Cap.30 – Na Cova do Leão – A Rainha de Chuteiras
Na Cova do Leão
Millwall é uma palavra mágica. Ela evoca multidões violentas, masculinidade agressiva, o submundo do sudeste de Londres e até as relações entre a classe operária e movimentos de extrema-direita. Mais do que tudo, na Inglaterra Millwall é sinônimo de hooliganismo. Deve ser por isso que naquela manhã de sábado eu acordei sentindo um misto de excitação e temor. Naquele dia eu iria a Londres assistir a um jogo do Millwall FC.
Essa história começa no século XIX na Ilha dos Cachorros, uma área junto ao Tâmisa centrada na atividade portuária: carregamento e descarregamento de navios, armazéns e pequenas fábricas. O trabalho manual, pesado e perigoso, era feito em boa parte por imigrantes. Um grupo de imigrantes escoceses de uma fábrica de geleia funda um clube de futebol em 1885, um dos primeiros de Londres, inicialmente com o nome de Millwall Rovers. Adotam o azul e branco, cores da Escócia, bem como um leão de pé, pronto para lutar, um símbolo do orgulho e da combatividade escocesa desde o século XII. O lema do clube, era “Não tememos nenhum inimigo”, traduzido do idioma gaélico falado nas Terras Altas da Escócia.
Em 1910 o clube cruza o rio e vai se estabelecer na margem sul, igualmente zona portuária habitada sobretudo por estivadores. Ali o clube constrói o que viria a ser o seu estádio por mais de 80 anos, chamado de “A Cova do Leão” ou simplesmente “A Cova”. O comportamento dos torcedores fazia jus ao nome. Em 1920 a Federação Inglesa fechou “A Cova” pela primeira vez. Durante um jogo contra o Newport County o goleiro adversário foi continuamente bombardeado com objetos lançados pelos torcedores do Millwall até que um deles invade o campo e nocauteia o arqueiro com um gancho de direita.
A palavra-chave para descrever “A Cova” era intimidação. Situado na região mais pobre de Londres, que já aparecia nos romances de Charles Dickens como área marcada pela miséria e pelo crime, o Millwall iria construir uma identidade centrada no orgulho masculino a ser defendido a todo o custo. Por seu valor estratégico, esta área sofreu pesado bombardeio alemão durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive levando ao fechamento da “Cova do Leão” em 1943. No pós-guerra a área foi reconstruída e o estádio reaberto. Os torcedores continuavam os mesmos. Em 1949 o clube coloca um aviso do lado de fora do estádio pedindo o seguinte:
“NÃO FAÇAM ISSO, PESSOAL
NÃO invadam o campo – fiquem em seus assentos ou lugares na arquibancada – fiquem longe do gramado.
NÃO arremessem terra, cinzas, carvão, pedras, tijolos, garrafas, copos, fogos de artifício ou outros tipos de explosivos, maçãs, laranjas etc no campo de jogo durante ou depois da partida.
NÃO gritem ameaças, xinguem, ou agridam os juízes e bandeirinhas dentro ou fora da do estádio
NÃO gritem ameaças, xinguem, ou molestem de alguma maneira os jogadores visitantes.
NÃO gritem ameaças, xinguem, ou molestem de alguma maneira os jogadores do Millwall Football Club.
NÃO se reunam em pequenos ou grandes grupos nas ruas adjacentes ao estádio.
NÃO removam os avisos postados dentro da Cova.”
Por isso “A Cova do Leão” foi fechada seis vezes pela Federação: mais do que qualquer outro estádio na Inglaterra. Isso realimentava um mentalidade característica dos torcedores do Millwall até hoje: a ideia de que estão todos contra eles, de que são perseguidos pelas autoridades, pela polícia e pela mídia. Naquela tarde em que fui à Cova do Leão, a música mais cantada foi “No one likes us, we don’t care”, um verdadeiro hino não-oficial desde a década de 80:
“Ninguém gosta da gente,
Ninguém gosta da gente,
Ninguém gosta da gente,
A gente não liga,
Nós somos Millwall,
Super-Millwall,
Nós somos Millwall,
Da Cova”
Na década de 60 os incidentes violentos – que sempre ocorreram no futebol desde o princípio – assumiram uma proporção e uma divulgação inéditas. Embora a palavra hooligan e o comportamento que ela descreve datem do século XIX, seria a partir da década de 60 que ela se tornaria uma obsessão na agenda pública inglesa. A palavra Millwall começaria a concentrar um arco de significados negativos.
Um documentário sensacionalista da BBC em 1977 firmou de vez a má-reputação do Millwall, atraindo a inveja e a ira de outros grupos de hooligans por toda a Inglaterra (e Escócia também). Foi também nesta época que os vínculos de uma minoria de torcedores do Millwall com partidos da extrema-direita tornaram-se conhecidos e incessantemente veiculados pela mídia. A mensagem nacionalista anti-semita e contra os imigrantes tinha um certo apelo em uma região secularmente marcada pela privação social em um período de crise econômica, desindustrialização e índices crescentes de desemprego. A esta altura o símbolo do clube já havia mudado: o Leão não aparecia mais de pé, mas já saltando, em pleno ataque.
A cada semana os torcedores do Millwall colocavam à prova sua virilidade. Em casa defendiam A Cova do Leão de tentativas de invasão por parte de grupos de hooligans de diversos clubes, interessados em projetar-se nacionalmente. Quando viajavam, eram precedidos de um enorme aparato policial, pubs e comércio fechados antes da sua chegada e, não menos importante: torcedores locais dispostos a enfrentá-los. Os torcedores do Millwall eram sistematicamente revistados, filmados pela polícia, atacados verbal e fisicamente pelos torcedores adversários antes, durante e depois do jogo. Alguns clubes cobravam deles ingressos mais caros em nome dos custos de policiamento. E a imprensa noticiava todos os episódios reais envolvendo os torcedores do Millwall, além de alguns inexistentes. A palavra Millwall garantia uma boa manchete.
Em 1985, o problema da violência nos estádios estava no auge, levando à diminuição do público e a uma forte reação das autoridades. Naquele ano um episódio transmitido ao vivo pela BBC cristalizaria de vez a associação entre Millwall e hooliganismo. Durante um jogo válido pela Copa da Inglaterra em Luton, os torcedores do Millwall, frustrados com a derrota, invadem o campo e enfrentam a polícia arremessando cadeiras e outros objetos. Naquele ano, A Cova ganhou uma sala de polícia no alto da arquibancada norte que lembrava uma torre de controle de campo de concentração.
Mas não foi o suficiente. Em 1993, a direção do clube vende A Cova e manda construir um novo estádio a menos de um quilômetro do antigo. É para vinte mil espectadores, só com lugares sentados, de acordo com as novas regras do futebol inglês. O novo estádio, que representou um enorme esforço para um clube que sempre viveu dificuldades financeiras, era uma tentativa de neutralizar os torcedores mais violentos e mudar a imagem do clube. De início foi feito um convênio com uma empresa que chamou o estádio de The New London Stadium, planejando utilizá-lo para shows de rock e outros eventos. Não dá certo: o primeiro show – um concerto de James Brown – é cancelado bem como todos os restantes. A torcida, furiosa com o esquecimento proposital da história do clube, protesta até que o nome do estádio é mudado para A Nova Cova.
Cheguei cedo à Nova Cova. Apesar de ficar a uns quinze minutos de trem do centro de Londres, ao chegar a South Bermondsey parecia que eu estava em outra cidade. No caminho, já observara a radical transformação do panorama após o trem cruzar o rio. Quando se desce da estação em direção ao estádio, tem que se caminhar entre duas grades de ferro com extremidades pontiagudas. Dali se avista um cenário poético: um estacionamento de caminhões, trailers servindo de residência e um mar de conjuntos habitacionais.
Ao caminhar pelo bairro, notei uma forte presença de imigrantes, sobretudo africanos. A significativa população negra do bairro contrastava com o público quase que exclusivamente branco que eu veria no interior do estádio. Aliás, não somente: no pub onde fui antes do jogo, só havia homens brancos, muitos de cabeça raspada ou cabelos curtíssimos. Depois de muitos anos, tive a estranha sensação de estar em um lugar aonde eu era o sujeito mais cabeludo. Essa ausência de negros em um pub de torcedores talvez se explique pela fama de racismo dos torcedores do Millwall. Na década de 80 era comum seus torcedores lançarem bananas para os jogadores negros do time adversário.
Comprei meu ingresso por vinte libras, o que é barato para os padrões ingleses. Mas antes de entrar conversei com Dave, um dos stewards contratados pelo clube. Aos 57 anos, Dave conserva um porte e uma saúde invejáveis. Enquanto conversava comigo, ele abria e fechava o portão de ferro do estacionamento com apenas um braço. Bigodão grisalho bem tratado, jeitão paternal, Dave dá uma explicação sócio-histórica sobre os torcedores do Millwall:
“Os primeiros torcedores eram trabalhadores das docas, o que era um trabalho duro e muito perigoso: o sujeito prendia carga em um gancho e o guindaste levantava, mas às vezes aquilo se soltava e caía em cima dele, podendo até matar. Os pubs ficavam abertos 24 horas por dia na Ilha dos Cachorros, o pessoal saía do trabalho, bebia e ia pro estádio, trocar uns socos (Dave faz o gesto), pow-pow. À medida em que esse pessoal foi morrendo foi melhorando, mas vai demorar gerações…”
Carpinteiro de profissão, hoje Dave, além do bico como steward, trabalha numa agência de aluguel de carros de luxo. Diz que se perder o emprego será impossível de conseguir outro. Reclama da competição desleal dos imigrantes, dispostos a fazer qualquer trabalho nas piores condições, trabalhando mais horas e recebendo menos: “eles vêm para cá pensando que as ruas de Londres são cobertas de ouro”. Mas fala com simpatia dos dois brasileiros que trabalham com ele, Gil e Marcelo, só reclamando de não entender uma só palavra de português. Diz que para trabalhar no estádio tem que falar grosso, dizer “NÃO, NÃO PODE”, sem titubear. Fala que hoje em dia não há maiores problemas, só coisas como gente querendo fumar às escondidas ou levar bebida para as arquibancadas. Diz que a vigilância é estrita e quem não se comportar é retirado imediatamente (faz uma mímica com os dois braços como se puxasse alguém para fora do estádio).
O pior momento que passou ali foi em 2002, quando o Millwall disputava o playoff para subir de divisão. Revoltados com uma derrota em casa, os torcedores do Millwall incendiaram carros, apedrejaram ambulâncias, tentaram depredar o estádio e, sobretudo, enfrentaram a polícia. Dave não esquece da cena do cavalo da polícia com uma das patas sangrando e dos tijolos voando pra todo lado. Alega que vieram torcedores de outros times também, pra aproveitar a confusão.
Seguindo aquela pista, fui conversar com uma dupla de policiais antes do jogo. Um deles afirma que no momento A Nova Cova estava tranquila, que o Millwall só causa problema quando joga fora. Deu várias razões para isso: o circuito interno de TV captando imagens dentro e em torno do estádio foi uma delas. Quem transgride é filmado e depois preso. Outra foi a dura repressão ao motim ocorrido em 2002 e já mencionado por Dave. O policial diz que naquele dia a polícia estava em grave desvantagem numérica e que a coisa foi feia. Mais de mil torcedores estiveram envolvidos e setenta e cinco foram presos e condenados a até cinco anos. “Depois disso”, diz ele em tom severo, “o pessoal do Millwall acalmou: quem é que quer ficar cinco anos preso?”. De qualquer forma, admite que quando está de serviço ali fica sempre com um pé atrás. E avalia que serão necessários 500 policiais quando o Leeds vier a Londres enfrentar o Millwall em um jogo que iria ocorrer dentro de dois meses.
Naquele dia havia bem menos policiais, cerca de 50, mas mesmo assim eles haviam trazido a famosa “hoolivan”, uma espécie de camburão estilo primeiro mundo, com grades de ferro no interior. Enfim, uma prisão ambulante para prender os torcedores que transgredissem a lei.
Aproveito que ainda havia pouca gente e dou uma volta em torno do estádio. Apesar de ser um estádio dentro dos padrões que hoje são comuns, há uma tal quantidade de grades, portões e muros com extremidades cortantes que eu parecia estar numa prisão. O policial com quem conversara havia salientado que o estádio foi pensado para evitar os choques entre as torcidas: há um caminho todo cercado que permite à torcida adversária chegar à estação de trem mais próxima sem que seja possível o contato com os torcedores do Millwall.
Chega, finalmente, a hora do jogo: Millwall versus Portvale pelo campeonato da 3a. divisão. O Millwall a um pontinho da zona do rebaixamento e o Portvale ocupando o glorioso último lugar. Ou seja, um jogo de vida ou morte para ambas as equipes. Tradicionalmente, a área atrás do gol é o lugar de eleição dos torcedores mais fanáticos. É para lá que eu vou. Entro e subo até as últimas fileiras, onde ficam os torcedores que gostam de assistir ao jogo em pé, cantando, xingando, gesticulando. É o último reduto permitido pelas regras atuais dos estádios onde supostamente todos deveriam assistir às partidas calmamente sentados. Pude perceber que havia uma concentração de adolescentes ao meu redor e nas últimas fileiras de uma maneira geral.
Ali pude perceber que o ódio à polícia continuava vivo entre os torcedores do Millwall. Embora naquele dia o Millwall estivesse jogando excepcionalmente bem, terminando o primeiro tempo já com dois gols a seu favor, presenciei pelo menos duas intervenções policiais recebidas com fúria pelos torcedores.
Aos 35 minutos do primeiro tempo, quando o Millwall já ganhava de 1×0, mais pessoas se levantam e começam a olhar para um ponto situado vinte metros à minha esquerda no alto da arquibancada. Vejo quatro stewards subindo rapidamente as fileiras seguidos de dois policiais. Havia um bolo de gente naquele local, de onde foram retirados cinco torcedores, sendo quatro adolescentes. Eles devem ter sido notados através do Circuito Interno de TV, pois poucos minutos antes não havia nenhum policial nas imediações e os stewards estavam bem longe.
Ninguém encostou a mão neles e os policiais pareciam estar ali só para garantir o trabalho dos stewards. Mas a presença da polícia, por menor e mais discreta que fosse, incendiou os ânimos do pessoal daquele setor do estádio. Muita gente se levantou e abriu os braços, protestando. Vaias. Gritos de “Escória”, “Escória”. E músicas explicitamente contra a polícia, algumas delas puxadas por um grupo de adolescentes acima de mim, como esta:
“Harry Roberts é nosso amigo,
é nosso amigo,
é nosso amigo,
Harry Roberts é nosso amigo,
ele mata policiais.
Deixem ele sair pra matar mais alguns,
mais alguns,
mais alguns,
Deixem ele sair pra matar mais alguns,
Harry Roberts.”
Eu já havia frequentado quase 40 jogos de futebol na Inglaterra e nunca vira ou ouvira algo semelhante. Também nunca escutara o coro de “Deixa ele morrer, Deixa ele morrer” para o jogador adversário que estava deitado sendo atendido pelo médico dentro de campo.
O mais impressionante era ouvir o “rugido do Leão”: um som gutural feito em uníssono pelos torcedores do Millwall a cada lateral, corner e ataque perigoso. O estado de espírito era sintetizado em mais uma linda canção:
“Fodam-se todos,
fodam-se todos:
United, West Ham, Liverpool
Porque nós somos Millwall
e nós somos os melhores
Nós somos Millwall
E foda-se o resto.”
O Portvale não ameaçava nem dentro de campo nem fora dele: do outro lado do campo sobrava lugar nas arquibancadas para algumas dezenas de corajosos torcedores do Portvale. Afora um isolado canto de “Todos os londrinos do norte são judeus”, puxado por um agitado rapaz um degrau acima de mim, a turma do Portvale foi ignorada. A torcida do Millwall preferiu lembrar do pior rival, o West Ham, também de Londres. Bobby Moore, ex-jogador do West Ham e capitão da única seleção inglesa a conquistar uma Copa do Mundo em 1966, foi “homenageado” naquela tarde pelos torcedores do Millwall da mesma maneira que o fora apenas algumas semanas depois do seu falecimento:
“Bobby Moore, Bobby Moore,
Fugindo da Cova,
Bobby Moore, Bobby Moore,
Ele faz sexo com homens,
Viado pra eles todos,
Toma no rabo,
Bobby Moore, Bobby Moore.”
Canções como essa não são comuns nos estádios ingleses hoje em dia, muito pelo contrário. O máximo que se ouve é um corinho de “Wanker, Wanker” (punheteiro), o que não deixa de ser um xingamento extremamente pesado para um país de tradição puritana. Mas canções como aquela do Bobby Moore, só na Cova do Leão.
Enquanto isso, minha situação na arquibancada ia ficando difícil: eu estava tirando fotos com uma máquina semi-profissional que chamava alguma atenção. Logo um dos adolescentes atrás de mim me pergunta se eu era da imprensa. Digo que sou apenas um turista brasileiro e ele comenta alto pro resto da turma: “é da imprensa, não confiem nele”. Além de fotografar, eu estava gravando todas as canções e rezando para dar tudo certo. Ao meu lado estava um homem que trouxera a mulher e os três filhos, todos devidamente uniformizados. Quando ocorre um outro incidente ele reclama, apontando para os stewards: “Muçulmanos e africanos, pelo menos na Cova antiga os stewards eram ingleses!” Lembrei que um dos camelôs em torno do estádio vendia, entre muitos outros, pins dizendo “Eu sou Inglês” e do British National Party. Este último é um partido de extrema-direita frontalmente contrário à imigração, sobretudo de muçulmanos. Já na década de 80 a torcida do Millwall cantara o seguinte para os torcedores do Liverpool em Anfield: “Eu prefiro ser um paqui (paquistanês) do que um scouser (apelido dos torcedores do Liverpool).” Não era um elogio aos paquistaneses.
Brasileiro e “moreno demais” para os padrões do Millwall, a minha sorte é que o time ganhou de três a zero e eu saí inteirinho da Cova do Leão.