/ROSIANA 029 – A segunda sequência de Grande sertão: veredas – Rosenfield

ROSIANA 029 – A segunda sequência de Grande sertão: veredas – Rosenfield

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr

(1992) Grande Sertão: Veredas, roteiro de leitura. São Paulo:Ática.

010: SEGUNDA SEQUÊNCIA

Ao ‘caos’ segue-se a ‘ordem’ de um relato estritamente cronológico constituído por uma biografia sumária de Riobaldo: infância com a mãe Bigrí, adolescência nas fazendas do Padrinho Selorico Mendes, estadia com o bando de Zé Bebelo, reencontro com o ‘Menino’ – Reinaldo-Diadorim que introduz Riobaldo no bando do Hermógenes (p. 123). Este bando é descrito como um ‘inferno’ no qual proliferam todos os tipos de maldade e de perversão, contrastando com a perfeição atribuída a Joca Ramiro. O narrador relata esta experiência de maneira objetiva, isto é, como algo que é observado de fora, com o qual o personagem-narrador não se identifica e que ele rejeita como repugnante. Esta objetividade e a não-identificação vão se modificando na terceira sequência. A pergunta desta parte diz respeito às causas dos acontecimentos.

025: SEGUNDA SEQUÊNCIA: ‘QUAL É A CAUSA DOS ACONTECIMENTOS, DO MEDO E DO MAL?’

“O encontro com o menino e a travessia do Rio São Francisco, que encerram a primeira parte do romance, dando lugar a uma avalanche de perguntas, nunca deixarão de interrogar Riobaldo. O que fez com que Riobaldo tivesse que cruzar duas vezes o caminho do seu futuro amigo Diadorim? Como se fosse para responder a esta pergunta, a segunda sequência inicia com uma investigação do próprio passado, expondo uma biografia muito sumária da infância e da adolescência de Riobaldo. O narrador fornece assim pela primeira vez pontos de partida temporais e espaciais que permitem reconstruir a ordem dos eventos evocados na primeira parte.

O fato de que estas informações básicas sejam fornecidas tardiamente obriga o leitor, de certa maneira, a reler agora, sob um ponto de vista diferente, o que ele já conhece, criando assim a superposição de visões levemente, mas decisivamente defasadas. A segunda leitura percebe diferentemente os mesmos fatos já lidos, de forma que o leitor sente que sua percepção-compreensão é um processo em permanente evolução. Cada dado é suscetível de modificar-se a partir de novas relações com outros dados ou considerações.

026: A questão do pai e da ordem à luz da própria infância

Na primeira sequência, a questão da ordem e da função ordenadora dos personagens paternos permaneceu em um nível muito indireto e abstrato. Tratava-se de um questionamento quase metafísico e aparentemente independente da história e da vida do narrador. No resumo biográfico que Riobaldo fornece agora estas preocupações aparecem intimamente ligadas à sua história particular. Filho de uma mãe solteira, chamada simplesmente de ‘a Bigrí’, Riobaldo conhecerá seu ‘padrinho’ Selorico Mendes apenas após a morte da mãe e sem que este padrinho lhe esclareça explicitamente sua verdadeira filiação.

Embora Riobaldo desfrute dos privilégios de um rapaz de família (o conforto material e a educação reservados às crianças de um rico fazendeiro), ele ocupa ao mesmo tempo e contraditoriamente o lugar de um sujeito com uma posição social marginal. Simbolicamente, ele permanece carente de uma filiação legítima garantida pela figura paterna cuja palavra represente convincentemente a lei e a ordem – tanto ao nível da família, como ao da sociedade e do universo. A questão da filiação não legitimada dói, tanto assim que o adolescente não suporta a alusão de um agregado da fazenda a Selorico Mendes como seu verdadeiro pai. Na perturbação de um ‘pobre menino do destino’, ele foge do seu lar, desvendando nesta fuga a precariedade do seu lugar simbólico na sociedade.

Esta precariedade anuncia-se já na reserva cautelosa com a qual o menino responde à falta do seu pai em reconhecê-lo simbolicamente: ‘não gostava dele… nem desgostava’ recorda o narrador dos seus sentimentos em relação ao seu benfeitor – distância crítica que se reverte, às vezes, em franca hostilidade. Assim, por exemplo, Riobaldo lembra-se do ‘enjôo’ que lhe inspira a admiração verbosa

027: que o covarde fazendeiro externa contando causos da vida jagunça e ele chamará o pior cavalo das suas andanças de ‘padrim Selorico’.

Complementaridade e promessa: a construção narrativa do ‘par’ Riobaldo-Diadorim

Se este fato biográfico da paternidade faltante evidentemente não explica o destino de Riobaldo, ele contribui, no entanto, secretamente ao fascínio cativante que o Menino e, mais tarde, Reinaldo-Diadorim exercerão.

Certamente, não é por acaso que os amigos aparecem como pólos diametralmente opostos: ao desconhecimento do pai, corresponde, na vida de Diadorim, o desconhecimento da mãe. Se Riobaldo viveu a ternura e o carinho femininos, Diadorim impressiona sobretudo pela firmeza e pela segurança unívocas com que se refere ao pai como princípio e representante de uma lei que rege os sentimentos mais imediatos – como o ‘medo imediato’ que subjuga Riobaldo na travessia do São Francisco. ‘Meu pai disse que eu careço de ser diferente’, responde o Menino às perguntas sobre sua surpreendente e estranha valentia, como se a palavra de um pai tivesse efeitos imediatos sobre a realidade dos sentimentos.

É o regramento das emoções mais fundamentais – a ordenação dos sentimentos que vinculam o filho ao pai e à mãe em um laço propriamente familial – que desempenha papel capital no amor que Riobaldo sente por Diadorim:

O que entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora aquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. (GSV 109, grifoS de Rosenfield)

028: A aparente passividade de Riobaldo, que segue seu amigo Diadorim pelo sertão sem compartilhar sua compulsão de vingança e nem mesmo a convicção da justiça das campanhas jagunças, torna-se compreensível não apenas na perspectiva do amor. Pelo contrário, este amor estranho, conflituado e sofrido, elucida-se quando considerado na perspectiva da promessa que o Menino e Diadorim representam. Suas palavras e todo o seu comportamento são, com efeito, voltados para o pai venerado, criando desta maneira a perspectiva de um contato possível com este ordenador maravilhoso. Joca Ramiro, que o narrador já conheceu na sua juventude através dos relatos maravilhados do padrinho, assim como durante o curto encontro noturno no qual Riobaldo serviu de guia ao bando do Hermógenes, aparece aos olhos de Riobaldo como uma figura sagrada – entre mítica e religiosa -, recebendo frequentemente os títulos do Salvador judeu-cristão (Messias) ou dos seus substitutos temporais na terra (imperador, rei, etc.).

Amor e conhecimento: uma faceta da figura de Diadorim

Neste sentido, é fundamental não negligenciar, concomitantemente ao relato fatual da amizade e do amor entre os amigos, as reflexões e conversas que acompanham a decisão repentina de Riobaldo em seguir o bando de Reinaldo. Nestas ponderações, Diadorim é percebido em uma estreita analogia com as imagens da mãe Bigrí – do seu cheiro, do carinho das suas mãos e da ternura dos seus olhos. Mas este retorno da presença materna acontece agora sob o signo de um pai venerado e forte, o que provoca em Riobaldo um questionamento insistente das qualidades éticas de Joca Ramiro. Tudo se passa entre as linhas como se as figuras de Selorico Mendes e de Zé Bebelo, que Riobaldo aceitou

029: transitoriamente como exemplares, não tivessem sido suficientemente convincentes como representantes da ordem.

As sucessivas ‘fugas’ do adolescente, que se chama a si mesmo um ‘fugidor’ e um ‘seguidor’, compreender-se-iam assim como périplos de uma grande busca, da ‘travessia’ do menino-sem-pai em direção a um substituto simbólico deste ordenador dos sentimentos, dos valores e dos lugares que cada um pode legitimamente ocupar na família, na comunidade ou na sociedade. Como em todos os grandes relatos de buscas metafísicas (por exemplo, nos relatos bíblicos ou nas ‘demandas’ dos cavaleiros medievais), este percurso torna-se uma verdadeira errança. Errança no duplo sentido da palavra: procura sinuosa, demorada e desamparada do princípio do bem que passa, entretanto, pelo erro, pela descoberta ativa, prática e cognitiva do mal.

Logo, Diadorim não pode ser visto apenas como pessoa amada, mas como figura quase que alegórica que introduz Riobaldo no caminho do conhecimento tanto intelectual quanto sensual de si e da condição humana. A marca desta mediação que é a função textual do personagem anuncia-se desde o nome Dia-do-rim. O prefixo dia- significa em grego ‘através de’ ou ‘mediante’, de forma que o nome do belo e meigo amigo pode vir a significar ‘através da dor’ ou ‘travessia pela dor’. Cabe lembrar também que a nossa cultura veio a associar intimamente o pecado sensual com o pecado intelectual: a sedução de Adão por Eva passa pelo desejo de igualar-se a Deus, isto é, de saber a distinção do bem e do mal. Nos sentimentos confusos e ‘nebulosos’ jagunço-narrador, esta camada do nosso patrimônio cultural está, sem dúvida, presente.”

O conhecimento do mal

Após o re-encontro com o Menino-Reinaldo, Riobaldo é introduzido por este no bando comandado pelo chefe

030: Hermógenes – aquele mesmo que faz parte das lembranças marcantes da juventude. Desta época, Riobaldo relata a irrupção noturna, na fazenda de Selorico Mendes, dos homens de Joca Ramiro. O padrinho oferece abrigo e proteção, encarregando Riobaldo de servir como guia ao bando de Hermógenes. Desta experiência, três imagens permanecem indelevelmente gravadas na sua memória.

Primeiro, a beleza imponente de Joca Ramiro, sua personalidade calma, firme e distante de grande chefe; segundo – como se fosse um contraponto, um constraste negativo -, a feiúra repugnante do seu ‘segundo, Hermógenes, cuja voz e cujos gestos e atitudes evocam bichos rasteiros, permitindo, retrospectivamente, a associação com os movimentos e as posturas repulsivas dos Urubús. Terceiro, as imagens auditivas, olfativas e epidérmicas da canção de Siruiz, do cheiro dos cavalos e da precipitação do orvalho sob o firmamento estrelado do alvorecer.

Nesta atmosfera suspendida entre a noite e o dia, a imagem luminosa de Joca Ramiro é negativamente contrabalançada pela figura sombria do ‘segundo’. O contraste violento gera uma pergunta que permanece no limite da consciência e de explicitação: ‘Por que um chefe tão glorioso escolhe como seu segundo um ser tão baixo e repulsivo?’ ou ‘Este contraste, não atingiria ele a própria imagem da perfeição de Joca Ramiro?’.

Esta pergunta será articulada mais tarde junto com suspeitas quanto à fidelidade de Hermógenes, porém Diadorim rejeita ambas, expressando sua indignação diante da suposta ingenuidade do amigo que se recusa a crer na perfeição de Joca Ramiro. Nota-se aqui que Riobaldo e Diadorim são também diametralmente opostos nas suas atitudes intelectuais: Diadorim tem a convicção da fé que não duvida, mas adere firmemente a pressupostos questionáveis. Riobaldo, ao contrário, demonstra a inquietude do observador agudo que interroga os pressupostos à luz da experiência viva.

031: Riobaldo olha, vê e observa quase que obsessivamente o mundo a seu redor. Sempre sensível a matizes sutis, ele é profundamente atingido pelos contrastes violentos que parecem mantê-lo num campo de tensão insuportável. Fascinado pela beleza de Joca Ramiro e de Diadorim, ele se verá confinado ao acampamento de Hermógenes, que aparecerá como verdadeiro inferno estético e ético. A selvageria e a crueza deste bando salta aos olhos em todos os gestos, hábitos e atitudes. Em um primeiro momento, ele vê com horror os jagunços gastando suas horas de descanso para afiar os dentes à procura de feições bestiais (p.127), comendo ‘cobra cru’ ou ‘farejando como cachorro sabe’ as supostas inclinações a práticas homossexuais dos seus companheiros (p.124), divertindo-se nas sebaças matando, pilhando e estuprando – enfim, atiçando e praticando a violência latente do ser humano como uma ‘virtude’ maligna ou um ‘valor’ perverso.

Hermógenes torna-se a figura emblemática desta bestialidade sem limites:

Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza.

Ele gostava de matar por seu miúdo regozijo. […] quando um inimigo foi pego, ele mandou: – ‘Guardem este’ Sei o que foi. Levaram aquele homem, entre as árvores de uma capoeirinha, o pobre ficou lá, nhento, amarrado da estaca. O Hermógenes não tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia caças alegria pior nos olhos dele. […] passado aquilo: ele estava contente de si, com muita saúde. Dizia gracejos. (GSV p. 132)

Riobaldo rejeita violentamente o horror que se desdobra diante de seus olhos, porém encontra-se ao mesmo tempo cativo da sua compulsão de vê-lo – como se esse mal lhe dissesse respeito de maneira muito particular:

Eu não queria olhar para ele, encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé dele […] Olhava as mãos. (GSV p. 123)

032: Perdido no olhar obsessivo, Riobaldo se sente tão desamparado que chega a invocar Zé Bebelo do qual fugiu, precisamente por não suportar a violência dos combates:

Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um filho deve gostar do pai, […] Zé Bebelo devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rás, com o inferno da jagunçada! (GSV p. 132)

O mal e o verter ‘hermogêneo’

O estranho nome do ‘príncipe de tantas maldades’- Hermógenes – é derivado de um deus grego, Hermes, e significa ‘gerado por Hermes’, ‘descendente de Hermes’. Ora, na Antiguidade, um dos filhos mais famosos de Hermes é o deus Pã (o ‘hermogêneo’) cuja posição ambígua tem uma certa analogia com a do chefe jagunço. Este último pertence ao universo luminoso e bom de Joca Ramiro, mas representa ao mesmo tempo seu lado sombrio e oposto. Uma contradição análoga aparece na figura de Pã, cujo corpo é dividido em duas metades: uma que aponta para a sua origem celestial e que tem forma humana (a parte de cima), outra que pertence ao mundo da baixeza material, isto é, o corpo da paixão e do sexo abaixo da cintura tem a forma de pés de bode, do animal emblemático da luxúria.

Na mitologia tardia, Pã é muitas vezes oposto a Cupido como a face violenta e destruidora da paixão frente à ternura sublimada e respeitosa da vida. Já para Platão (no diálogo socrático Crátilo), Pã é a encarnação da condição trágica do homem aprisionado pela ambiguidade, pela impureza e pelo incessante verter das coisas no fluxo temporal. A unidade dos contrários que estão simultaneamente presentes em um mesmo termo ou personagem escandaliza

033: Platão e ele a entende apenas como um desafio para purificá-los e separá-los nitidamente.

Em Grande sertão: veredas, esta tradição parece ser retomada em sentido contrário. Riobaldo, que procura as coisas e os valores claros e unívocos, descobre a mistura inextrincável dos opostos. Neste sentido, não é mera coincidência que o belo e alvo amigo Diadorim conduza Riobaldo não ao bando do bom Joca Ramiro ou à fazenda São João do Paraíso, mas ao bando ‘infernal’ do Hermógenes. ‘Ah, lá era um cafarnaum’, comenta o narrador antes de elaborar demoradamente os vínculos que vao se tramando com o chefe odiado. Riobaldo sucumbe, com efeito, a um fascínio diametralmente oposto ao que o liga a Diadorim: se este o cativa pela beleza terna, o Hermógenes o cativa pelo horror violento.

Riobaldo é incapaz de impor limites à maldade do Hermógenes, mas ele não consegue, tampouco, moderar sua curiosidade compulsiva observando estes atos selvagens. Invocando Zé Bebelo para ‘liquidar com o inferno da jagunçada’, ele oferece-se a si mesmo como alvo a ser eliminado, como se tratasse de por fim a uma contradição insuportável e incompreensível.

Esta contradição aflora de maneira mais insistente quando Riobaldo tenta objetivar seus sentimentos em relação ao Hermógenes:

Eu podia rechear de balas aquele nagã próprio […] O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais. (GSV p. 145)

Amor e ódio

Mais adiante, na última sequência do romance, este ‘nem sei’, esta nebulosidade dos sentimentos, manifesta-se na surpreendente afirmação relativa ao Hermógenes:

034: ‘Até amigo meu pudesse mesmo ser’. Na segunda sequência, no entanto, a narração desliza para considerações sobre amor e ódio – sentimentos estes que são opostos apenas em aparência. O narrador exemplifica este paradoxo retomando o episódio do encontro com Otacília.

Contrastando com a descrição do bando ‘infernal’, este episódio, que já foi resumido na primeira sequência do romance, será agora re-contado de maneira mais elaborada enquanto exemplo inesquecível do verter enigmático das paixões (amor e ódio). Ele mostra, em um primeiro momento, a maleabilidade dos sentimentos de Riobaldo, que ama, simultaneamente, Otacília e Diadorim. Em um segundo momento, ele revela o ódio de Diadorim frente ao namoro entre Otacília e Riobaldo – ódio este que poderia se compreender como efeito do ciúme. A maneira de o texto insistir na consideração do ódio (a palavra ódio é repetida quatro vezes) indica, no entanto, que há mais do que a mera evocação do ciúme:

E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. O que é dose de ódio – que vai buscar outros ódios. Diadorim era mais ódio do que amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. (GSV p.147)

O tema do ódio, extremamente elaborado no percurso do romance, converge para a seguinte constatação explícita:

[…] ódio é aquele que não carece de nenhuma razão (GSV p.298)

Portanto, o ciúme como causador da raiva de Diadorim é insuficiente como explicação deste episódio. Ressalte-se que o parágrafo sobre o ódio se encerra com uma alusão à imagem do corpo morto da virgem esfaqueada, da qual o leitor sabe – embora apenas numa segunda leitura – que se trata de Diadorim abraçado e enroscado no corpo despedaçado de Hermógenes.

035: O texto cria assim uma densa trama de ecos remetendo o leitor de notações anteriores a posteriores e vice-versa – ecos que necessitam ser recordados e justapostos a fim de se construir ativamente o sentido do relato. Este trabalho de reconstrução ativa encontrará Diadorim permanentemente associado ao ódio (e isto independentemente do ciúme). Assim, por exemplo, no início do romance, Riobaldo surpreende-se da manifestação ambígua do ódio de Diadorim em relação ao inimigo:

E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o ódio dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado, Ódio com paciência; o senhor sabe? (GSV p.26)

A conotação passional e quase erótica (suspirava… como se fosse por amor) reflete-se não apenas na imagem final dos corpos de Diadorim e de Hermógenes abraçados na morte, mas igualmente na estranha associação de Riobaldo diante do horror sangrento de uma batalha:

[…] chega se queria combinar de botar fora as armas-de-fogo, para o aproximaço de se avir em mãos às duras brancas, para se oferecer fim, oferecer faca. (GSV p. 176)

O sangue e a morte aparecem aqui como dádivas oferecidas corpo a corpo e com suspiros que lembram o abraço amoroso. A imagem cria desta maneira um estreito paralelismo entre ódio e amor que se revelam como duas facetas de um mesmo fundo passional do ser humano. É nesta perspectiva que se tornam compreensíveis as aparentes contradições dos sentimentos de Riobaldo ao declarar ao odiado Hermógenes como seu ‘amigo’ ou a procurar obsessivamente ver o que ele declara não querer ver.

O fascínio – positivo no caso de Diadorim, negativo no caso de Hermógenes – que Riobaldo sente em relação a estes dois personagens tão opostos indica que estes representam talvez os dois polos invertidos e complementares de um

035: mesmo fenômeno, de uma paixão obscura que constitui o fundo amórfico da alma. As reversões permanentemente possíveis dos sentimentos serão concretamente elaboradas na terceira sequência na qual o nojo e a repulsa contra o Hermógenes transformam-se em uma curiosa aproximação e na surpresa admirativa diante das ‘artes’ e dos estratagemas desse chefe.”