/Poema de hoje – Morte de mãe – Domingos Pellegrini

Poema de hoje – Morte de mãe – Domingos Pellegrini

Conhecia Domingos Pellegrini como um grande contista brasileiro. Quem me apresentou ao poeta foi o jornalista, escritor e grande mestre de escrita criativa Luiz Pimentel, de quem sou aluno desde o início de 2018. Eis o poema:

MORTE DE MÃE

Domingos Pellegrini

.1.

“Cercando a cama a gente esperava

escorregar daquele corpo a vida

para chorar (como se a morte

não vivesse sempre impressentida)

 

Matronas em pé com velhas varizes

machos curtidos em pinga úmidos

na penumbra: escuridão arrependida

(todos pendendo para aquele útero)

 

E devagar a vida escorregava

daquela boneca vestida de mãe

que abria os olhos e que chorava

 

e que dizia sempre sim sim sim

e esquecemos num canto qualquer e

para sempre fechou os olhos enfim

 

.2.

A carne quando nova, que beleza

mas vem o tempo com rugas varizes

cascas cansaço calos cicatrizes

careca corcunda cegueira surdeza

 

Olhar sem brilho e gesto sem leveza

tarde saudosa dos dias felizes

noite de acessos, tosses e crises

um dia a menos, única certeza

 

Vale a pena viver para isso?

E valerá a pena viver mais?

Mas a carne resiste, eis a verdade:

 

agarra-se às sopas e ao suspiro

dorme com medo de não acordar

e quando dorme enfim, que dignidade

.3.

E nossa mãe morreu, morreu avó

e tia prima cunhada sobrinha

empregada da casa e da rotina

e então nos móveis descansou o pó

 

Não teve tempo de ter uma amiga

entre campo e cidade em seu quintal

vassoura pia fogão e varal

e tanta planta da rosa à urtiga

 

Morreu – mas não desabou o mundo

também não despencaram as estrelas

só apagou-se a luz no criado-mudo

 

Não morreu de velha mas de canseira

e ainda queria dar algum conselho

quando lhe enchemos a boca de terra

 

.4.

Muito sol sem discursos e sem bronze

– chegamos, abrimos o caixão e

olhamos e olhamos como se

fosse uma foto para mandar longe

 

E soluçavam as pedras

por onde a gente tropeçava – tanto que

irmão até abraçava irmão e

o banguelo não ria do corcunda

 

Então irmanamente depusemos

os beijos de café que ela coou

na face enruguecida que bebemos

 

Choveu remorso até nas crianças

o silêncio afinal nos abençoou

mas em casa já falamos de herança