O problema
Depois de apresentar esta magnífica análise, Candido, com humildade, a relativiza:
“É claro que essas interpretações são arbitrárias; além disso, iluminam apenas um dos muitos lados da obra, visando contribuir para que o leitor esqueça ao menos provisoriamente os pendores naturalistas a fim de penetrar nessa atmosfera reversível, onde se cortam o mágico e o lógico, o lendário e o real. Só assim poderá sondar o seu fundo e entrever o intuito fundamental, isto é, o angustiado debate sobre a conduta e os valores que a escoltam.” (125)
Em GSV “o tonus é devido à crispação incessante do narrador em face dos atos e sentimentos vividos, traduzidos pela recorrência dos torneios de expressão, elaborados e reelaborados a cada página em torno das obsessões fundamentais.” (126)
O pacto com o demônio é o “símbolo escolhido para dinamizar a recorrência”. Se antes ele era um instrumento iniciatório [de Riobaldo enquanto chefe], agora, “se encararmos a individualidade de Riobaldo, a sua condição singular de homem, o demônio volta a simbolizar, como para Fausto ou para Peter Schmilh, a tentação e o mal.” (126)
“O grande problema, para o narrador, é a existência dele: existe ou não?” (126)
[i] “Em princípio, sente que é um nome atribuído à parte torva da alma” mas sempre resta uma dúvida. Afinal, se o diabo, invocado nas Veredas-Mortas, não apareceu, por outro lado a partir daí houve nele uma mudança e “depois dela é que foi capaz de realizar coisas prodigiosas, inclusive a referida travessia do Sussuarão, fechado ao comum dos homens e docilmente aberto ao seu mando.” (126)“Daí a palavra que o autor inventou (…) para sugerir, conforme os seus processos lexicogênicos, a operação de um sortilégio sobrenatural: ‘Sobrelégio?’” (126)
[ii. O diabo não precisa existir para se fazer sentir e estar, de certo modo, presente]“E como (126)
tem consciência de que a manifestação concreta não é necessária para demonstrar a existência do Cujo, – mais princípio do que ente – permanece, no fundo, amarrado a ele, que se torna de certo modo o grande personagem, tanto mais obsedante quanto menos palpável” (…) ‘Quem muito se evita, se convive’ (127)
“Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão.” Por exemplo, a amizade ambígua por Diadorim. (127)
“O demônio surge, então, como acicate permanente, estímulo para viver além do bem e do mal; e bem pesadas as coisas, o homem no Sertão, o homem no Mundo, não pode existir doutro modo a partir duma certa altura dos problemas.‘Viver é muito perigoso’ – repete Riobaldo a cada passo; não só pelos acidentes da vida, mas pelas dificuldades em saber como vivê-la.” (128)
‘O senhor escute o meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos… Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo. O sertão me produz, depois me cuspiu do quente da boca…’ (128)
‘Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa.’ (128)
‘Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.’ (128)
“Daí o esforço para abrir caminho, arriscando perder a alma, por vezes, mas conservando a integridade do ser como de algo que se sente existir no próprio lanço da cartada. A ação serve para confirmar o pensamento, para dar certeza da liberdade.” (128)
‘Ao que naquele tempo, eu não sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia pensar com poder – por isso eu matava.’
‘Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.’ (128)
“A vida perigosa força a viver perigosamente, tendendo às posições extremas a que podem levar a coragem, a ambição, o dever.” (128)
“Pelo menos duas vezes ocorre na fala do narrador um conceito que exprime este movimento, fundamental na ética do livro e na estrutura dos seus acontecimentos (…) Riobaldo caminha para ele [o ponto a partir do qual não há retorno] e o alcança através do pacto, que é ao mesmo tempo ascese (sob o aspecto iniciatório) e compromisso (sob o aspecto moral), confirmando a sua qualidade de jagunço.” (129)
“O jagunço, sendo o homem adequado à terra, (‘O Sertão é o jagunço’) não poderia deixar de ser como é; mas ao manipular o mal, como condição para atingir o bem possível no sertão, transcende o estado de bandido. (…) O pacto desempenha esta função na vida do narrador, cujo Eu, a partir desse momento, é de certo modo alienado em benefício do Nós, do grupo a que o indivíduo adere para ser livre no Sertão, e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores, ‘os Judas’. Graças a isto é vencida, pelo menos na duração do ato, a ambiguidade do jagunço, que se faz integralmente paladino. Tanto que Riobaldo não prossegue nas armas e se retira, acompanhado por grande parte dos seus fiéis.” (129)
Passa a viver na fazenda que herdou do padrinho-pai “ao lado de Otacília, prêmio das andanças.” (129)
‘(…) o que mormente me fortalecia, foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso homem de bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes gerais da jagunçagem.’ (129)
“Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura, o homem do Sertão se retira na memória (129)
e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos.” (130)
“Desliza, então, entre o real e o fantástico, misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa. E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real. Nesta grande obra combinam-se o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional, que disputam a mente de Riobaldo, nutrem a sua introspecção tacteante e extravasam sobre o Sertão.” (130)
* * *
“Se o leitor aceitou as premissas deste ensaio, verá no livro um movimento que afinal reconduz do mito ao fato, faz da lenda símbolo da vida e mostra que, na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe. (130)
‘A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro…’ (130)
“Entremos nessa realidade fluida para compreender o Sertão, que nos devolverá mais claros a nós mesmos e aos outros. O Sertão é o mundo.” (130)
FIM do artigo
Obs: Negritos feitos por Marcos Alvito, não estão presentes no texto original; entre colchetes vêm comentários também feitos por Marcos Alvito. Os itálicos ao contrário, pertencem ao próprio texto de Antonio Candido.
Bibliografia:
CANDIDO, Antonio. (2006), “O homem dos avessos” In: Tese e Antítese, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. pp.111-130.