As sete sequências de Grande sertão: veredas:
008: “Apesar do aspecto ininterrupto da fala, apesar da falta de subtítulos ou de sinais gráficos dividindo o texto-avalanche, pode-se distinguir sete partes – sequências de tamanho aproximadamente igual (70 a 80 páginas,
009: com a exceção do trecho mediano de apenas três páginas e meia) com uma certa unidade temática e formal interna.
O número sete é, aliás, um número frequente neste texto e constitui, sem dúvida, uma reminiscência do discurso místico, da alquimia e da cabala. No universo da alquimia, que reconhece sete planetas, há também sete etapas que levam do nada à plenitude, do ‘nigredo’ no início da obra ao reconhecimento do inominável e à perfeição da ‘obra’ mística concebida como matéria sublimada. A primeira palavra riobaldiana – ‘Nonada’ -, assim como seu questionamento dos dogmas religiosos e dos pressupostos filosóficos, evocam com toda força os esforços heterodoxos das diferentes tradições místicas.
Nossa exposição em sete capítulos seguirá a progressão destas sete etapas, descritas em suas delimitações e características. (…)
PRIMEIRA SEQUÊNCIA
A abertura do romance caracteriza-se pela fala evocativa e por permanentes deslizes associativos. Em lugar de uma ‘história’ articulada, o narrador fornece algo como um inventário de episódios fora do lugar, ou seja, sem pontos de referência fixos. Neste caos de fragmentos de uma história-por-vir está inserida uma série de onze causos – pequenos relatos ordenados segundo as convenções narrativas habituais. A justaposição destes dois modos do contar – o do aparente caos das divagações reflexivas de Riobaldo e o da ordem convencional dos causos – aponta para a pergunta: ‘Qual é a maneira certa de narrar?’
Esta pergunta pela ordem ficcional é reiterada ao nível temático pela interrogação dos representantes tradicionais da Ordem: Deus e outras figuras paternas (o delegado, o padre, os pais de jagunços, o pai do Menino, etc.). A primeira sequência levanta assim a pergunta global do princípio ordenador do universo, do homem e da linguagem.
010: SEGUNDA SEQUÊNCIA
Ao ‘caos’ segue-se a ‘ordem’ de um relato estritamente cronológico constituído por uma biografia sumária de Riobaldo: infância com a mãe Bigrí, adolescência nas fazendas do Padrinho Selorico Mendes, estadia com o bando de Zé Bebelo, reencontro com o ‘Menino’ – Reinaldo-Diadorim que introduz Riobaldo no bando do Hermógenes (p. 123). Este bando é descrito como um ‘inferno’ no qual proliferam todos os tipos de maldade e de perversão, contrastando com a perfeição atribuída a Joca Ramiro. O narrador relata esta experiência de maneira objetiva, isto é, como algo que é observado de fora, com o qual o personagem-narrador não se identifica e que ele rejeita como repugnante. Esta objetividade e a não-identificação vão se modificando na terceira sequência. A pergunta desta parte diz respeito às causas dos acontecimentos.
TERCEIRA SEQUÊNCIA
Riobaldo luta do lado do Hermógenes, ou seja, ele se implica praticamente na ação do chefe infernal. Esta implicação trará à tona a confusão e a identidade secreta que unem estes dois homens, apontando assim para a temática da ‘mistura’ inextrincável, da ‘doideira’ e do ‘verter’ sub-reptício. O contraste e a contradição entre Hermógenes e Joca Ramiro culminam na cena do julgamento na Fazenda Sempre Verde, na qual os dois chefes revelam-se como princípios opostos, porém complementares (Hermógenes representando a selvageria primordial da luta à morte, Joca Ramiro – pelo menos nesta cena – a justiça e o desvio simbólico das regras). A oposição termina no assassinato de Joca Ramiro e na guerra intestina dos jagunços: os ‘hermógenes’ contra os ‘ramiros’. A questão visa o ser do jagunço: o que significa ser jagunço?
011: QUARTA SEQUÊNCIA
Esta curta sequência constitui um ponto de suspensão do fluxo narrativo. Ela é uma espécie de ‘parêntese meta-narrativo’, pois dissolve em um grau máximo a sintaxe, chegando a uma mera justaposição de elementos, temas e imagens. Esta ‘constelação’ hiperfragmentada salienta, de um lado, os principais temas que afloraram na primeira metade do romance, anunciando, de outro, elementos ainda incompreensíveis para o leitor e que apenas a segunda metade do romance elucidará. Ela orienta, embora inconscientemente, a atenção do leitor.
QUINTA SEQUÊNCIA
Esta sequência inicia com o relato da campanha fracassada de Zé Bebelo contra os hermógenes. Ela é representada pelo narrador como uma descida ao inferno e como uma exploração dos abismos da condição humana. O horror da guerra e da traição, da fúria de destruição e de auto-destruição, de sadismo e de avidez, leva Riobaldo a sentir ‘medo do homem humano’ – tanto dos outros homens como de si mesmo. É esta experiência do horror que conduz Riobaldo ao pacto. A interrogação desta sequência focaliza o fundamento do ser humano: o que é um sujeito?
SEXTA SEQUÊNCIA
Após o pacto, Riobaldo assume a chefia do bando com o nome de Urutú Branco e em uma atmosfera de alegria exaltada. Sua nova presença de espírito o leva a substituir às convenções dos antigos chefes uma re-encenação parodística das regras jagunças. A representação da guerra é distorcida pelas imagens, símbolos e metáforas da feminidade e da sexualidade. O desregramento carnavalesco chega a um limite na presença do velho fazendeiro Ornelas, verda-
012: deiro ‘pater familias’ cuja autoridade impressiona e inquieta o chefe sem limites. Seu mando portará doravante a marca do reconhecimento da autoridade pacífica e respeituosa [sic] da vida e dos direitos alheios. Na busca da Ordem, parece ser necessário ir até o fundo da desordem. Daí a pergunta: o que está no fundo da desordem?
SÉTIMA SEQUÊNCIA
A última sequência relata a batalha do Tamanduá-tão dividida em duas fases. Na primeira, Urutú Branco domina a situação, aparecendo como chefe glorioso, totalmente fechado ao medo ou a qualquer outra aflição sensível. A segunda fase, ao contrário, é marcada pelas perturbações da paixão que fazem com que Urutú Branco perca o controle da batalha. A representação da morte de Diadorim traz à tona o aspecto fantasmático e irreal deste personagem. Um dos sentidos embutidos na palavra ‘tamanduá’ – ‘questão moral difícil de responder’ – esboça uma primeira resposta à pergunta: de que trata a estória?”
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr
(1992) Grande Sertão: Veredas, roteiro de leitura. São Paulo:Ática.