/Bourdieu e a definição de habitus

Bourdieu e a definição de habitus

BOURDIEU e a definição de habitus

(BOURDIEU,1994. Raisons pratiques – sur la théorie de l’action. Paris:Seuil). Trad.M.A.

:9: “as estruturas incorporadas”

:16: “[o habitus tem um] poder gerador e unificador”

:17: “as disposições [os habitus]

:23: “O habitus é o princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unitário, i.e. um conjunto unitário de pessoas, de bens, de práticas”

(…)

Os habitus são os princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que come o operário e sobretudo a sua maneira de comer, o esporte que ele pratica e sua maneira de praticá-lo, as opiniões políticas que são as suas e sua maneira de exprimi-las, diferente sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes de um industrial, mas são também esquemas classificatórios, os princípios de hierarquização, os princípios de visão e divisão, os gostos diferentes. Eles criam diferenças entre o que é bom e o mau, entre o que está bem e o que está mal, entre o que é distinto e o que é vulgar, etc., mas estes não são os mesmos. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode aparecer como distinto para um, pretensioso ou banal para outro, vulgar a um terceiro.”

:45: “Os ‘sujeitos’ são na realidade agentes que agem e conhecedores de um senso prático (…) sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que chamamos comumente de um gosto), de estruturas cognitivas duráveis (que são essencialmente o produto da incorporação das estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e da resposta adaptada. O habitus é este tipo de senso prático do que fazer em uma determinada situação – o que nós chamamos, no esporte, o senso do jogo, arte de antecipar o futuro do jogo que está inscrito em pontilhado no estado presente do jogo.”

:96: “A atividade científica engendra-se na relação entre as disposições regradas de um habitus científico que por uma parte é o produto da incorporação da necessidade imanente do campo científico e dos constrangimentos estruturais exercidos por este campo em um momento dado do tempo. Ou seja, os constrangimentos epistemológicos, aqueles que os tratados de metodologia resgatam ex post, exercem-se através dos constrangimentos sociais.”

:125: “Nas nossas sociedades [bem diferenciadas], o Estado contribui de uma forma determinante para a produção e a reprodução dos instrumentos de construção da realidade social. Enquanto estrutura organizacional e instância reguladora de práticas, ele exerce permanentemente uma ação formadora de disposições duráveis, através de todos os constrangimentos e das disciplinas corporais e mentais que ele impõe uniformemente ao conjunto dos agentes. Além disso, ele impõe e inculca todos os princípios de hierarquização fundamentais, segundo o sexo, segundo a idade, segundo a ‘competência’, etc., e ele está no princípio da eficácia simbólica de todos os ritos de instituição, de todos aqueles que se exercem através do funcionamento do sistema escolar, lugar de consagração onde se instituem, entre os eleitos e os eliminados, as diferenças duráveis, por vezes definitivas, do tipo daquelas que instituíam o ritual de ADOUBEMENT da nobreza.

A construção do Estado se acompanha da construção de um tipo de transcendental histórico comum, imanente a todos seus ‘sujeitos’. Através do enquadramento que ele impõe às práticas, o Estado instaura e inculca formas e categorias

126 de percepção e de pensamento comuns, os quadros sociais da percepção, do entendimento ou da memória, as estruturas mentais, as formas estáticas de classificação. Assim, ele cria as condições de um tipo de orquestração imediata dos habitus que é em si mesma o fundamento de um tipo de consenso sobre este conjunto de evidências compartilhadas que são constitutivas do senso comum. Desta forma, por exemplo, os grandes ritmos do calendário social, particularmente a estrutura das férias escolares, que determina as grandes ‘migrações sazonais’ das sociedades contemporâneas, garantem ao mesmo tempo os referentes objetivos comuns e os princípios de divisão subjetivos acordados, assegurando, para além da irredutibilidade dos tempos vivenciados, as ‘experiências internas do tempo’ suficientemente concordes para tornar a vida social possível.”

:138: “A família é um principio de construção ao mesmo tempo imanente aos indivíduos (enquanto coletivo incorporado) e transcendente em relação a eles, já que eles o encontram sob a forma da objetividade em todos os outros: é um transcendental no sentido de Kant, o qual, entretanto, estando imanente a todos os habitus, se impõe como transcendente. Tal é o fundamento da ontologia específica dos grupos sociais (famílias, etnias ou nações): inscritos ao mesmo tempo na objetividade das estruturas sociais e na subjetividade das estruturas mentais objetivamente orquestradas, eles se apresentam à experiência com a opacidade e a resistência das coisas, embora eles sejam o produto de atos de construção que, como sugere certa crítica etnometodológica, os remetem em aparência à inexistência dos puros seres de pensamento.

Deste modo a família como categoria social objetiva (estrutura estruturante) é o fundamento da família como categoria

139 social subjetiva (estrutura estruturada), categoria mental que é o princípio de milhares de representações e de ações (os casamentos, por exemplo) que contribuem para reproduzir a categoria social objetiva. Este círculo é o da reprodução da ordem social. O acordo quase perfeito que se estabelece então entre as categorias subjetivas e as categorias objetivas funda uma experiência do mundo como evidente, taken for granted. E nada parece mais natural do que a família: esta construção social arbitrária parece se situar do lado do natural e do universal.

Se a família aparece como a mais natural das categorias sociais, e se ela é destinada por este fato a fornecer o modelo de todos os corpos sociais, é que a categoria do familiar funciona, nos habitus, como esquema classificatório e princípio do mundo social e da família como corpo social particular, que se adquire no seio mesmo da família como ficção social realizada. A família é com efeito o produto de um verdadeiro trabalho de instituição, ao mesmo tempo ritual e técnico, visando instituir de forma durável em cada um dos membros de uma unidade instituída sentimentos próprios a assegurar a integração que é a condição da existência e da persistência desta unidade. Os ritos de instituição (palavra que vem de stare, manter-se, ser estável) visam constituir a família em uma entidade unida, integrada, unitária, portanto estável, constante, indiferente às flutuações dos sentimentos individuais. E estes atos inaugurais de criação (imposição do ‘nome de família’, casamento, etc.) encontram seu prolongamento lógico nos inumeráveis atos de reafirmação e de reforço visando produzir, por um tipo de criação continuada, as afeições obrigadas e as obrigações afetivas do sentimento familiar (amor conjugal, amor paternal e maternal, amor filial, amor fraternal, etc.).”