/POEMA DE HOJE – PARA NÃO ESQUECER nº 1 – Paulo Ferraz

POEMA DE HOJE – PARA NÃO ESQUECER nº 1 – Paulo Ferraz

POEMA DE HOJE

Paulo Ferraz é poeta, tradutor e editor.

PARA NÃO ESQUECER nº 1

contra Emílio Médici

Quando eu nasci um diabo verde-oliva veio me ver, todos estavam num sono profundo e não ouviram a Sonata para piano n.º 2 em si bemol menor, opus 35, de Chopin, tocada por seus cascos vulcanizados. Com um dedo nos meus lábios (e a outra mão no meu pescoço), me sussurrou que eu teria uma longa vida para chorar. Não fiz caso de palavra, o brilho das estrelinhas de suas insígnias me entretinha e assim sorri para Belzebu. Quando nasci, sete cabeças de hidra me acalentavam cantando as grandezas da pátria, as praias do país ensolaradas, a fauna, os índios, a flora, a bomba atômica; era um coro, uma legião, uma rede de rádio e televisão, bobinas de papel-jornal nos seus intestinos, pensar, pensar, pensar mesmo em nada, fazer sua oficina trabalhar, tudo me ensinava o doce Pazuzu. Quando nasci, o demônio me levou para conhecer seu palácio de mármore, seu espelho d’água, suas cruzes invertidas, seu lago que para no ar, sua usina de enxofre, sua estrada sem fim; me levou pro seu porão, vi o enforcado, a afogada, o enlouquecido, o professor, o metalúrgico. Quantas crianças mais mamaram de teu leite aziago, Garrastazu?