormitório para pessoas que trabalham em Coventry ou Birmingham. Ela já foi famosa por seus jardins e águas minerais bem antes da indústria automobilística começar a prosperar na década de 1940. No início de 2007 a Ford fechou a última fábrica ligada à indústria de automóveis da região. Mas o futebol continua a todo vapor. Ninguém segura os Freios!