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A rainha de chuteiras – Capítulo 3: A máquina de fazer dinheiro

Cap.3 – A máquina de fazer dinheiro – A Rainha de Chuteiras

Marcos Alvito

A máquina de fazer dinheiro

Com o sucesso da FA Cup e a difusão de uma regra única, o futebol se transforma em uma febre nacional. São criados clubes por toda a parte, sobretudo no norte industrial, onde os operários representam um público fiel e entusiasmado. Para se manterem, os clubes logo cercam seus campos, instalam bilheterias e erguem as primeiras arquibancadas de madeira embora a maioria dos espectadores assistisse ao jogo de pé nos terraces, normalmente com degraus cavados em uma pequena elevação de terra, onde o ingresso era mais barato. Para atrair mais público, os clubes logo começam a “contratar” jogadores, fazendo pagamentos por debaixo do pano ou tornando os melhores jogadores empregados do clube.

Os fundadores da Football Association eram membros da elite, frontalmente contrários ao profissionalismo, para eles a antítese do esporte. Para se ter uma idéia, dentre as treze primitivas regras não havia nenhuma relativa a “faltas” ou que previsse a existência de um juiz da partida, pois pressupunha-se que cavalheiros não iriam desrespeitar as regras. Para estes, o esporte deveria ser uma fonte de virtude moral, encarnada no espírito do fairplay. Com o profissionalismo, segundo eles, os valores comerciais predominariam sobre os esportivos, adotando-se a mentalidade da “vitória a qualquer custo”. Viam o perigo de alguns clubes ricos dominarem o esporte e das massas de espectadores entregarem-se às apostas e ao comportamento antiesportivo.

Como uma forma de “protesto” contra a crescente democratização do futebol, em 1882 um grupo de cavalheiros cria um clube dedicado a exaltar os ideiais do amadorismo. Quando um pênalti era marcado a seu favor o jogador encarregado da cobrança chutava propositalmente para fora: alegavam que cavalheiros sempre respeitavam as regras do jogo, portanto as faltas não faziam sentido. Foi uma excursão do Corinthians ao Brasil, quando eles golearam os times formados pela aristocracia de São Paulo, que serviu como incentivo à criação do Corinthians paulista. O povão sentiu-se vingado pela humilhação da elite local.  A ironia nisso tudo é que a defesa do amadorismo pelos fundadores do Corinthians era basicamente uma forma disfarçada de preconceito de classe, contrária exatamente à participação popular.

Mas agora não havia mais como retroceder nas transformações em curso. Os membros da F.A. bem que tentaram: em 1882 eles reiteraram que os jogadores não podiam ser pagos além das despesas e estabeleceram a nova regra de que para participar da F.A. Cup os jogadores tinham que ser residentes na localidade por pelo menos dois anos. Isso barraria, por exemplo, a crescente importação de jogadores escoceses, tão apreciados pelo seu toque de bola que eram chamados de “os professores”. Os clubes fizeram de conta que estavam obedecendo, pois a Football Association era a entidade responsável pela organização do futebol na Inglaterra, desde as regras até a realização da mais importante (e lucrativa) competição nacional (a F.A. Cup). Mas em janeiro de 1884, o Preston North End, um importante clube do noroeste da Inglaterra, é expulso da F.A. Cup por ter colocado em campo jogadores “profissionais”.

É o sinal para a rebelião dos clubes do norte da Inglaterra: 36 dos mais importantes ameaçam abandonar a Football Association e criar uma entidade própria. A F.A. recua em sua intransigência e em 1885 aceita o profissionalismo, com algumas restrições. Vencida essa primeira barreira, os clubes do norte da Inglaterra, onde o futebol realmente movimentava dinheiro, tinham outro problema a resolver: a falta de jogos durante a temporada. Apenas a F.A. Cup não era o suficiente para manter uma estrutura cada vez mais dispendiosa. O esquema dos jogos por convite tinha três inconvenientes. Primeiro: a falta de regularidade, podiam passar períodos sem conseguir jogos. O segundo problema era a dificuldade que os melhores clubes tinham em conseguir partidas contra equipes realmente à altura, pois adversários fáceis não atraíam muito público. E o que era pior: às vezes a equipe adversária não aparecia por um motivo qualquer, causando enorme prejuízo.

Somente um calendário regular de jogos, divulgados com antecedência junto ao público, contra adversários igualmente poderosos, permitiria manter uma estrutura profissional de pagamentos aos jogadores. Dentro do espírito racional e empresarial da classe industrial e comercial do norte da Inglaterra, a solução não tardou a surgir. Em 1888, doze clubes*, a maioria do norte da Inglaterra, criam a Football League (Liga de Futebol), doravante responsável pela organização de um campeonato por pontos corridos e partidas de ida e volta. Era algo até então inédito no futebol, inspirado nas competições entre os Condados (regiões em que é dividida a Inglaterra) existentes no cricket. Ao contrário da F.A. , dirigida sobretudo por profissionais liberais e membros da elite, os criadores da Football League eram empresários, homens de negócios que haviam subido na vida. A Football League e seu campeonato são um sucesso: em 1892, quatro anos depois da sua criação, já há 28 clubes divididos em duas divisões.

A F.A. e a Football League, por mais distintas que fossem em termos de composição e de filosofia, tiveram que coexistir. A F.A. tentou erguer barreiras contra a comercialização do esporte. Em primeiro lugar, estabeleceu limites à transferência de jogadores, praticamente presos aos clubes, pois só podiam deixá-los com o consentimento do empregador. Em 1900, estabeleceu um teto salarial de quatro libras, o que apenas era o dobro do que ganhava um trabalhador manual. Estes dois princípios visavam impedir que dois ou três clubes com mais poder financeiro monopolizassem os melhores jogadores e consequentemente as competições. É notável que o teto salarial e o sistema de transferência tenham sobrevivido até a década de 1960.

Até que ponto estes limites impostos pela F.A. foram bem sucedidos? O teto salarial e o draconiano sistema de transferências permitiram manter um certo equilíbrio entre os clubes, embora muitas vezes fossem feitos pagamentos extraordinários e concedidas outras vantagens aos melhores jogadores. Estes “incentivos” eram variados: conseguia-se um trabalho de meio-expediente ou fictício para o jogador, o clube alugava-lhe uma casa por um pequeno valor  ou então recorria a artifícios mais criativos como comprar o carro do jogador por um altíssimo preço e, certa vez, o cachorro… De qualquer forma, quanto a impedir a predominância de dois ou três clubes o sistema funcionou a contento.

Outra medida da F.A., vigente a partir de 1896 e também apoiada pela Football League, foi a limitação dos dividendos aos acionistas em 5%. Ademais, proibia os diretores de receberem salários. Estes dois princípios também iriam vigorar por décadas. Tinham como objetivo afastar do futebol os empresários mais gananciosos, somente dispostos a fazer dinheiro. Para examinarmos a eficácia ou não dessas duas restrições, é preciso examinar mais de perto os clubes e seus diretores.

De início, a maioria dos clubes eram geridos por comitês, eleitos pelos membros durante a reunião anual. Para ser sócio do clube e ter direito a voto, bastava comprar um season ticket, normalmente no valor total dos ingressos para as partidas disputadas em casa, às vezes com descontos para quem pagava com antecedência. Em 1889, o Aston Villa, um dos clubes mais bem sucedidos dessa época, tinha 382 sócios que elegiam um comitê de nove membros mais um secretário. Eram eles que dirigiam os assuntos do clube, dentro e fora do campo, desde escalar o time até organizar as viagens, comprar camisas e bolas, cuidar do estádio e da bilheteria etc. Mas à medida em que o futebol ia se tornando mais popular e consequentemente mais lucrativo, as tarefas iam tornando-se mais complicadas, as somas envolvidas mais altas e a responsabilidade cada vez maior. Isso vai ficar mais claro com um exemplo.

Em 1884, um ano antes da implantação do profissionalismo, o Bolton Wanderers, um dos clubes que mais tarde participaria da fundação da Football League, publica um balanço orçamentário para a apreciação dos seus membros. Dele se depreende que a adminstração de um clube de futebol era um empreendimento complexo, mesmo antes da implantação oficial do profissionalismo e da criação do campeonato da Football League. A arrecação envolvia não somente os recursos gerados pela bilheteria e pelos season tickets, mas também o licenciamento de barracas para venda de bebidas no interior do estádio. Entre as despesas, contavam-se não só os gastos com as viagens e com material esportivo, mas as despesas com o estádio, pagamento à polícia, aos funcionários da bilheteria, atendimento médico e seguro para os jogadores.

Obviamente, a concorrência entre os clubes era enorme e seus membros faziam de tudo para arrecadar mais recursos: organizavam bazares, rifas e até loterias, antes que a F.A. as proibisse. Mesmo assim, as despesas cresciam a cada dia e o público nem sempre era constante: uma sequência de derrotas, o mau tempo e fatores externos podiam afastá-lo do estádio (e das bilheterias). Em 1898-9, a temporada foi tão ruim financeiramente falando que a Football League pensou em criar um fundo para ajudar os clubes mais necessitados.

Foi aí que se teve a idéia de transformar os clubes em companhias limitadas. Funcionava da seguinte maneira: a nova companhia vendia um número limitado de shares, ações que não eram transacionadas na Bolsa de Valores, serviam apenas para arrecadar recursos. O clube, agora transformado em uma companhia, passava a ser uma entidade comercial, podendo processar e ser processado. Os eventuais prejuízos iriam ser resolvidos segundo as leis comerciais e financeiras e não mais bancados pelos diretores. Bancos e credores em geral ficavam mais tranquilos. Mesmo um clube como o Woolwich Arsenal, criado e dirigido por trabalhadores, logo teve que abandonar a gestão por comitê e aderir ao esquema da companhia limitada por conta das crescentes despesas com o aluguel do campo e com o pagamento de empréstimos. No caso relativamente raro do clube dar lucro, pagava-se então o dividendo aos shareholders, como já vimos limitado pela F.A. em no máximo 5%.

Havia clubes que estabeleciam o valor da share em um patamar propositalmente alto, impedindo a participação da classe trabalhadora. É o caso do  Sheffield United, por exemplo, onde uma ação do clube custava vinte libras. Na maioria deles, entretanto, o valor era fixado em uma libra, o que era acessível à parcela melhor remunerada da classe trabalhadora. De qualquer forma, logo as ações tendiam a concentrar-se nas mãos das camadas médias e altas que passaram a compor o grupo dos diretores.

Os diretores eram sobretudo pequenos e grandes comerciantes, profissionais liberais, donos de pequenas indústrias, empreiteiros e diretores de escola, além de raríssimos operários especializados. É notável a presença de um grande número de fabricantes de cerveja e de donos de pub: no Blackburn Rovers um cervejeiro detinha 150 ações, no Preston North End havia 26 donos de pub entre os acionistas, sem falar em seis fabricantes de cerceja, dois deles com 50 ações cada um. Quando o Newton Heath praticamente vai à falência em 1902, é um fabricante de cerveja, John Davies, que resgata financeiramente o clube, dando-lhe o novo nome de Manchester United. Os fabricantes e comerciantes de cerveja lucravam indiretamente com o clube, já que o público bebia antes, durante e depois do jogo. Muitos clubes começaram em torno de um pub, onde o pessoal se reunia, trocava de roupa e onde eles celebravam vitórias ou se consolavam das derrotas. Os resultados de outros jogos eram afixados nos pubs. Muitas vezes o campo de jogo pertencia ao pub.

Da mesma forma que os empresários do setor da cerveja, os outros diretores, normalmente, não viam na sua posição a possibilidade de obtenção de um lucro direto. E a maioria deles não parecia mesmo estar em busca do lucro e sim da distinção social que a participação em um clube proporcionava. É claro que havia vantagens secundárias: o empreiteiro que construía a nova arquibancada do estádio, o comerciante que vendia os uniformes, o dono de restaurante que vendia comida dentro do estádio. Mas como resumiu o presidente da Football League em 1905:

“na maioria das cidades é considerado um privilégio distintivo ser um dos diretores do clube local, e a posição é tão disputada quanto uma vaga no conselho da cidade [espécie de Câmara de Vereadores]”

Havia os que usavam os clubes, um centro poderoso de orgulho cívico, como meio de obter influência política. Industriais investiam no clube da fábrica como meio de promover a “paz entre as classes”, como o proprietário da Thames Ironworks, onde surgiu o clube de futebol que hoje é chamado de West Ham United. Mas a imensa maioria dos diretores tinha como intuito fundamental sacramentar o seu pertencimento à classe dirigente.

É claro que o futebol movimentava cada vez mais dinheiro, mas ainda não era movido pela busca do lucro. Os estádios, por exemplo, na maioria das vezes eram construídos depois que o clube começava a atrair um público considerável, e mesmo suas modestas instalações significavam uma despesa considerável para os clubes, cujo orçamento quase sempre estava no vermelho. Na temporada de 1908-9, somente seis dos principais sessenta e dois clubes pagaram dividendos aos seus acionistas. Estes, aliás, haviam comprado shares do clube para sentirem-se parte de um empreendimento coletivo que encarnava o orgulho de uma comunidade. Como afirma um jornal esportivo no início do século XX: “ninguém que esteja pensando em fazer negócio compra uma ação de um clube de futebol”.

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