/ROSIANA 003 – Os jagunços de Grande sertão: veredas, são e não são reais, sendo uma mistura de jagunços com guerreiros e de sertanejos com cavaleiros medievais- o exemplo de Riobaldo e de sua iniciação

ROSIANA 003 – Os jagunços de Grande sertão: veredas, são e não são reais, sendo uma mistura de jagunços com guerreiros e de sertanejos com cavaleiros medievais- o exemplo de Riobaldo e de sua iniciação

O homem

Cheio de balanço dialético, Antonio Candido afirma que há uma simetria inversa entre homens e terra: “porque os homens, por sua vez, são produzidos pelo meio físico. O Sertão os encaminha e desencaminha, propiciando comportamento adequado à sua rudeza.” (117)

Este meio físico inóspito faz “da vida uma cartada permanente (‘Viver é muito perigoso’) e faz as pessoas criarem uma lei própria oposta à da cidade, exprimindo “essa existência em fio-de-navalha”. (117)

Ali não valiam as leis da cidade, ali a lei era feita pelos homens, “recorrendo necessariamente à guerra dos bandos”, “Por isso o indivíduo avulta e determina: manda ou é mandado, mata ou é morto. O Sertão transforma em jagunços os homens livres, que repudiam a canga e se redimem porque pagam com a vida, jogada a cada instante.” (118)

“Raros são apenas bandidos, e cada um chega pelos caminhos mais diversos.” (118)

‘Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo um homem-de-bem, estouvado, raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim.’

O “Caso mais puro” (…) foi o de Medeiro Vaz, ‘o rei dos Gerais’: concluindo que no Sertão a justiça depende de cada um, pôs fogo à fazenda dos avós e saiu a chefiar bandos.” (118)

“Assim, o Sertão faz o homem.” (119)

“Mas o jagunço de Guimarães Rosa não é o salteador; é um tipo híbrido entre capanga e homem-de-guerra. O verbo que os personagens empregam para descrever a sua atividade é ‘guerrear’, qualificando-se a si mesmos de ‘guerreiros’ e opondo-se, na força do arrojo, às artes sedativas da paz, como vêm encarnadas, por exemplo, no curioso personagem do fazendeiro seô Habão, contra cuja esperteza e diligência amolece a inteireza do jagunço.” (119)

“No código do jagunço, roubar é crime, mas cabe a coleta de tributos, – extorsões em dinheiro e requisições de gado, para manter o bando.” (119)

“Se houve no Norte de Minas bandos permanentes tão vultosos quanto os que aqui aparecem, a sua ética e a sua organização não teriam talvez o caráter elaborado que o romancista lhes dá. De fato, percebemos que assim como acontece em relação ao meio, há um homem fantástico a recobrir ou entremear o sertanejo real; há duas humanidades que se comunicam livremente, pois o jagunços são e não são reais.” (119)

“Sobre o fato concreto e verificável da jagunçagem, elabora-se um romance de Cavalaria, e a unidade profunda do livro se realiza quando a ação lendária se articula com o espaço mágico.” (119)

Transcende-se “a realidade do banditismo político, que aparece então como avatar sertanejo da Cavalaria.” (119)

“Há mais de uma afinidade entre as duas esferas, pois também o paladino foi a única possibilidade de ‘consertar’ um mundo sem lei. Daí possuírem ambos uma ética peculiar, corporativa, que obriga em relação ao grupo, mas liberta em relação à sociedade em geral. Os jagunços deste livro se regem por um código bastante estrito, um verdadeiro bushidô, que regula a admissão e a saída, os casos de punição, os limites da violência, as relações com a população, a hierarquia, a seleção do chefe. E da jagunçagem remontam à lenda.” (120)

“Isso posto, explicam-se as batalhas e os duelos, os ritos e práticas, a dama inspiradora, Otacília, no seu retiro, e até o travestimento de Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins no guerreiro Reinaldo (nome cavaleiresco entre todos), filha que era de um paladino sem filhos, como a do romance incluído por Garrett no Romanceiro” (120)

No Orlando Furioso, há uma guerreira que pena de ciúme por um herói e abate “o feroz Rodomonte” e “a Clorinda de Jerusalém libertada, morre em combate e a sua identidade é descoberta.” (120)

“O comportamento dos jagunços não segue o padrão ideal dos poemas e romances de Cavalaria, mas obedece à sua norma fundamental, a lealdade; e não há dúvida que também para eles a carreira das armas tem significado algo transcendente, de obediência a uma espécie de dever. No melhor dos casos, o senso de serviço, que é o próprio fundamento da Cavalaria.” (120)

Mas os jagunços se aproximam dos cavaleiros na vida real, que faziam algo parecido em uma sociedade sem poder central forte da mesma maneira que o Sertão e baseada na competição entre grupos rurais. Igualmente, praticavam a extorsão e o saque contra os inimigos. (120-1)

O gosto pela crueldade também aproxima os dois: episódio do velho jagunço com saudade de esfolar soldados presos com faca cega, depois de castrá-los e o comportamento de Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto (envio de 15 cavaleiros com olhos vazados e um guia caolho). (121)

Riobaldo, como tantos grandes paladinos (Roldão e Tristão, p.ex.) é de nascimento ilegítimo. “A princípio é uma espécie de escudeiro, adido a Hermógenes, a quem serve no combate; em seguida, após as provas de fogo, é armado cavaleiro, no gesto simbólico em que Joca Ramiro lhe dá o rifle; mais tarde, alcança a chefia, após um ritual de iniciação e em consequência do sacrifício de outros chefes” (…) “Aliás, com este último traço nos encontramos em presença não apenas de elementos medievais, mas de certas constantes mais profundas, que estão por baixo das lendas e práticas da Cavalaria e vão tocar no lençol do mito e do rito.” (121)

Primeiro Riobaldo não aceita a chefia, depois de ser apontado por Medeiro Vaz, mas à medida em que adere ao propósito de Diadorim de matar Hermógenes para vingar Joca Ramiro, ele “adquire a força íntima que permite as grandes decisões.” Passa a sentir também que nem todos têm as virtudes do mando. (121)

“o modo pelo qual adquire certeza da própria capacidade vem simbolizado no pacto com o diabo.” (121)

O pacto com o diabo funciona como “um rito iniciatório equivalente ao de certos romances de Cavalaria, e até certo ponto da própria regra da Cavalaria Militante.” (122)

“Como a prece, a vigília d’armas, as provações, o pacto significa, neste livro, caminho para adquirir poderes interiores necessários à realização da tarefa.” (122)

Parece, todavia, a negação da Cavalaria “que era voltada para valores cristãos, para a apropriação carismática de virtudes emanadas da própria divindade”. Mas, alega Antonio Candido, “estamos no Sertão, fantástico e real, onde a brutalidade impõe técnicas brutais de viver, onde os fenômenos de possessão religiosa, gerando beatos e fanáticos, diferem pouco, na sua natureza e consequência, dos que poderíamos atribuir à possessão demoníaca.” (122)

“Para vencer Hermógenes, que encarna o aspecto tenebroso da Cavalaria sertaneja, – cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributados ao suserano, – é necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram os outros chefes.” (122)

“Aceito este modo de ver, a cena do pacto, na encruzilhada das Veredas-Mortas, representa um tipo especial de provação iniciatória, um ritual de sentido mágico-religioso, parecido com a prova da Capela Perigosa, nas lendas do Graal. Como se trata para Riobaldo, nessa iniciação às avessas, de assimilar as potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias, a situação é necessariamente marcada por uma atmosfera de opressivo terror, parte, aliás, de muitos ritos de passagem.” (122)

“Cumprido o rito, o narrador aparece marcado pelo sinal básico da teoria iniciatória: a mudança do ser. O iniciado, pela virtude das provas a que se submeteu, renasce praticamente, havendo um grande número de sociedades que fazem a iniciação consistir na simulação da morte seguida de ressurreição. Em Grande sertão: veredas, Riobaldo sai transformado, – endurecido, arbitrário, roçando a crueldade, na prepotência das funções de mando que logo assume, em contraste com a situação anterior, em que as tinha rejeitado.” (123)

Até o sentimento por Diadorim, contido até então, “desponta com certa agressividade” (…) e “É Diadorim, aliás, quem nota imediatamente a mudança, chegando a perguntar ‘se alguém te botou malefício’.” (123)

“Essa transformação, este ingresso numa ordem de ferocidade adequada à vitória, que pretende e obtém sobre o mal (Hermógenes), através do mal (o pacto), é completada por outros sinais de caráter mágico, como a adoção do nome de guerra que Zé Bebelo lhe pusera vagamente, e quase que por pilhéria, mas que agora é assumido no significado pleno: Urutu Branco.” Isso é típico de ritos de passagem (123)

“Por último, num traço típico dos livros de Cavalaria, ele (123)
adquire o animal de exceção, o Cavalo Siruiz, fogoso, belo, infatigável, lembrando a mágica dos corcéis encantados, que com armas encantadas completam o equipamento do cavaleiro e permitem operar prodígios.” (124)

“Num plano profundo, a sucessão de chefes que morrem ou se afastam, mas em todo o caso cedem lugar, poderia ser comparada a uma série de imolações, mediante as quais a energia vai se conservando no grupo até concentrar-se em Riobaldo, herdeiro que encarna significativamente um pouco de cada predecessor.” (124)

“Produto do sertão, a força do jagunço paladino depende da força da terra; por sua vez ele é a lei desta terra, e para o ser com eficácia necessita viver uma sequência de atos e padecimentos cuja raiz, de tão funda, escapa à nossa atenção, mergulhando nas relações primordiais do homem com a terra, que deve ser propiciada para viver e dar vida, como nos ritos agrários.” (124)

“Estas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem nos levam à ideia de que há em Grande sertão:veredas uma espécie de grande princípio geral de reversibilidade, dando-lhe um caráter (124)
fluido e uma misteriosa eficácia. A ela se prendem as diversas ambiguidades que revistamos, e as que revistaremos daqui por diante.” (125)

“A ambiguidade da geografia, que desliza para o espaço lendário; ambiguidade dos tipos sociais, que participam da Cavalaria e do banditismo; ambiguidade afetiva, que faz o narrador oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da encantadora ‘miltriz’ Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor, simbolizada na suprema ambiguidade da mulher-homem que é Diadorim; ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem.”

“Estes diversos planos da ambiguidade compõem um deslizamento entre os pólos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva, – que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambiguidade inicial e final do estilo, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e escuro, artificial e espontâneo.” (125)

“Assim, vemos misturarem-se em todos os níveis o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na sua posição-chave, a partir da qual são possíveis todos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma esfera à outra. A coerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo o homem e a terra e manifestando o caráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo.” (125)

(continua amanhã, se os deuses forem bons  🙂  )

Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.

Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), “O homem dos avessos” In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.