GUIMARÃES ROSA INVENTOU UMA NOVA LÍNGUA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS?
(Marcos Alvito)
Muitos dizem que sim. O próprio Rosa diz que não:
“Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas”
Ele dizia que a língua portuguesa existente no Brasil é de uma riqueza ímpar:
“nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. (…) é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas.”
Rosa não negava que fazia um uso criativo da língua:
“Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva.”
Vejam que ele não afirma ter criado uma nova língua, uma língua própria. Pelo contrário, o que ele diz é que procurou enriquecer e embelezar a língua através de um uso criativo da mesma. E este uso incluía invenções, não só das variantes da língua portuguesa mas inclusive aproveitando materiais de outras línguas:
“Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação lingüística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Moçambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo.”
Podemos dizer, desta forma, que ele criou uma LINGUAGEM própria.
Nela entravam algumas palavras inventadas sim, ele afirmava que “a invenção é um demônio sempre presente…”. O fazia, porém, sobretudo através de mecanismos existentes na língua portuguesa, sem que fosse necessário criar uma outra língua.
Bastam dois exemplos, presentes no belíssimo estudo de Manuel Cavalcanti Proença, Nas Trilhas do Grande sertão:
– A colocação de prefixos para intensificar o sentido, utilizando-os de forma original:
‘Era o manuelzinho-da-crôa sempre em casal, (…) DESEMPINADINHOS (muito empinados), peitudos’;
‘Manhãzando, ali estava RE-CHEIO (muito cheio) em instância de pássaros’;
‘… RELIMPAR (limpar bem) o mundo da jagunçada braba’
– Outro recurso é a Aglutinação, através da qual se fundem dois significados:
‘… na BRUMALVA daquele falecido amanhecer’;
‘O FECHABRIR de olhos’
Isso não é uma outra língua, é apenas a língua portuguesa sendo explorada em todas as suas possibilidades. O próprio Rosa lembrava que muitos escritores haviam inventado palavras que hoje foram incorporadas à língua: Cícero criou “qualidade”, Comte “altruísmo”, Stendhal “egotismo”, Turguêniev niilista e por aí vai.
Nesta linguagem rosiana, cabem também outros elementos, a começar pelos arcaísmos, palavras da língua portuguesa soterradas pelo tempo e que Rosa recupera, sempre com a finalidade de aproveitar sua expressividade linguística e metafísica:
“meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original.”
Por exemplo: “Se NANJA, sei não.” ou “Medeiro Vaz estava ali num ASPEITO repartido.”
E há palavras originárias de outras línguas mas que são devidamente assimiladas e colocadas no contexto do sertão. Latinismos, por exemplo: “então Zé Bebelo PEREQUITAVA, assoviando”, pois PEREQUITARE em latim significa percorrer fileiras a cavalo, andar a cavalo para lá e para cá. Indianismos também aparecem. Por exemplo: o tupi TAPEJARA é atribuído aos conhecedores de caminhos, aos guias. Rosa menciona um caboclo que viria para “TAPEJAR o bando de Joca Ramiro”. Há até mesmo palavras derivadas do inglês, em que o adjetivo SMART se transforma em ESMARTE para qualificar os olhos de Diadorim:
“Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma”.
A palavra é tão bem utilizada, encaixa tão bem no contexto, que parece mesmo um termo nacional.
E há muitos outros recursos linguísticos utilizados por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, sempre dentro dos próprios mecanismos existentes na língua portuguesa, com a qual ele mantinha um relacionamento que chamava de “amoroso”:
“sobre minha relação com a língua. É um relacionamento familiar, amoroso. A língua e eu somos um casal de amantes que procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a benção eclesiástica e científica.”
Até mesmo a invenção de palavras ocorria de acordo com o propósito de buscar uma maior expressividade:
“eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso.”
Sempre que possível ele procurava utilizar os elementos da própria língua, como as expressões regionais que ele pesquisava com ardor:
“E prova está em que tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido – até o cantar de pássaros.”
E dava um enorme valor ao que encontrava em meio ao povo do sertão:
“Lembro-me de muitas coisas interessantes, tenho muitas notas tomadas, e muitas outras coisas eu crio ou invento, por imaginação. Mas uma expressão antiga, cantiga ou frase, legítima, original, com a força de verdade e autenticidade, que vem da origem, é como uma pedrinha de ouro, com valor enorme.”
Na minha modesta opinião, a genialidade linguística de Rosa se revela ainda mais quando ele usa a língua sem nenhum recurso além da sua excepcional capacidade de escritor. Ele consegue, com palavras simples, expressar muita coisa. Darei apenas dois exemplos.
Revoltado pelo fato do seu Padrinho Selorico Mendes não reconhecê-lo como filho, Riobaldo vai para a cidade do Curralinho, na esperança de sensibilizar o pai. Isso não ocorre e Riobaldo diz:
“Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim. Razão por que fiz? Sei ou não sei. De ás, eu pensava claro, acho que de bês não pensei não. Eu queria o ferver. Quase mesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vício dum ruim prazer. Eu fazia minha raiva.”
O segundo exemplo: Riobaldo reflete em como conversar com a mocinha Otacília:
“Sete voltas, sete, dei; pensamentos eu pensava. Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria – como em fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O que uma mocinha assim governa, sem precisão de armas e golpes, guardada macia e fina em sua casa-grande, sorrindo santinha no alto da alpendrada…”
Alguma palavra inventada? Algum estrangeirismo? Nada, apenas um domínio magnífico das possibilidades expressivas da língua portuguesa.
Para reconhecer o valor de Guimarães Rosa e da sua obra-prima Grande sertão: veredas, basta entender a grandeza alcançada pelo seu trabalho linguístico sem recair na fórmula batida e equivocada de que ele inventou uma língua.
Para usar uma palavra que também não foi inventada por Rosa e que significa coisa sem importância, mas que nós podemos tomar no sentido de ser uma besteira… Rosa inventou uma língua?
Nonada!
Que beleza de texto! Preciso e enriquecedor.