/ROSIANA 028 – A primeira sequência de Grande sertão: veredas – Rosenfield

ROSIANA 028 – A primeira sequência de Grande sertão: veredas – Rosenfield

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr

(1992) Grande Sertão: Veredas, roteiro de leitura. São Paulo:Ática.

009: PRIMEIRA SEQUÊNCIA (p. 9-86)

A abertura do romance caracteriza-se pela fala evocativa e por permanentes deslizes associativos. Em lugar de uma ‘história’ articulada, o narrador fornece algo como um inventário de episódios fora do lugar, ou seja, sem pontos de referência fixos. Neste caos de fragmentos de uma história-por-vir está inserida uma série de onze causos – pequenos relatos ordenados segundo as convenções narrativas habituais. A justaposição destes dois modos do contar – o do aparente caos das divagações reflexivas de Riobaldo e o da ordem convencional dos causos – aponta para a pergunta: ‘Qual é a maneira certa de narrar?’

Esta pergunta pela ordem ficcional é reiterada ao nível temático pela interrogação dos representantes tradicionais da Ordem: Deus e outras figuras paternas (o delegado, o padre, os pais de jagunços, o pai do Menino, etc.). A primeira sequência levanta assim a pergunta global do princípio ordenador do universo, do homem e da linguagem.”

013: Primeira sequência: ‘Qual é o princípio ordenador do universo?’

“A primeira sequência aparece, tal como a abertura de uma peça musical, como uma exposição do tema do romance. Na fala evocativa e associativa de Riobaldo surgem fragmentos de uma vivência íntima – tanto passada como atual – girando em torno do sertão, do bem e do mal, de Deus e do demônio. Estes fragmentos dos aspectos mais variados da existência ocasionam permanentes deslizes e digressões reflexivas que justapõem realidades de diferentes ordens. Percepções atuais (o tiro e outros fenômenos ou coisas do sertão), reminiscências passadas (episódios da vida pregressa ou histórias ouvidas em outros tempos) e interrogações de ordem ética surgem sem transições explícitas, e o narrador não os situa em suas relações temporais ou causais.

Consequentemente, embora figurem nestas 80 páginas quase todos os principais episódios e personagens da vida de Riobaldo, estes não se concatenam nem lógica, nem cronologicamente, desnorteando o leitor pela aparência caótica

014: e desordenada. As evocações da vida jagunça, de Diadorim e do Hermógenes, de Zé Bebelo, de Joca Ramiro e de Medeiro Vaz, do padrinho Selorico Mendes e da mãe Bigrí, das mulheres amadas, enfim, de todos os eventos do passado, não seguem a lógica dos nexos causais. Os vínculos causais e cronológicos característicos da narrativa tradicional do ocidente visam a explicação do porquê das coisas narradas, evidenciando a razão de eventos ou de ações nas suas causas, isto é, em acontecimentos, ações ou motivos anteriores a eles.

Ora, em Grande Sertão: veredas o narrador parece apagar deliberadamente estas conexões explicativas, como se não se tratasse de chegar a uma compreensão da história. Tudo indica que o leitor e o ‘Senhor’ ao qual Riobaldo se dirige são convidados a uma travessia sinuosa não apenas do sertão real e geográfico, mas, sobretudo, do sertão das letras e das palavras. Neste último, os vínculos causais e cronológicos são substituídos por vínculos imagéticos e fonossemânticos – isto é, pelas relações secretas e não necessariamente lógicas entre sons e imagens que criam um segundo nível de significação.”