Cap.31 – Blue Square Premier, ou: “feliz daquele que sabe sofrer” – A Rainha de Chuteiras
Blue Square Premier, ou: “feliz daquele que sabe sofrer”
O verso, que parece zen-budista, é do inigualável Nelson Cavaquinho: “feliz daquele que sabe sofrer”. Só assim para explicar o que aconteceu naquela partida. Mas vamos começar do começo. Joguinho da 5a. Divisão: Oxford United versus Rushden & Diamonds. Dia de semana e à noite. Pra piorar, o jogo não era em Oxford, onde eu estava morando e sim no Nene Park, a duas horas de distância. Espero o ônibus do clube no estacionamento de um rink de patinação. Por falar em gelo estava fazendo bastante frio naquele fim de tarde. Eu embarco no ônibus com mais duas dúzias de infelizes torcedores do Oxford United.
Parêntesis: o Oxford United é uma equipe com alguma tradição, que já jogou algumas temporadas na Primeira Divisão e até ganhou a Milk Cup em 1986. Nunca ouviram falar? Pois a Milk Cup (“Copa do Leite” pra quem se amarra em uma tradução) era o nome dado à competição disputada somente pelos 92 clubes da Primeira Divisão – que à época tinha o pouco imaginativo e nada marqueteiro nome de Primeira Divisão mesmo. Pois é, o Oxford United foi gloriosamente sagrado campeão naquele ano de 1986. E de lá pra cá… Encurtando a história, há duas temporadas que os Yellows vêm comendo o pão que o diabo amassou na 5a. Divisão, que hoje ostenta o portentoso nome de Blue Square Premier.
No começo da temporada 2007-8, ou melhor, antes da bola rolar, o Oxford United era favorito a ser promovido e as casas de apostas estavam pagando apenas 2 por 1. Como eu sei? Pelo menos só apostei duas libras… Enfim, começa o campeonato e o Oxford vai de mal a pior. A cada semana, imprensa, técnico, jogadores e torcedores pensavam: daqui pra frente vamos vencer todas, sábado vai começar nossa recuperação. Chegava o sábado à tarde e neca de pitibiriba: derrotas acachapantes, um empatezinho ali outro aqui e muito de vez em quando uma vitória suada. A temporada começou em agosto e lá naquele primeiro dia de novembro o jogo contra o Rushden & Diamonds parecia ser a última chance: “é agora ou nunca”, “vamos com tudo”, “ninguém nos segura” e por aí vai. Como teria dito Garrincha certa vez depois de ouvir a preleção do técnico, cheia de planos e táticas mirabolantes: “já avisaram isso tudo pro outro time?”
O jogo era à noite e no meio da semana para poder ser televisado pela Setanta Sports, uma espécie de segunda divisão de canal a cabo que transmite aquilo que sobrou da Sky Sports. A notícia do televisionamento não agradou aos torcedores do Oxford. Sabe como é. Torcedor que se preza é supersticioso. E mesmo não sendo, seria coincidência que os seis jogos anteriores transmitidos pela Setanta tivessem acabado em derrota pra nós? Sim, pra nós, caro leitor, pois agora vou confessar o inconfessável: eu havia virado torcedor dos Yellows.
Era em meio desse turbilhão de emoções que íamos no ônibus, ouvindo uma daquelas rádios de esportes em que o locutor parece que engoliu um microfone. O ônibus até que estava meio vazio, mas ao chegar lá a surpresa: havia mais de 400 torcedores do Oxford, o que para um time de 5a. Divisão com parcas esperanças de ser promovido, uma noite fria no meio da semana e um jogo transmitido pela Setanta… Jogando fora, o United entrou com seu belo uniforme todo azul e foi saudado calorosamente por nós.
Não havia dúvida de que o destino histórico do clube era jogar na primeira divisão ao lado de Arsenal, Manchester United, Liverpool e outros menos cotados. Se estavamos ali no Nene Park naquela fria noite de novembro era por causa de uma recorrente falta de sorte, de algumas terríveis coincidências, do aquecimento global e da Guerra do Iraque. Assim que a bola rolasse nossa superioridade insofismável seria confirmada com uma goleada arrasadora e humilhante. Rushden & Diamonds: “Who are you?”, cantamos todos a plenos pulmões.
Com apenas onze minutos o placar já estava 2×0. Para eles. Mas nós continuavamos confiantes: “Vamos vencer de 3×2”, cantamos para lembrar aos torcedores do Rushden & Diamonds quem mandava ali. E logo mudamos para “Vamos vencer de 4×3” quando ainda antes do fim do primeiro tempo tomamos o terceiro gol. No intervalo, o repórter da Setanta Sports que gravava ao vivo a pouca distância da nossa torcida ouviu um corinho: “Você é uma sobra da Sky, você é uma sobra da Sky”. Quiçá alguns de nossos torcedores mais pessimistas já estivessem pensando: sete partidas transmitidas por eles, sete derrotas…
Começa o segundo tempo e tudo muda: nosso time mostra outra disposição, outra atitude dentro de campo. Nosso técnico deve ter feito um milagre no vestiário. Pena que o Rushden & Diamonds faz 4×0 e não demora muito 5×0. Até cantamos que iríamos vencer de 5×4 e em seguida de 6×5. Mas logo resolvemos mostrar nossa incomparável originalidade. E cantamos tão simplesmente: “Queremos seis! Queremos seis!”. Sem esperar que nossa poderosa equipe marcasse ao menos o que outras torcidas, acostumadas à derrota, costumam chamar de “gol de honra” ou “gol de consolação”, o que aliás não ocorreu naquele dia, inventamos uma realidade paralela. Comemoramos um gol imaginário. “Vamos fazer de conta que marcamos um gol”, gritou um gaiato. Em seguida levantamos, abrimos os braços e gritamos “Goal, goal”. A festa começava ali: com os ânimos exaltados por tão belo tento, dezenas dos nossos torcedores subiam e desciam as arquibancadas fazendo um trenzinho e cantando com a alegria que só o futebol proporciona: “Vamos dançar a Conga, vamos dançar a Conga”.
“Feliz daquele que sabe sofrer!”