Carlos Carriço é um poeta português. Preferiu que nada mais fosse dito. Mas não posso deixar de notar o lirismo irônico, de uma clareza que preserva seu mistério, de uma despretensão inteligente, pois a sabedoria só pode ser humilde diante da enormidade do universo e da pequenez humana. Com vocês, os textos poéticos de Carlos Carriço:
DA CARTOGRAFIA ALI AO LADO
Notícia de última hora:
A Associação Internacional dos Meridianos convocou greve geral.
A AIM declarou como única reivindicação que os meridianos deverão ter direito, similar ao dos paralelos, de se disporem sobre o globo terrestre sem que se intersectem nos polos.
Durante o período de greve será suspensa a longitude.
A Liberdade, em comunicado à Agência Ténue, declarou ser solidária com o direito à não intersecção mas que mantém as suas preocupações relativamente ao paralelismo das vontades.
Por sua vez, a Altitude declarou à mesma agência, não ser da sua competência comentar quaisquer actividades dimensionsais fora da oscilação de valores dos seus eixos de intervenção.
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TRATADO DE OFTALMOLOGIA
Pois que se equilibrava em exercícios de circo na linha ténue de um fio de pálpebra
Jogava moedas na fonte lacrimal esperando que os desejos se fizessem matéria num dilúvio salgado.
Não chorou. Nunca chegou a conseguir chorar.
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DURMO?
Pois que teve um sonho rente ao chão
Por causa do chão ser do tamanho do mundo
Porque tudo parece mais verdadeiro quando é estranha a razão
Pela razão que se perde em sono profundo.
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DOS TEMPOS DO MOTOR
Há vezes que nem o som do motor junto ao corpo é capaz de atenuar os fantasmas de um proscrito.
Mas eis que surgem nuvens deformadas pelas cores emprestadas pelo sol que salvam o… um dia.
Misturam-se,as nuvens, na silhueta lá do longe que quase nunca é linha recta entre o céu e a terra, e que quase sempre é recortada pelos zigue-zagues da infância.
Carlos Carriço, “Dos tempos do motor”