A terra
Por um lado, “O meio físico tem para ele uma realidade envolvente e bizarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado.” É um sertão ao mesmo tempo rude e belo, “de encanto extraordinário” (113).
Mas ao mesmo tempo, não se trata de mera descrição do meio físico: “Aqui, um vazio; ali, uma impossível combinação de lugares; mais longe uma rota misteriosa, nomes irreais. E certos pontos decisivos só parecem existir como invenções. Começamos então a sentir que a flora e a topografia obedecem frequentemente a necessidades da composição; que o deserto é sobretudo projeção da alma, e as galas vegetais simbolizam traços afetivos.” (114)
A prova maior disso estaria no papel do São Francisco, que é ao mesmo tempo “acidente físico e realidade mágica, curso d’água e deus fluvial, eixo do sertão.” O grande rio divide o mundo em duas partes: “o lado direito e o lado esquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico que esta divisão representa para a mentalidade primitiva. O direito é o fasto; nefasto o esquerdo.” (114)
Na margem direita, “a topografia parece mais nítida; as relações, mais normais“. É o espaço “do grande chefe justiceiro Joca Ramiro”, de Zé Bebelo [que lutava pelo fim do jaguncismo], “da vida normal no Curralinho”, “da amizade ainda reta (…) por Diadorim”. (114)
Já na margem esquerda, “a topografia parece fugidia” e até imaginária, correspondendo aos “fatos estranhos e desencontrados que lá sucedem”. É a “Margem da vingança e da dor, do terrível Hermógenes (…) das tentações obscuras; das povoações fantasmais; do pacto com o diabo.” (114)
É nesta margem que “se situam, perdidos no mistério, os elementos mais estranhos do livro: o campo de batalha do Tamanduá-tão; as Veredas-Mortas; o liso do Sussuarão, deserto-símbolo; o arraial do Paredão, com ‘o diabo na rua, no meio do redemoinho’. (115)
Todavia, é também na margem esquerda, como compensação, que temos “o amado Urucuia; como flor e esperança de resgate, Otacília, da Fazenda Santa Catarina, nos Buritis Altos”. (115)
Esta oscilação está presente por exemplo nos encontros com Diadorim, pois este “é uma experiência reversível que une fasto e nefasto, lícito e ilícito, sendo ele próprio duplo na sua condição”.
“Essa heterolateralidade” (…) mostra a coexistência do real e do fantástico, amalgamados na invenção e, as mais das vezes, dificilmente separáveis.” (114)
Ele dá dois exemplo disso. O primeiro é dado pelas Veredas-Mortas, onde ele tentara fazer o pacto com o demônio, local que depois ele descobre se chamar Veredas Altas. O outro é o do liso, barreira aparentemente instransponível e infernal, sem água [símbolo da vida]. (114), onde até mesmo Medeiro Vaz fracassa em sua tentativa de cruzá-lo com seus homens, mas que Riobaldo atravessa “com relativa facilidade” (116) [lembra Excalibur]:
‘Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil, ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se econominava.’
Em suma, como mostra esse exemplo: “A variação da paisagem, inóspita e repelente num caso, sofrível no outro, foi devida ao princípio de adesão do mundo físico ao estado moral do homem, que é uma das partes da visão elaborada neste livro:
‘(…) sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar.
– Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – … ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.’
Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.
Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), “O homem dos avessos” In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.