CONVERSA INVENTADA* COM GUIMARÃES ROSA
Marcos Alvito
* Uma conversa inventada não é uma conversa falsa, é toda ela baseada em entrevistas e cartas do próprio Rosa, bem como em seus livros, em memórias dos que com ele conviveram, em estudos biográficos e na fortuna crítica acerca da sua obra e da sua vida. Todos os trechos em itálico são palavras do próprio Rosa.
I.
M.A.: Mestre Rosa, obrigado por me receber. Comecemos pelo fim: muitos dizem que o senhor já sabia que morreria depois da sua posse na ABL e que por isso a teria adiado por quatro anos…
JGR: Sempre fui místico e graças a Deus, tudo é mistério. Mas, neste caso, foi somente uma questão médica e eu, que me formei em Medicina e exerci a profissão por alguns anos, tenho certeza disso. Eu morri aos 59 anos, mas desde os 46 que tive problemas de saúde e aos 50 tive um primeiro infarto. Trabalhava muito, fumava, estava com excesso de peso, a morte já estava no horizonte. Cheguei a passar um mês de cama, deve ter sido vingança do diabo, que ataquei no Grande sertão: veredas (riso). E por conta do problema do coração, os médicos tinham recomendado que eu fugisse das emoções fortes. Até mesmo nos aniversários de família eu chegava mais cedo e logo ia embora para evitar que uma comoção maior me fizesse mal. Em 1963, fui eleito para a Academia Brasileira de Letras, um antigo sonho, mas fui postergando a posse, estritamente por causa da questão de saúde. Sobre isso inventaram razões, especulações, criam teorias. À época eu estava à frente do Serviço de Demarcação de Fronteiras, o dia inteiro a fazer reuniões, a receber pessoas, a tratar de casos importantes, a ditar cartas e ofícios. Costumava sair do Itamarati às nove horas da noite, para voltar na manhã do dia seguinte. Eu estava arrastado, premido, atormentado, sob o peso de tamanhas coisas. O resultado disso tudo? Pouca saúde, pressão alta, me amparando a mim mesmo, segurando-me contra as sacudidelas. Pensei até que fosse morrer durante o discurso de posse, tanto que consultei-me com meu amigo Pedro Bloch, que também é médico e me deu orientações para controlar a voz, a respiração e a velocidade da leitura. Eu estava tão preocupado que nem pude prestigiar o lançamento do primeiro livro de minha filha Vilma, três dias antes da cerimônia na ABL. Para esta, inclusive, combinei com meu amigo Josué Montello um código: se eu passasse o dedo na sobrancelha direita é porque estaria passando mal e ele deveria me socorrer.
M.A. : O senhor ainda tinha muitos projetos literários?
Muitos, foi terrível a morte prematura, pois ainda trazia dentro de mim muitas, muitíssimas histórias. Precisava de mais tempo para contar tudo o que queria contar. Naquele momento, eu estava começando a escrever a biografia de um rio, seria algo totalmente diferente de tudo que eu havia feito, o escritor, naturalmente só o bom escritor, é um descobridor. Você deve ter reparado uma coisa, eu nunca repito as minhas soluções. Mas, afinal, o que fazer? Quando um homem morre é quando vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. A gente morre é pra provar que viveu. O que vale, real, é a graça de Deus e a salvação da alma. O resto é bobagem.
M.A. : Este novo livro seria, como tudo que o senhor escreve, genial!
JGR: Se pouco mereço, muito agradeço. Eu diria: trabalho, trabalho e trabalho! Pode-se falar em duas fases. A inspiração vem, é brilhante, é gostoso experimentá-la, é viva, em geral. É uma delícia pensar, viver. É a única parte realmente agradável. A segunda fase é a parte da procura, do trabalho, da luta, da gestação. É um processo demorado. Misturo-me com o assunto, ponho o assunto dentro de mim, depois ponho para fora de mim, depois eu entro dentro do assunto.
M.A. : E o rio é um tema chave na sua obra…
JGR: Gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um mestre da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar da sabedoria. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, o rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.
M.A. : O narrador será um crocodilo?
JGR: Gosto de trabalhar meus livros em segredo.
M.A. : E agora vamos para o começo. Como foi sua infância?
JGR: Por um lado, muito boa, em 1908, Cordisburgo era um arraial, uma aldeiazinha, uma pequenina terra sertaneja trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Era uma zona de engorda de gado, no vale do Rio das Velhas. Fui batizado com água do rio Urucuia. Eu tinha cinco irmãos, mas era o mais velho, não precisava me preocupar. Todos me chamavam de Joãozito. Morávamos numa casa confortável, vovó Chiquinha vivia conosco, mimava o primeiro neto com broas de milho, rosquinhas de leite, biscoitos de polvilho e doce de figo. Minha mãe, Chiquitinha, era filha de um fazendeiro importante, um homem que mandara calçar as primeiras ruas de Cordisburgo. Mamãe era carinhosa, mas muito exigente no que diz respeito ao asseio, à limpeza, sobretudo da comida, mania que ela me transmitiu. Papai, Florduardo Pinto Rosa, era uma figura ímpar. Homem muito rigoroso, quando eu era menino me levava para caçar com ele. Quando eu avistava caça, gritava por papai. Ele vinha correndo e a caça fugia. Um dia papai desconfiou de que eu gritava de propósito para que ele não pudesse matar os bichos e nunca mais me levou. Papai era de tudo um pouco: juiz de paz, resolvia disputas buscando a conciliação entre as partes, fazia casamentos, organizava as eleições. Conhecia todo mundo na cidade e era famoso por ser caçador de onça e contador de histórias de primeira. Fico pensando que minha “bossa” de escritor eu herdei dele. Seu ganha-pão e de toda a família era a venda que mantinha na parte da frente da casa, debruçada sobre a estação ferroviária de Cordisburgo. Desde pequeno o sertão veio até mim…
M.A. : Como assim?
JGR: Com a inauguração da estação, quatro anos antes do meu nascimento, os criadores de gado do sertão passaram a enviar boiadas para serem embarcadas para o Rio e Belo Horizonte. Os fazendeiros de Cordisburgo logo perceberam que era um bom negócio comprar aqueles bois castigados pelos longos percursos, engordá-los e depois enviá-los com lucro para as grandes cidades. Os vaqueiros, com trajes de couro cobertos de poeira de cima em baixo, suados, cansados, assim que despachavam suas cargas, iam beber na venda do meu pai. Eu, ainda, pequeno, ficava tentando alcançar o balcão para ouvir as muitas histórias, que iam se tornando mais livres e pesadas, falando de violência e mortes, a medida em que a cachaça ia fazendo efeito. E havia ainda os mascates, caçadores e tropeiros. Papai cansou de me chamar de especula e de me mandar sair dali e cuidar dos meus assuntos. Ganhei muito tapa na cabeça por causa disso. Mas depois ele mesmo acabava me contando a maioria das histórias.
M.A. : E o senhor acha que essas histórias ouvidas na venda de Seu Fulô influenciaram a sua literatura?
JGR: Claro. Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava. Quem cresce em um mundo que é literatura pura, bela, verdadeira, real, deve algum dia começar a escrever. Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar histórias. Desde pequenos estamos escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas. E também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. O sertão é de suma autenticidade, total. Levo o sertão dentro de mim. Olhe, até mesmo em Cordisburgo eu encontrei matéria-prima para meus futuros livros. Veja se reconhece esta canção:
Eu já vi um gato ler
e um grilo sentar escola,
nas asas de uma ema
jogar-se o jogo da bola,
dar louvores ao macaco.
Só me faltava agora
acender vela sem pavio,
correr p’ra cima a água do rio,
o sol a tremer com frio
e a lua tomar tabaco!
M.A. : É a canção entoada pelo cego para Nhô Augusto em A Hora e vez de Augusto Matraga, não é?
JGR: Exatamente, moço. Pois essa canção era de “Seo” Emílio, um cego com quem papai gostava de conversar. Papai presenteava o pobre com víveres e dinheiro e acabou por decorar a letra e colocá-la no papel. Mais tarde a aproveitei na última novela de Sagarana.
M.A. : Quando o senhor começou a compor suas próprias histórias?
JGR: Desde pequeno, muito menino, eu brincava de imaginar intermináveis estórias, verdadeiros romances; quando comecei a estudar Geografia colocava as personagens e cenas nas mais variadas cidades e países; um faroleiro, na Grécia, que namorava uma moça no Japão, fugiam para a Noruega e depois iam passear no México… coisas desse jeito, quase surrealistas.
M.A. : O senhor falou do lado bom da infância. E o outro lado?
JGR: Eu era um menino calmo, calado, voltado para dentro. Aprendi a ler sozinho aos seis anos. Acordava de madrugada para ficar a sós com meus livros. Sentava feito o Buda e mergulhava na imaginação. O que mais me interessava era me isolar. Trancava-me no quarto, deitava-me no chão a imaginar histórias. Mesmo quando me levavam para jogar futebol ou para caçar passarinho, logo eu escapava, pegava um galho e começava a desenhar minhas histórias, brincava com formigas, enfim, entrava no meu mundo. Puxava sabugos de milho feito boizinhos de carro. Aproveitava um fiozinho d’água e mudava-lhe o curso, fazendo-o de Danúbio ou de São Francisco, com todas as curvas dos ditos, com as cidades marginais marcadas por pedrinhas, tudo isso sob o vôo matinal das maitacas. À noite, feito o menino do conto “As margens da alegria”, adorava ficar vendo a luzinha verde dos vaga-lumes. Sem falar no papagaio que havia lá em casa e adorava gritar meu nome: – Joãzito! E não era o único bicho que tinha lá em casa não: havia um veadinho que escapou de ser caçado por papai, três perdizes, dois saguis que alegravam a todos, uma cabra e seus dois cabritinhos e um carneiro branco. Sem falar em pombos, patos, marrecos e em barulhentas galinhas d’Angola. E nos dois perdigueiros caçadores, auxiliares de papai.
M.A. : Parece uma infância bem feliz…
JGR: É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, interferindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente. Acho que na vida da criança existe um excesso de adultos invadindo. Um dia ainda hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos. O pior foi quando papai colocou meu tio Vicente, dois anos mais velho do que eu, para tentar me levar para o “bom caminho”: jogar futebol, caçar passarinho, tomar banho de rio, tudo que não envolvesse ficar segurando um livro o dia inteiro.
M.A. : Como assim?
JGR: Eu lia sem parar. De tudo um pouco, mas li muitos livros de cavalaria quando era menino. Certa vez, para fugir de interrupções indesejadas, me escondi dentro de um grande armário que havia na venda e acabei dormindo. Ficaram me procurando super preocupados. Sozinho, comecei a estudar francês, história natural, geografia, vivia cercado de mapas e de coleções de folhas e insetos. Com oito anos eu já brincava de escrever jornais completos, com artigo de fundo, conto, noticiário, seção humorística e crítica de costumes sociais. Comprei uma gramática alemã e, até no intervalo dos jogos com outros meninos, eu estudava. Mas papai ficou preocupado mesmo foi quando me viu regendo missa em latim no quintal para os meus irmãos, com minha irmã Maria Luiza de sacristã. Então, o mais velho dele, ia ser padre?
II.
M.A. : Mas por que esse interesse na religião?
JGR: Primeiro pela influência de Dona Chiquinha, minha avó materna, o quarto dela era um grande altar para todos os santos. E sabe como é a relação da avó materna com o primeiro neto… Mas o decisivo foi o contato com o frei franciscano Canísio Zoetmulder, que passou a me ensinar holandês, francês e alemão. Durante a Primeira Guerra Mundial, eu e ele marcávamos com alfinetes de cabeça a movimentação das tropas em luta e elaborávamos táticas que levassem à vitória dos Aliados contra os alemães. A minha relação com a religião católica passou a ser muito forte. Mas tirando a infância, deixei de ser estritamente católico. Sou profundamente religioso, ainda que fora das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez, como o Riobaldo, do Grande sertão: veredas, pertença a todas.
M.A. : Já vamos chegar no Grande sertão, meu interesse maior. Mas o senhor fez parte dos seus estudos em uma importante escola católica, não foi?
JGR: Sim. Com nove anos incompletos eu fui para Belo Horizonte, por influência do meu padrinho e avô materno, Luís Guimarães, que percebeu minha vocação para o estudo. Em Belo Horizonte, concluí o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena, pertinho da Praça da Liberdade. Continuava a estudar línguas e aproveitei a passagem de um técnico japonês para aprender rudimentos da língua nipônica. Em seguida, a família me colocou em um colégio interno em São João del-Rey, mas eu não suportei a comida gordurosa – sou filho de Dona Chiquitinha – e voltei para Belo Horizonte. Foi aí que ingressei no Colégio Arnaldo, uma instituição criada por padres alemães quase que ao mesmo tempo em que a cidade foi fundada. Ali eu me senti totalmente à vontade, já que a língua alemã não era segredo para mim e os estudos eram muito valorizados. Mas nem tudo foram flores, certo dia um colega me agrediu e eu revidei. Tomaram-me por culpado e eu, não aceitando a injustiça, cheguei a fugir do colégio. Logo me tornei um dos primeiros alunos, ao mesmo tempo em que era coroinha da matriz de São José. Estudava violino, um pouco por gosto, mas também para paquerar uma prima que foi minha primeira paixão. Depois vendi o violino para viajar atrás de outra moça. Aos domingos eu comprava pastéis de carne, empadinhas de camarão com azeitona, uma garrafa de limonada e doces. Com esse farnel, ia até a Biblioteca Municipal e passava o dia inteiro lendo até a hora de fechar. Certa vez um sujeito quis me repreender por estar comendo dentro da biblioteca e os funcionários me defenderam, dizendo que eu lia em inglês, francês e alemão e que só levava farnel para não perder tempo – era verdade – e poder ler sem interrupções.
M.A. : E depois do Colégio Arnaldo?
JGR: No fim de 1924 fui fazer os exames oficiais do Ginásio Mineiro, que à época incluíam provas escritas e orais. Ninguém nunca havia tirado dez na prova oral com o examinador encarregado naquele ano. Ele tentou me fazer cair numa armadilha, me perguntando qual era o canto do pinguim, que é uma ave afinal. Eu lhe respondi que o pinguim não cantava, fazia um barulho parecido com um zurro. Eu era muito estudioso e consegui nota máxima. Agora, com dezesseis anos, as portas estavam abertas para a entrada no Curso de Medicina, para trilhar a mesma carreira que meu avô e padrinho.
M.A. : Como foi o seu curso de Medicina?
JGR: Excelente, fiz dois amigos para sempre, o escritor Pedro Nava e o futuro presidente Juscelino Kubitschek. Muitos anos depois, quando eu trabalhava na sede do Itamarati, no centro do Rio, ele mandava um carro oficial para a gente almoçar. Além disso, também conversávamos por telefone. Posso dizer que jamais uma pessoa me tratou tão bem. Minha vida era simples e boa, morava numa pensão com meu irmão Vavá. Belo Horizonte era uma cidade que acabara de nascer, tinha ruas e avenidas largas, muitas árvores, uma vida intelectual florescente, ali eu me sentia bem. Só não era boêmio, de frequentar bares, além da Medicina eu aprendia línguas, isso sempre foi do meu gosto. E eu sempre apreciei um certo isolamento.
M.A. : Mas o senhor trabalhou durante a faculdade, não foi?
JGR: Sim. Eu precisava. Aos vinte anos, em 1928, passei em um concurso para Agente itinerante da Diretoria do Serviço de Estatística Geral do Estado de Minas Gerais, vinculado à secretaria de Agricultura, foi uma boa oportunidade de conhecer melhor o meu estado. Dois anos depois eu elaborei um estudo sobre Minas Gerais com 23 páginas falando de área, população, clima, produção agrícola, pecuária, mineral e industrial.
M.A. : E no ano seguinte o senhor publica os seus primeiros contos… com vinte e um anos…
JGR: Nem vale mencionar isso, foram obras de juventude. Na verdade, eu estava interessado em ganhar o ótimo prêmio oferecido pela principal revista da época, O Cruzeiro. Publiquei um segundo, no ano seguinte, e um terceiro conto em O Jornal. Nunca mais deixei que fossem republicados.
M.A. : Quando o senhor se formou em dezembro já estava casado?
JGR: É verdade. Eu e Lygia nos casamos no dia do meu aniversário de 22 anos, em 27 de junho de 1930. Nossas famílias se conheciam, nos apaixonamos, ela era normalista e aceitou se casar comigo para levar vida de mulher de médico. Eu sempre fui muito avoado e Lili, apesar de mais nova, tinha os pés no chão.
M.A. : O senhor foi o orador da turma?
JGR: Fui. Estudava muito, tinha um bom relacionamento com os professores e com os colegas, que só me chamavam de João Rosa. Foi uma grande honra. Naquela época a formatura de uma turma de Medicina era tão importante que era realizada na Câmara dos Deputados, na presença do governador do Estado de Minas Gerais.
M.A. : E o que o senhor disse no seu discurso?
JGR: Tinha só vinte e dois anos, era um menino. Mas lembro ao menos de uma coisa que disse. Citei uma frase de Montaigne: “A Ciência sem consciência é a ruína da alma”, acrescentando que de verdadeira se faria sublime, se se lhe intercalasse: “e sem amor”. Eu sempre exerci a Medicina com amor, eu não podia aceitar que doente meu morresse.
M.A. : Onde o senhor começou a exercer a profissão?
JGR: Tive ofertas para clinicar em Belo Horizonte, mas preferi ir para o interior, um lugarzinho pequeno, uma localidade chamada Itaguara. Não havia eletricidade nem nenhum outro conforto a que estávamos acostumados na capital. A mãe de Lygia conhecia pessoas por ter trabalhado como professora e lá fomos nós. Ficamos quase dois anos. Muitas vezes as consultas eram pagas com cestas de ovos, bolos, galinhas. Outras vezes, somente com um agradecimento. Por vezes, tinha que galopar no meio da noite para atender alguém em um sítio mais distante. Eu aproveitava para estudar línguas e posso dizer que aprendi o russo andando a cavalo. À época, não me dedicava à literatura, pois afora as línguas, só lia Medicina, queria me dedicar totalmente, achava que qualquer coisa que eu lesse fora da Medicina me enfraquecia. Não lia nem jornal. Mas já fazia minhas anotações sobre a terra, o povo, os costumes. Lili me ajudou com os “doentes imaginários” inventando um placebo feito de xarope de groselha diluído em água com açúcar (risos). Foi lá que nasceu nossa primeira filha, Vilma, em um parto que eu fiz morrendo de medo por conta da responsabilidade.
M.A. : Como o senhor avalia essa experiência?
JGR: Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…
M.A. : Como assim “rebelde” e “soldado”?
JGR: Quando estoura a Revolução Constitucionalista em 1932, Minas ficou ao lado do governo, ao lado de Getúlio. Eu me voluntariei para participar das forças legalistas ao lado do meu colega de faculdade Juscelino Kubitschek, que já era capitão-médico da Força Pública de Minas, o que estreitou uma amizade que duraria a vida toda. Em outubro, o conflito já havia terminado e, no ano seguinte, fiz o concurso e passei a servir no 9o. Batalhão de Infantaria, em Barbacena. Ali, fiz mais um amigo, o escritor Geraldo França de Lima, a quem escrevi certa vez o seguinte: não há como a gente escrever entusiasmado, possuído de uma ideia, metendo no meio a própria experiência vivida, real ou imaginariamente. Foi um tempo bom, morávamos em uma casa bonita, cheia de sol e alegria, com um jardim de violetas cuidado pela Vilminha. Havia um círculo de intelectuais e poetas que frequentei e, de vez em quando, achava quem topasse jogar comigo uma partida de xadrez. Apenas um senão: a política é que cada vez se torna mais exaltada e violenta. Mas eu e Lili procurávamos não tomar partido e nos dávamos bem com as duas famílias que disputavam o poder. E foi lá que nasceu nossa segunda filha, Agnes, em 1934.
III.
M.A. : O senhor estava satisfeito com o seu trabalho de médico? Afinal o senhor já estava estudando para a prova do Itamarati…
JGR: Olha, moço, eu gostava da parte teórica da Medicina, estudar sempre foi o meu forte. Como expliquei em carta ao meu grande amigo Pedro Moreira Cardoso, a medicina parece bonita de longe, mas de perto é bem terrível, inclusive por conta da arrogância dos colegas. Eu era dedicado, sofria junto com os pacientes, sobretudo se não conseguia salvá-los. Além disso, não gostava da parte física da profissão: apalpar, examinar de perto, auscultar, enfim, o corpo-a-corpo com os pacientes. A diplomacia me permitiria realizar dois sonhos de Joãozito: conhecer o mundo e aprofundar meu conhecimento de línguas. Foi assim que me entreguei totalmente à preparação para as provas do Itamarati, no Rio de Janeiro. Fui aprovado em 1934.
M.A. : E como era o seu trabalho?
JGR: A vida era difícil, mandei um telegrama avisando da minha aprovação e trouxe a família toda de Minas, mulher e duas filhas pequenas. De início fomos morar no subúrbio do Engenho Novo, depois até as mandei por um tempo de volta a Minas e fui morar numa pensão, como nos meus tempos de estudante. O custo de vida na capital era exorbitante e meu salário inicial no Itamarati não era grande coisa. E a lida cotidiana era brutal. Eu fazia longos serões, às vezes virando noites, nas cartas que ficava tanto tempo enfurnado no escritório que nem sabia se era dia ou noite. Eram tantos afazeres que não tinha nem meia hora para me coçar. E naquele momento eu tinha abraçado a sério a escrita, começava a elaborar meu livro de poemas, Magma. Em parte de olho no prêmio de cinco contos de réis oferecido pela Academia Brasileira de Letras.
M.A. : Este livro não só ganhou o prêmio de primeiro lugar em 1936, como o presidente do júri, Guilherme de Almeida, escreveu que não haveria segundo lugar pois todos os outros concorrentes estavam a grande distância. E mesmo assim o senhor não publicou o livro em vida, por qual motivo?
JGR: Não sou poeta, sou um contador de histórias. Magma foi um meio e não um fim. Além do prêmio (risos), queria refinar minha escrita, algo que aproveitei para enriquecer minha prosa. Assim que terminei Magma, já estava escrevendo os contos, que depois seriam publicados com o título de Sagarana, não sem antes enviá-los ao concurso da nossa mais amada e prestigiada livraria e editora: a José Olympio. Eu não parava de mandar cartas a papai perguntando detalhes de todos os tipos. Não sem começar pedindo a sua benção. Seu Florduardo era bombardeado de perguntas. Depois que ele respondia, eu pedia mais e mais. Meu desejo de conhecer o máximo de detalhes da vida da gente do interior de Minas era infinito. O que dava em troca? Apontava a papai os trechos dos livros que haviam sido elaborados a partir da matéria-prima que ele me fornecia. Cheguei a pedir a uma irmã minha que ajudasse papai a elaborar um livro de memórias bem detalhado. E pedia a amigos também, o meu querido Pedro Moreira Cardoso também foi perseguido por minhas indagações minuciosas.
M.A. : Como assim?
JGR: Perguntava absolutamente tudo: sobre animais, plantas, costumes, canções, crenças religiosas. Vou te dar um exemplo. No meu último livro, Tutaméia, publicado em 1967, ano da minha morte, há um conto chamado “Mechéu”. Pois bem, veja só a carta que escrevi a meu amigo Pedro Moreira Cardoso:
Mas, meu velho, antes que eu me esqueça, acuda aqui ao seu parente. Estou, afinal, pondo em papel a biografia romanceada do grande MECHÉU, e preciso, sem falta, de mais alguns dados. Por amor-de-Deus, mande-me, pois, o seguinte:
I – Como era, mais ou menos, a fisionomia dele? A expressão? O aspecto?
(Sei que era alto e magro, mas gostaria de saber também o formato da cabeça, cabelos, se tinha pescoço fino ou grosso, cor e tamanho dos olhos, barba ou não barba, cor da pele, formato das orelhas, e outras peculiaridades que ocorram).
II – Que fazia ele, em geral, à tarde, acabado seu serviço?
III – Além de tratar dos porcos, preparar a boia suína na masseira, levar comida à roça, para os camaradas, tinha ele mais algum serviço?
IV – E aos domingos, que fazia?
V – Era religioso? Supersticioso?
VI – Andava descalço?
VII – E em matéria de vestir-se?
Que chapéu usava, por exemplo?
Gostava de vestir roupa velha que vocês lhe dessem?
VIII – Tinha algum modo especial de caminhar?
IX – Dedicava alguma especial inimizade aos cachorros? Maltratava os animais?
X – Que coisas gostava mais de comer?
Gostava de cachaça?
XI – Na fala: gaguejava? Ria muito ou pouco?
Que é que lhe dava mais raiva?
E não era só isso, pedia ao Pedrão, que era como eu o chamava, que contasse tudo isso e mais alguma coisa marcante ou engraçada, que lhe vier à lembrança, sobre o inolvidável Hermenegildo. E que perguntasse a outras pessoas também. Recordei a ele um questionário que lhe enviara sobre as vozes de comando do condutor de carro de bois (carreiro) que foi aproveitado em Sagarana. Isso sem falar no meu transe preparatório …
M.A. : O que vem a ser isso?
JGR: Quando resolvi que iria escrever o livro, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, ‘revendo’ paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a ‘máquina’ esteve pronta, parti. Lembro-me que foi num domingo, de manhã.
M.A. : E qual era o seu objetivo com este livro, além de ganhar o prêmio (os dois riem) ?
JGR: Minhas histórias se passam em Minas, mas não são sobre Minas. Eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser em Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China (…) o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, ‘poses’ – dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.
Ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas.
M.A. : Infelizmente o livro fica em segundo lugar no concurso e o senhor passa anos reformulando-o, até publicá-lo, com grande sucesso, em 1946. Mas agora sem três dos doze contos. Por que motivo?
JGR: Consegui – a custa de horas de sono, do descanso dos domingos e de muito esforço – preparar ou, melhor, reestruturar um livro de contos para o qual achei imediatamente editor. Os três contos a que você se refere, não eram ruins, mas percebi que eles não transcendiam. O cenário, o enredo, e também a poesia, são muito importantes para mim. Mas o que vem em primeiro lugar, em uma história que escrevo, é o aspecto metafísico-religioso. Eu não crio facilidade, crio dificuldade. Sagarana começa com o conto mais difícil. Eu quero um leitor ou leitora sem pressa, disposto a ler feito boi, ruminando. E não como cavalo que pasta e sai correndo atrás da história. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Minha língua é a arma com a qual defendo a dignidade do homem. Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o espírito cresça; e desejando ser um sonâmbulo de Deus.”
IV.
M.A. : Nós acabamos fazendo um salto para falar de Sagarana, voltemos ao fio cronológico, em 1938 o senhor vai para a Alemanha, ser cônsul adjunto do Brasil em Hamburgo, em plena Alemanha nazista, como foi esta experiência?
JGR: Bom, foi uma experiência bastante contraditória. Minha posição era difícil, pois à época o Brasil ainda não havia entrado na guerra, era um país neutro, disputado pelos Estados Unidos de um lado e pela Alemanha do outro, ambos com fortes investimentos em propaganda, visando arregimentar um aliado importante. E no ano seguinte à minha chegada, explode a guerra. Em 1940 a cidade começa a ser bombardeada impiedosamente pelos ingleses, o próprio consulado brasileiro foi praticamente destruído em 1941, ainda bem que era um domingo… Infelizmente presenciei a escalada da perseguição aos judeus, algo terrível. Depois o Brasil faz sua escolha pelos Aliados e nós ficamos quatro meses em um hotel em Baden Baden, sob custódia, esperando o fim da negociação para a troca por diplomatas alemães em 1942.
M.A. : E o outro lado?
JGR: Aprendi a língua alemã ainda menino. Fui educado em um colégio de padres alemães. Minha admiração pela cultura germânica era enorme. Cheguei à Alemanha em maio, em plena primavera. O consulado havia escalado uma funcionária para me mostrar a cidade, a chefe do setor de passaportes. Caminhávamos pelas ruas para que eu pudesse encontrar um local para morar. Era uma mulher de vinte e nove anos, eu tinha trinta. Aracy tinha cabelos negros, lindo sotaque paranaense com aqueles erres infinitos rsrs, olhos vivos. Uma mulher culta, poliglota, de amplos horizontes intelectuais e humanos. Religiosa. Nos apaixonamos. Como eu escrevi para ela, anos depois: Os outros eu conheci por ocioso acaso, a ti vim encontrar porque era preciso. Ela foi tudo para mim: mulher, amante, amiga e companheira. Passei a ler para ela tudo que eu escrevia. Certa vez, ainda em 1938, ela teve que ir a Londres e eu lhe escrevi uma carta dizendo:
O resto do dia, não saí. Fiquei lendo e escrevendo. E, principalmente, pensando em você. É impossível que não sinta, mesmo à distância, o meu pensamento e o meu amor, que estão acompanhando você a todo instante. Pense também em mim e volte amando-me ainda mais, sim, querida.
Além disso, tenho que dizer:
Você estava linda, linda, na hora de partir. Tão bonita, que eu tenho sonhado acordado, o dia inteiro, com você. Não me lembro de ter sonhado também à noite, mas é bem capaz, porque eu dormi abraçado com a camisolinha cor-de-rosa, toda impregnada do corpo maravilhoso da dona do meu amor.
Médico formado que sou, cheguei até a elaborar a receita perfeita do amor…
M.A: Não acredito, mestre! O senhor poderia passá-la para nós?
JGR: Claro, mas aviso que só funciona se você tiver um grande amor, que é o único amor verdadeiro:
Receita, em papel timbrado, formato mesmo de receituário, 6/6/39
Dr. J. Guimarães Rosa
Médico
Para a Ara:
Uso interno
Solução concentrada de amor – 5 gramas
Extrato fluido de paciência – 30 gotas
Tintura de espírito de justiça – 2 gramas
Hidrolato de calma suave – Tomar uma colher das de sopa, de duas em duas horas
Uso externo
Sorrisos para o amado – 10 gramas
Cara fechada para os outros – 5 gramas
Tintura de gentileza – 5 gramas
Pó de bom humor – 5 gramas
Vaselina – 30 gramas
Dr. João Babão
E ainda acrescentei um bilhete:
Beijo os dedinhos dos teus pés
M.A: Faça amor, não ligue para a guerra…
JGR: Enquanto as condições permitiam, viajamos de carro, fomos à Tchecoslováquia, passeamos pela Alemanha também, visitamos a casa de Schiller e de Goethe, o que me emocionou muito. Mas a partir de 1940, eu e Ara convivíamos diariamente com o horror na terra e com a ameaça da morte vinda do céu. Abra aí, moço, o meu diário dessa época na página marcada e leia…
M.A.: Como bom rosiano, obedeço:
Passeei hoje, com Ara, à tarde. Fomos pela beira do Alster. Num recanto da margem, perto da Lombardsbrücke, para o lado de cá (da minha casa), vi uma praiazinha para crianças. Pequenina enseada, protegida, de um lado, por um pernambuco de pedra, ganho pelas ondas do lado, que vão e vêm entre as pedras, convertendo-o em cachoeira: . (…) Há um quadrado, espécie de vasto caixão de areia, para os garotos brincarem. Perto, os salgueiros-chourões. Ondazinhas vêm lamber a praia de brinquedo. E… mas, para estragar toda a mansa poesia do lugar: arvoraram, num poste, uma taboletazinha amarela: ‘Lugar de brinquedo para crianças arianas.’ Eu, o homem do sertão, não posso presenciar injustiças.
JGR: Você consegue imaginar uma coisa dessas, moço? E havia o pesadelo ininterrupto do alarme antiaéreo, o alarido das sirenes de madrugada, os sons de bombas, a sensação de que poderíamos morrer carbonizados a qualquer instante…
M.A.: Além do diário, o senhor continuava escrevendo ficção?
JGR: Sim, claro, corrigi o último trecho de “O Burrinho pedrês”, o primeiro conto de Sagarana, em meio ao “mugido” das sirenes. Bombas e mais bombas, perto, sempre mais perto. Sempre dormi cedo, mas passava a noite toda sendo acordado, eu e Ara, pelos bombardeios dos aviões ingleses. Certa vez, a casa estremeceu toda, profundamente. As bombas caíram bem perto da nossa casa, um estrondo aterrador.
M.A.: Mas o senhor e Dona Aracy fizeram o possível e o impossível pelos judeus alemães, não é mesmo?
JGR: O mérito foi todo dela. Embora o Brasil de início fosse neutro, havia muitos germanófilos entre as nossas autoridades. Getúlio mantinha as portas abertas para uma possível aliança com a Alemanha de Hitler. E no ano em que cheguei à Alemanha, o presidente enviou uma circular secreta orientando os consulados a impedir a entrada de judeus no Brasil. Lembre-se de que 1938 foi o ano da pavorosa Kristallnacht (Noite dos Cristais), onde se abriu a caixa de Pandora da violência contra os judeus. A partir daí foram enviados em massa para campos de concentração. O documento do Estado Novo orientava os consulados a não conceder vistos a “semitas e outros indesejáveis”. Correndo grande risco, pois é inimaginável o que os alemães poderiam fazer se descobrissem, ela fez de tudo para que vistos fossem concedidos a pessoas judias, salvando-as. Eu dizia: Ara, você é louca, um dia a Gestapo te leva, some contigo. Ela sorria, cravava os olhos em mim: calma, Joãozinho, calma. Ela era intrépida, de uma coragem extraordinária: mais de uma vez me apavorei quando ela batia boca com um soldado nazista sem medo de apontar-lhe o dedo na cara, dizendo que era do consulado brasileiro.
V.
JGR: Voltamos ao Brasil e, em seguida, em setembro de 1942, fui trabalhar no consulado brasileiro em Bogotá. Ali eu sofri deveras com o soroche, o mal das alturas. Fiquei ali até junho de 1944, quando voltei à capital e passei a trabalhar na sede do Itamaraty, no centro do Rio. Fizemos nosso lar, primeiro na Glória, em um apartamento alugado. Depois em Copacabana, onde pude ter meus gatos. Nesta época também estava reelaborando Sagarana, que foi lançado em 1946, como já falamos. Mas antes, aconteceu algo muito importante em 1945.
M.A.: O que, mestre?
JGR: Em dezembro daquele ano pude voltar à minha terra sagrada, o interior de Minas Gerais. De Belo Horizonte a Paraopeba eu fui de ônibus, mas de lá eu fui a cavalo para Cordisburgo, visitar meus pais, parando na fazenda Três Barras. Fui de cadernos abertos e lápis na mão. Aproveitei a oportunidade para penetrar de novo naquele interior, nosso conhecido, retomando contacto com a terra e a gente, reavivando lembranças, reabastecendo-me de elementos, enfim, para outros livros.
M.A.: Então o senhor já estava pensando em escrever Grande sertão: veredas? Já estava se preparando, fazendo anotações para isso nesses cadernos?
JGR: Sim. Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por minha Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem vôo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o vôo de cada pássaro, em cada momento. Não há nada igual neste mundo. Não quero palavra, mas coisa, movimento, vôo. Sem dúvida foram materiais que aproveitei em Corpo de Baile e Grande sertão: veredas. A última novela de Sagarana, “A hora e vez de Augusto Matraga”, já tem muitos elementos que estariam presentes em Grande sertão: veredas: a violência, a religião, a luta entre o Bem e o Mal… Mas o fato é que quando escrevo um livro não penso que estou escrevendo um livro: eu estou vivendo uma coisa, estou vendo uma coisa, estou pondo no papel esta coisa. Você compreende? De repente sai aquilo que escrevo, mas não é de propósito, é espontaneamente, sem forçar, é preciso que seja um ser vivo, um ser vivo… E que trate do que me interessa na ficção: primeiro que tudo é o problema do destino, sorte e azar, vida e morte.
M.A.: Além das cadernetas havia as cartas-questionário para Seu Florduardo, não é?
JGR: Para ele e para amigos, para quem pudesse me dar informações. Coitado de papai, eu indagava de tudo: pessoas, causos, costumes, provérbios, animais, plantas e lugares do sertão. Lembro-me de muitas coisas interessantes, tenho muitas notas tomadas, e muitas outras coisas eu crio ou invento, por imaginação. Mas uma expressão antiga, cantiga ou frase, legítima, original, com a força de verdade e autenticidade, que vem da origem, é como uma pedrinha de ouro, com valor enorme.
M.A.: A música influencia o seu processo de criação?
JGR: Tudo me influencia. É que eu sou aberto pra tudo, mas ao mesmo tempo nada me prende. É como se eu ouvisse uma música interior. Sabe, eu não sou capaz de ouvir música como as outras pessoas fazem, calmamente. Eu gosto muito de Beethoven, Mozart. Mas não sou capaz de ficar assim, sentado, ficar ouvindo música, concentrado na música. Nem meio minuto. Sempre que ouço música começa a germinar uma coisa dentro de mim, minha alma desperta, minha imaginação acorda. Até cinema, quando vou ao cinema vejo outras coisas também.
M.A.: O senhor gosta de música sertaneja?
JGR: Na vitrola do meu apartamento em Copacabana, toquei muito disco de Luiz Gonzaga, de Tonico e Tinoco. Aprecio a autêntica música sertaneja; gosto de modas de viola. Usei algumas em meus livros, recriando-as.
M.A.: Além da publicação de Sagarana, em 1946, o senhor se torna chefe de gabinete do Ministro de Relações Exteriores, um cargo importante. Chegou a viajar com ele à conferência de paz em Paris.
JGR: À época o Itamaraty tinha poucos funcionários, estávamos todos sempre sobrecarregados de serviço. Minha nomeação implicou numa grande responsabilidade, além da já pesada carga de trabalho. O Gabinete era, cada vez mais, uma pequena Nova Iorque… Mais telefonemas, mais audiências, mais telegramas, mais incumbências. Eu ia fazendo um pouco como o burrinho pedrês da história. Saía de lá zonzo, às nove horas da noite. Mas valia trabalhar com um Ministro que eu admirava e estimava, cada dia mais. Quanto à conferência de paz, pude rever a Alemanha, onde vi muita miséria e ruínas. Até estive em Nuremberg, na sala de julgamento dos criminosos nazistas. Qualquer um que tenha lido as primeiras páginas de Grande sertão: veredas e se lembre da história do Aleixo ou do Pedro Pindó sabe que eu sempre tive uma preocupação muito grande com a questão da existência do Mal. Mas como escrevi em um dos contos de Tutaméia: O mal está apenas guardando o lugar para o bem.
M.A.: E o senhor continuava a mandar cartas solicitando dados ao seu pai?
JGR: É claro que sim. Em 1947 escrevi a ele uma carta que dizia:
ri-me à vontade, com a história do homem que levou os cachorros para a fazenda, e ao fim de um ano voltou… latindo! Por falar nisso, pediria que o senhor me mandasse por escrito, quando tiver tempo, as palavras pronunciadas pelos homens que carregavam o defunto, aqueles que acabaram se sumindo com ele, na estrada e que eram (Deus nos livre!) dois demônios. Lembra-se da história, que o senhor contou? Também as palavras que o homem disse, ao entregar o osso aos companheiros. Creio que ele disse: ‘Está aqui, e corram que o dono vem aí atrás.’ Está certo?
Mas, o que me interessa é a história do Juca Ferreira, aquele que vinha fazendo festas, com a viola, pelo Rio das Velhas, até Pirapama. Lembro-me que era fazendeiro e tinha tenda de ferreiro, mas mais não sei. Imaginei uma história, tendo-o como personagem, e para isso precisava de saber mais detalhes. Também, sempre que se lembrar de cantigas ou expressões sertanejas legítimas, ouvidas de caipiras nossos, de Cordisburgo ou Gustavo da Silveira. E tudo que se refira a vacas e bezerros. Estou escrevendo outros livros.
M.A. : Depois vieram três anos em Paris, não foi?
JGR: Exatamente. Fui trabalhar na embaixada brasileira em 1948. Aracy e eu aproveitamos muito, viajamos pela Europa, gostei, sobretudo, da Itália. Ao viajar eu procurava me aprofundar em obras clássicas do país. Fiz uma leitura atenta da Divina Comédia, do jeito que acho que devemos ler obras de valor, aquelas que precisam ser relidas, treslidas e … meditadas. E após nossa viagem à Grécia, mergulhei na obra homérica. Foi um período muito bom. Mas com seus revezes: em 1949, soube que papai tinha câncer na laringe e teria que ser operado. Papai escapou e se recuperou bem, mas o susto foi grande.
M.A. : Depois de cumprido o tempo obrigatório o senhor voltou ao Brasil…
JGR : Sim. Em 1951 retornamos ao Rio de Janeiro e passei a ser chefe de gabinete do Ministro das Relações Exteriores João Neves da Fontoura. Ia ascendendo na carreira diplomática, mas aumentavam também o trabalho e as responsabilidades. Para você ter uma ideia: às terças-feiras, o ministro e eu subíamos a serra de Petrópolis para nosso encontro semanal com o Presidente Getúlio Vargas.
VI.
M.A. : O senhor já mencionou hoje uma carta em que dizia ao seu pai estar preparando outros livros.
JGR : E estava, mas primeiro eu gosto de fazer uma pesquisa extensa. Ainda em França, eu sonhava com um ano de licença-prêmio que me permitisse viajar pelo interior de Minas; descer o rio das Velhas em canoa, ir a Paracatu, e outras excursões. Em Paris mesmo encontrei o Dr. Mello Viana que vai todos os anos caçar onças e outros bichos, naquela região paracatuana.
M.A. : Essa excursão acabou acontecendo em 1952, o senhor poderia nos contar como foi?
JGR : Há vários anos que eu queria fazer uma viagem pelo sertão de Minas Gerais. Queria adentrar o interior mineiro para conferir os mugidos dos bois e a copiosidade do orvalho nas moitas do meloso, entre aboios, estrelas e amenas peripécias. Pude realizar esse sonho em maio de 1952, como expliquei em carta a meu amigo Mário Calábria: Estou-me preparando para, daqui a dias, ir acompanhar, rústica, árdua, autenticamente, uma boiada brava, em percurso de 40 léguas lá do sertão sagarânico, da fazenda da Sirga – entre buritizais belíssimos e chapadões de matagal inviolado – até a fazenda São Francisco, de um meu primo, lá perto de Cordisburgo. Já ando nos preparativos, arrumando mochila, cantil, roupa cáqui, pois serão 15 dias no ermo, a carne seca com farinha-de-mandioca e café com rapadura, sob sol, poeira, lama e chuva. Odisseus.
M.A. : O mês de maio parece ser especial na sua vida e na sua obra. É em maio que o senhor conhece Dona Aracy, é em maio que Riobaldo conhece o Menino (Diadorim) e depois vai reencontrá-lo como Reinaldo novamente em maio. E é em maio que sai a comitiva liderada por Manuelzão… Aliás, nesse dia, 19 de maio de 1952, o senhor anotou numa caderneta:
A gente estava em maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os finos ventos maiozinhos. (…) Ali, a gente não vê o virar das horas. E a fogo-apagou sempre cantava, sempre.
JGR : (Não diz nada. Apenas ri)
M.A. : O que o senhor aprendeu?
JGR : Nem dá pra contar assim, com tão pouco tempo. A boiada era conduzida por um vaqueiro excepcional, Manuel Nardy, conhecido por Manuelzão. Eu ia montado em uma mula chamada Balalaica, que no finzinho da viagem, quase fugiu e foi substituída pelo burrinho Canário. O tempo todo levava uma caderneta e um lápis e ia anotando tudo que via. O que não sabia perguntava ao Manuelzão e aos outros, acho até que eles ficavam cansados do meu interrogatório constante. Preenchi várias e várias dessas cadernetas que depois passei a limpo, batendo as observações à máquina. Eu anotava detalhes, vou te dar uns fragmentos:
À noite. Escuro. Estrelas. O cone negro – teto de rancho de buriti (inclinado, bem, para as águas correrem). As árvores, escuras, estrelas entre os ramos. O cincerro de um boi de carro badaleja. Os grilos.
E há, mais altas, nuvens azuis – de frio – e brancas, cosidas de sol, com ninhos de sol. Mas o pasto já perdeu a iluminação de seu chão.
M.A. : Parece um quadro impressionista, todo pontilhado…
JGR : Eu não podia perder a chance daquele contato com o sertão que seria tão fundamental para escrever Corpo de Baile e Grande sertão: veredas. Mas eu não observava somente a natureza, o contato com aqueles homens foi uma experiência inesquecível. Primeiro o Manuelzão quis me chamar de doutor, mas eu pedi que ele e os outros me chamassem de João Rosa. No primeiro dia, levantamos às quatro da manhã, eles comeram feijoada eu tomei só um cafezinho. Ninguém achava que eu iria aguentar. Ignoravam que sou essencialmente um homem do sertão. Assim que saímos, Manuelzão começou a cantar aboios para acalmar o gado. Zito ia à frente, ele era o guieiro. Tocava o berrante, que imita o berro do boi e faz com que a boiada caminhe. Além disso, Zito era também o cozinheiro. Bindóia, o poeta da turma, inicia o duelo:
‘Morena quando te vi,
Fiquei cego,
Fiquei mudo,
Me deu sezão,
Me deu febre,
Me deu tudo.
Eh, boi,
Vamo, vamo…’
Manuelzão respondeu com o mesmo tema:
‘Olá, olá, vamos lá,
Vamos embora,
Arriei meu cavalo
Passei a mão na viola
Morena se eu te contá
Minha vida você chora’
Bindóia era terrível, poderia passar a manhã inteira só cantando sobre esse tema:
‘Gavião come pinto,
Carcará come lacraia,
O que come o homem
Está debaixo da saia.
Vamo, boi. Vamo…’
Já pensou passar onze dias com uma turma dessas, cruzando o sertão?
Mas eu ia contando acerca do primeiro dia, da saída lá da fazenda Sirga. Deu meio-dia, eu estava morrendo de fome, Manuelzão parou a comitiva em uma vereda e bebeu um gole d’água. Me ofereceu um pedaço de carne seca com farinha e rapadura. Foi o jeito. Manuelzão brincou comigo:
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— Tá com medo de passar fome, né, João Rosa?
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— Tô! Resolvi garantir o estômago.
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Ao anoitecer, paramos, a turma bebeu uma pinga e jantou. Aquiles tocou sanfona e os violeiros tocaram durante horas. Toda noite era isso, o pessoal reunido em volta da fogueira, cada um contando um causo. Dia seguinte, às quatro da manhã, lá estava eu a comer feijoada… Estávamos levando 198 reses, não era uma boiada pequena não. Nem era tarefa fácil, a gente tinha que fazer pelo menos vinte quilômetros por dia, contando trechos difíceis, subidas em que o gado queria voltar. Gênio forte, homem da pólvora quente como anotei numa caderneta, Manuelzão era excepcional na condução da boiada. Quando chegamos em Andrequicé a turma se esbaldou na cachaça e na festa, todo mundo querendo arranjar namorada. Menos eu.
M.A. : Além de se divertir, o senhor aprendeu muita coisa…
JGR : Demais da conta. No Grande sertão: veredas, por exemplo, do início ao fim, eu uso materiais que obtive nessa viagem. Foi aí que ouvi Pão ou pães é questão de opiniães, que está no primeiro parágrafo do livro. É claro que essa matéria-prima serve a um propósito particular do livro, ganha um outro sentido. Outro exemplo: quando do encontro de Riobaldo com o Menino, Riobaldo, com medo, espera que a canoa seja feita com uma madeira que boia e não afunda. O Menino ensina que não, que era uma canoa feita com peroba e que canoa de peroba afunda. É coisa que anotei a lápis numa caderneta:
CANOAS:
1) que afundam: páu-d’óleo, peroba
2) que não afundam: faveira, tamboril, cedro, vinhático, imburana.
Veja que eu utilizei um conhecimento técnico, mas com um propósito dramático e filosófico, pois aí a canoa tem claramente um valor metafórico e o fato dela estar feita com uma madeira que poderia afundar é significativo.
VII.
M.A.: Falemos então de Grande sertão: veredas…
JGR: Há coisas inexplicáveis em relação a esse livro. Antes de entregar os originais, passei três dias e duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver cama, foi uma verdadeira experiência transpsíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito sem corpo, pairante, levitando, desencarnado – só lucidez e angústia. (…) Passei dois anos num túnel, num subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente… Daí, veio-me uma forte gripe, naturalmente; e, Você sabe bem, a gripe é uma das mães da humildade. Depois, tive de limpar-me dos persistentes fantasmas dos personagens criados e readaptar pouco a pouco o espírito à luz nua e crua da realidade, que é sempre áspera. A editora José Olympio percebeu a excepcionalidade do livro e apressou o lançamento, que ocorreu em maio de 1956.
M.A.: Novamente maio…
JGR: Sem assinar, eu mesmo escrevi a orelha onde avisei aos leitores que aquele era um livro diferente, terrível, consolador e estranho.
Tenho de segredar que – embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica – minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda sorte de avisos e pressentimentos. No plano da arte e da criação – já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza – decerto se propõe mais essas manifestações. (…) Quanto ao Grande Sertão: Veredas, forte coisa e comprida demais seria fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas.
Os caboclos ‘baixaram’ em mim… Só escrevo altamente inspirado, como que ‘tomado’, em transe. Aquele livro me cansou fisicamente. Acabei extenuado. Deu-me, porém, um enorme prazer. Sensação igual só senti ao escrever Miguilim. Foi outro ‘clarão’ que recebi na vida.
Eu diria que Grande sertão: veredas foi para mim o término de um desenvolvimento e, ao mesmo tempo, algo que um dia, espero, levar-me-á à meta final. É uma ‘autobiografia irracional’ ou melhor, minha autoreflexão irracional. Naturalmente que me identifico com esse livro.
M.A.: Mais do que dedicado a Dona Aracy, ele foi outorgado a ela, na dedicatória se lê: A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro.
JGR: Quando escrevia Grande sertão, minha mulher sofreu muito, porque nessa época eu estava casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, para lhe agradecer a compreensão e a paciência. Você deve saber que tenho uma mulher maravilhosa. Como sou um fanático da sinceridade linguística, isto significou para mim que lhe dei o livro de presente, e portanto, o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente a ela, e pode fazer o que quiser com ele (…) uma dedicatória é uma promessa, e devemos cumprir nossas promessas.
M.A: O livro gerou muita polêmica, com posições exacerbadas, a favor e contra.
JGR: Sim, houve uma barulhada tremenda. Deu-se em torno, sobretudo, da questão linguística. Não inventei língua alguma, embora tenha inventado, assim como muitos antes de mim assim o fizeram (Cícero, Comte, Stendhal, Voltaire e outros), algumas palavras. Meu propósito foi outro: além dos estados líquidos e sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso? Há dois componentes de igual importância em minha relação com a língua. Primeiro: considero a língua como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas consequências. Depois, existem as ilimitadas singularidades filológicas (…) nas quais existem fundamentalmente processos de origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que não se pode compreender com a razão pura. (…) E o nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. É incalculável o enriquecimento do português do Brasil, por razões etnológicas e antropológicas. Existem elementos da língua que não são captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas. Amo a língua, realmente a amo como se ama uma pessoa.
M.A.: Se o senhor pudesse voltar à Terra…
JGR: Iria dar uma boa espiada, Urucuia por lá, cheirar de novo o sertão, os currais de manhã, odor de bosta de vaca, pios de pássaros pretos. Sertanejo retarda, mas não míngua.
M.A.: Mestre Rosa, o senhor arriscaria uma autodefinição?
JGR: (Rindo) Carece de ter coragem. Principalmente estou nesta cintilante linha:
Platão Bergson Berdiaeff Cristo
Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. Sou só religião – mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa: tudo é o quente diálogo (tentativa de) com o ∞.
O ensino central de Cristo, a meu ver (o do “Reino do Céu” dentro de nós) é:
1) o domínio da natureza, a começar pela natureza humana de cada um – pela fé, que é a forma mais alta e sutil de energia, à qual o universo é plástico;
2) O amor, possibilitando a coexistência, sem o mínimo sinal de atrito, conflito, desarmonia, destruição ou desperdício. Sobre esta plataforma, o Céu, possibilidades infinitas de um sempre-evoluir, em plenitude, prazer, alegria ininterrupta; cada um invulnerável. Amor é que é o destino verdadeiro. Pois como disse o Riobaldo: Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
Eu rezo muito. Carrego comigo terços. A vida é uma voragem. Zé Bebelo é quem tem razão. Antes de vir o meu primeiro infarto, vivia rezando uma ladainha que eu mesmo inventara:
‘Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão.
– contente com minha terra,
cansado de tanta guerra,
crescido de coração.’
Sou um contemplativo fascinado pelo Grande Mistério. Todos, do sertão, sabemos querer atalhos. Queremos o mágico. O pacto. As supremas superações, a trans-vida. Gosto do Mistério; aprecio demais a Alegria, palavra clara, aberta, linda. Não tenho culpa nenhuma se, às vezes, fico triste. Sorumbático, a tristeza vem, de repente, como uma coisa estranha. Mas para mim a palavra mais bonita da nossa língua é Alegria. Letrinhas? Sete…