ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr
(1992) Grande Sertão: Veredas, roteiro de leitura. São Paulo:Ática.
TERCEIRA SEQUÊNCIA
010: Riobaldo luta do lado do Hermógenes, ou seja, ele se implica praticamente na ação do chefe infernal. Esta implicação trará à tona a confusão e a identidade secreta que unem estes dois homens, apontando assim para a temática da ‘mistura’ inextrincável, da ‘doideira’ e do ‘verter’ sub-reptício. O contraste e a contradição entre Hermógenes e Joca Ramiro culminam na cena do julgamento na Fazenda Sempre Verde, na qual os dois chefes revelam-se como princípios opostos, porém complementares (Hermógenes representando a selvageria primordial da luta à morte, Joca Ramiro – pelo menos nesta cena – a justiça e o desvio simbólico das regras). A oposição termina no assassinato de Joca Ramiro e na guerra intestina dos jagunços: os ‘hermógenes’ contra os ‘ramiros’. A questão visa o ser do jagunço: o que significa ser jagunço?
037: A terceira sequência inicia com uma descrição minuciosa da escaramuça travada pelo Hermógenes contra os Zé Bebelos que o narrador encerra com a seguinte pergunta dirigida ao Senhor:
De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. […] O jagunço Riobaldo. Fui eu? (GSV p.166)
A resposta está secretamente inscrita no relato e, embora o narrador não saiba extraí-la claramente, ele exorta o Senhor (e o leitor!) a escutar atenciosamente a fim de rastreá-la.
A aproximação entre Riobaldo e Hermógenes
O que chama particularmente atenção no relato desta batalha é o movimento progressivo de aproximação entre Riobaldo e Hermógenes. Na segunda sequência do romance, o narrador insistira em mostrar uma distância e uma diferença que o separavam do terrível chefe: ‘a pessoa daquele mons-
038: tro Hermógenes não encostava amizade em mim’ (p.155). Na terceira sequência, este distanciamento transforma-se progressivamente. Durante o ataque contra os Zé Bebelos, o humor alterado pelo perigo e pelo combate faz com que sua atenção sobreexcitada capte agora uma série de aspectos que unem os dois personagens:
Ri mais, Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o Hermógenes era um como eu, igual, igual […]. (GSV p. 162)
No fogo do combate a vontade inicial de acabar com o ‘rei de maldades’ desmancha-se numa estranha impossibilidade:
E eu não podia virar só o corpo um pouco abocanhar minha arma nele Hermógenes, desfechar? Podia não, logo senti. (GSV p. 163)
O deslizar dos sentimentos continua até Riobaldo se sentir um e idêntico com o chefe desprezado:
e o Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado – era feito fosse eu mesmo (GSV p. 164)
Riobaldo, que tinha rejeitado todo e qualquer contato com o Hermógenes (ele ‘não encostava amizade em mim’), encontra-se agora fisicamente apoiado, recebendo, além disto, conselhos de como suportar melhor a estafa do combate. E mesmo que Riobaldo já tenha comido, estando portanto sem fome, ele aceita comida e água com cachaça – ‘agradecendo ao corpo um poucado…’e seguindo os conselhos e as regras do Hermógenes.
No final do ataque rechaçado pelos Zé Bebelos, toda a atenção de Riobaldo está voltada para o chefe odiado ‘porque, na desordem de mente do alvoroço, aquela hora era só no Hermógenes que eu via salvamento, para meu cão de corpo’. (GSV p.165) Tudo se passa como em um
039: devaneio, um pesadelo que se torna realidade: Riobaldo se vive como se fosse o próprio Hermógenes, os dois seres e corpos, que estavam separados e opostos, encontram-se e identificam-se na batalha.
É na perturbação após a batalha que Riobaldo questiona o sentido e a finalidade da existência dos jagunços. ‘Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia […] esperar de Deus perdão de proteção?’ Jõe Bexiguento, a quem se dirigem estas perguntas, tem uma resposta muito simples e que elimina totalmente a dimensão ética da preocupação riobaldiana: ‘Uai?! Nós vive… – foi o respondido que ele me deu’. (GSV p.169)
Ser jagunço parece resumir-se no viver-a-guerra e existir-na-violência – sem perguntas e sem alternativas. Este é o destino maligno que os pais do sertão reservam aos seus filhos. Como o pai do menino do Nazaré, que reconhece o filho como homem a partir do primeiro assassinato cometido por este, o pai de Jõe traça o mesmo destino para seu filho que constata com a maior naturalidade:
Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jaguncêio… (GSV p.169)
O causo de Maria Mutema: tensão entre maldade natural e consciência ética
Além destas respostas, Jõe conta causos. A história rememorizada pelo narrador é o causo de Maria Mutema, onde a dimensão ética da vida e do agir humano aparecem como algo totalmente exterior e independente ao ser humano. Maria Mutema, casada com um homem que não lhe faz nenhum mal, mata o marido ‘sem motivo nenhum, sem malfeito nele nenhum, causa nenhuma -; por que, nem sabia’. (GSV p. 173) Ela aparece assim como a encarna-
040: ção de uma maldade ‘natural’, totalmente inconsciente de si mesma, e que desconhece dúvida, hesitação ou remorso.
Mais do que isto, esta maldade sem causa ou finalidade (que desdobra o tema do ódio sem causa) parece divertir-se de maneira perversa brincando com a consciência ética do Padre Ponte que Maria Mutema tortura com falsas declarações de amor, mentindo que matara o marido por paixão pelo Padre. O Padre morre de desgosto e Maria Mutema vive ainda muitos anos sem remorso até que, um dia, um missionário forasteiro reconhece miraculosamente sua culpa e seu crime expulsando-a da igreja. É este reconhecimento imprevisível e maravilhoso que provocará a total reversão de Maria Mutema:
Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa. (GSV p.174)
O causo de Maria Mutema expõe e exemplifica com muita clareza um mal que está aquém de qualquer compreensão e que se distingue de atos de maldade cometidos por certos motivos e em vista de certas finalidades. Não é egoísmo, nem cobiça ou ciúme, nem vingança ou ressentimento, que motivam os sucessivos assassinatos de Maria Mutema, porém simplesmente sua natureza, seu ser-assim.
O sem-fundo da alma e do narrar
É neste momento do relato – diante do ‘vão’ e do ‘ôco’ da alma humana – que o herói-narrador tem de admitir sua perplexidade e, com ela, a impossibilidade de fornecer um relato coerente:
Conto ao senhor é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. (GSV p. 175)
041: Se a alma permanece incompreensível e obscura, o homem perde não apenas o bom caminho do agir ético. A escuridão e os labirintos do ‘sertão’ (geográfico e espiritual) dificultam também a ordem do narrar, a consistência do relato.
O episódio seguinte volta a interrogar a perplexidade diante da observação, difícil e dolorosa de aceitar, do mal gratuito e da violência sem causa nem fim. Com a finalidade de encontrar uma razão para a natureza antipática e sombria do Hermógenes, Riobaldo tenta situá-lo à distância de Joca Ramiro, imaginando-o como um potencial rival ou como um inimigo. Neste esforço, ele retoma uma antiga conversa na qual Joca Ramiro lhe parecia fazer objeto de uma inveja subversiva. Aludindo num tom de voz ambíguo ao nome de Joca Ramiro, ele espera obter a confirmação de suas suspeitas:
Experimentando o homem, só aproveitei foi para uma deixa: – ‘Joca Ramiro…’ – eu disse, com uma risadinha minha velhaca, que entre dois podia pegar qualquer incerto significado. (GSV p.177)
Entretanto, para sua grande surpresa, Hermógenes responde ‘sério, confioso: que Joca Ramiro era maludo capitão, vero no real’. Como conciliar esta contradição insuportável entre a bestialidade natural dos ‘cães’ do Hermógenes e a perfeição que os relatos atribuem a Joca Ramiro?
O guerreiro arcaico como homem-animal: Hermógenes, Joca Ramiro e Siruiz
A identificação do guerreiro como homem não civilizado, selvagem e bestial, é estranha à tradição literária cristã. Esta veio a idealizar o homem de armas como ‘soldado de Cristo’- braço ordenador a serviço do Rei con-
042: cebido como representante de Deus na terra. Literaturas muito mais antigas, no entanto, como, por exemplo, a mitologia romana, aproximam-se em muitos aspectos da representação dos selvagens jagunços. Como os filhos da loba, Rômulo e Remo – fundadores de Roma – os bandos de jagunços desdenham as limitações e regras da civilização, fazendo apenas fugazes e violentas incursões na vida ordenada das cidades cujos hábitos e regras eles desconhecem. No lugar da comida cozida e temperada, por exemplo, eles comem apenas carne mal assada (detalhe que é ressaltado também como distintivo dos selvagens heróis dos mitos).
Os guerreiros míticos (os Lupercas em Roma, os Gandharva na Índia, as tropas de Odin na Germânia) formam um grupo de seres à parte da humanidade normal. Além da juventude, eles portam as marcas do animalesco e do mágico, da natureza bestial (cavalo, cão, cabra) e do sobre-humano (poderes mágicos). Eles representam o aspecto da destruição fertilizante, isto é, da violência inovadora e conquistadora. A eles se contrapõe a categoria dos ‘seniores’ (dos mais velhos, portanto, ponderados e graves), encarregados de institucionalizar os costumes e de conservar os bens conquistados. Cabe aos seniores a exata observação das obrigações e promessas, da justiça e da equidade, que exigem a contenção dos reflexos impulsivos e a limitação dos excessos juvenis. No sistema mítico, é o equilíbrio destas duas categorias que assegura a harmonia social.
A tensão equilibrada entre dois pólos opostos (o do selvagem Hermógenes, de um lado, o do ‘senior’ Joca Ramiro do outro) parece prevalecer no início do romance. Mas na reminiscência do primeiro encontro com as tropas de Joca Ramiro, o narrador destaca três elementos: Hermógenes, Joca Ramiro e (a canção de Siruiz). Ocorre que o nome Siruiz é um anagrama de Sirius, o cão do caçador mítico Orion. Este cão, maldito como seu dono, participa
043: das caçadas desmedidas com as quais Orion desafia a deusa Artemisa ameaçando de morte todas as criaturas protegidas por ela. Artemisa vinga-se deste desafio expulsando Orion e seu cão Sirius dos seus bosques e metamorfoseando-os em estrelas.
O elemento Siruiz-Sirius na memória de Riobaldo é, assim, a marca de um desequilíbrio latente. Ele assinala desde cedo a tendência cada vez mais óbvia da existência jagunça para a caça-guerra sem fim e a destruição sem limites. Embora Diadorim tente convencer Riobaldo da missão quase messiânica das campanhas jagunças, este persiste nas suas perplexidades diante do ‘ódio sem razão’.
Joca Ramiro: o princípio do bem e sua falha secreta
Hermógenes simboliza, portanto, menos um simples rival de Joca Ramiro, do que uma força natural que põe em perigo os princípios da justiça e da cultura representados por Joca Ramiro. No final da segunda sequência, Riobaldo começa a se sentir dividido, não sabendo mais a que princípio obedecer e invocando Joca Ramiro como salvador:
[Hermógenes] era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. […] Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. […] Mas Joca Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. (GSV p. 155)
A oposição dos dois princípios (natureza selvagem e cultura ordenada por leis) aparece também nos espaços que os dois chefes habitam respectivamente: o Hermógenes reina num acampamento “infernal” marcado pela bestialidade,
044: enquanto Joca Ramiro retira-se periodicamente para sua Fazenda de São João do Paraíso. Nas conversas dos jagunços, Joca Ramiro aproxima-se assim da imagem dos Reis míticos da Idade Média (o Rei Arthur ou o Rei Marcos), concebidos como garantia do bem, da ordem e da redenção. O nome ‘imperador em três alturas’ (GSV p. 138) evoca esta visão feudal do rei como representante de Deus na terra, bem conhecido [sic] dos romances do Rei Arthur morando em uma região longínqua e maravilhosa.
Na releitura, entretanto, a perfeição de Joca Ramiro revela-se manchada por um defeito capital. A função de um Rei-ordenador (tanto de antigos mitos como no imaginário medieval e renascentista) é assegurar o lugar certo a cada membro da comunidade e a de impedir que a força impulsiva dos guerreiros perturbe a convivência pacífica do grupo. Ora, o leitor aprenderá que Joca Ramiro é o ‘nome rodeante’ que equivale a um ‘mandado de ódio’ (GSV 234). Na retrospecção, Riobaldo percebe o pai de Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins como um homem que não soube assegurar seu papel de pai simbólico, isto é, como ordenador dos lugares, dos papéis e das relações na família.
A questão que nunca será respondida, e que permanecerá como enigma incitando a infinitas releituras do relato, é a de saber por que não houve, na Fazenda de São João do Paraíso, lugar para uma menina-moça? Quem era a mãe desta filha de Joca Ramiro, e qual era sua relação com o dono da fazenda ‘paradisíaca de São João’? Por que a pequena Maria Deodorina sentiu-se obrigada a sacrificar seu ser-feminino a fim de obedecer à palavra paterna: ‘carece de ser diferente, muito diferente…’ (GSV p. 86), tornando-se um valente cabra, uma donzela guerreira e um ‘fantasma’? Riobaldo conseguirá ver o registro do seu nome de menina na certidão de nascimento (cf. GSV p.458), mas ele não saberá nada além disso. Ninguém se lembra dessa menina, como se ela não tivesse jamais existido.
045: O tema da ‘donzela guerreira’ e sua variação
O tema da donzela guerreira existe nos contos do folclore universal, das ilhas celtas até a China. Observa-se, no entanto, nesta tradição, que a moça adota seu papel de guerreira camuflada apenas durante um momento de crise, voltando, posteriormente, para a sua vida normal, para o seu marido ou amante. Diadorim distingue-se portanto deste tema de maneira significativa: ele aparece como aprisionado no seu papel de guerreiro, de forma que surge às vezes como figura sobrenatural, de ‘corpo fechado’. Nenhum amor, nem a amizade intensa com Riobaldo, o liberam deste destino que significa a transformação perversa do amor em ódio: ‘Diadorim era mais ódio do que amor?’ (GSV p.147) Diadorim vive a paixão na forma da ânsia da guerra, na ‘febre de acertar e de vingar’ (p.268) e ‘suspirando de ódio como se fosse por amor’ (p.26).
Neste contexto da vida voltada para o ódio e a violência guerreira, chama atenção o nome ‘Marins’, presente tanto no nome do pai quanto no da filha. Ele porta a marca do mar, dos movimentos marítimos selvagens que o imaginário universal sempre associou aos movimentos igualmente selvagens da paixão. Destas paixões, o ódio parece ser a mais obscura e a mais fundamental – a ‘coisa solta e cega’- que arrasta os jagunços iguais ao herói da mitologia grega, Heracles:
Heracles, o filho de Kadmos, ora engulido, ora exaltado pelas ondas de uma vida de trabalhos sem fim, iguais ao mar. (Sófocles, Traquínias, vv. 105-135)
Esta ‘sina’, o destino que os pais do sertão reservam aos seus filhos, parece reduzir-se a um ‘mandado de ódio’ que separa radicalmente os jagunços do mundo feminino e de relações viáveis com as mulheres. Os jagunços são pre-
046: dadores até no amor – raptam e estupram sem unir-se de maneira estável a uma mulher. Sua atenção é voltada para a ‘lavora sangrenta’ da guerra – disposição esta que é sublinhada na figura de Sô Candelário, o chefe que ‘caçava a morte’:
[…] Sô Candelário caçava era a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por que? Digo ao senhor: ele tinha medo de esta com o mal-de-lázaro. (GSV p.186)
O ‘mal-de-lázaro’ é a lepra que se encontra, há milênios, associada ao pecado carnal, à transgressão sexual e à sensualidade erótica. Mas o texto do romance não responde claramente à pergunta de Riobaldo: ‘Lepra – mais não se diz: aí que o homem lambe a maldição de castigo, Castigo de que?’ (p. 186) De novo, esta resposta precisa ser construída a partir das notações indiretas do texto e tudo indica que a transgressão dos jagunços consiste no abuso constante em relação ao domínio do feminino.
De um lado, há os jagunços como Hermógenes que, por princípio, não gostam de mulheres – ‘Eh. Apreceia, não. Só se não gosta…’ (p.180) responde um jagunço à pergunta se Hermógenes ‘também gosta de mulher?’ Mais tarde, Riobaldo saberá que esta rejeição do feminino é mútua. A mulher de Hermógenes dirá sobre o corpo morto do marido: ‘Eu tinha ódio dele’. (p. 452)
De outro lado, além desta violenta exclusão e separação entre jagunços e mulheres, há uma incompatibilidade mais sutil. Nota-se, com efeito, que nenhum dos grandes chefes é jamais representado como chefe de família, como esposo responsável pela vida de mulher e de filhos. Todos estes homens aparecem apenas como progenitores de filhos ilegítimos ou secretos, se não é que se destacam como defensores de uma castidade guerreira que desvia todas as forças para o combate. Medeiro Vaz abandona a vida sedentária e queima sua fazenda, Zé Bebelo segue o exemplo de Joãozinho Bem-Bem – o lema ‘sempre sem mulher e valente em qualquer combate’.
047: Ora, esta exclusão da dimensão sexual e erótica significa um desequilíbrio da economia passional. Esta perturbação pode ser vista como uma espécie de represa de energias vitais que se manifesta, de um lado, no medo, derramando-se, de outro lado, na paixão desregrada de ver o sangue, na ânsia e na procura ativa da morte.
O julgamento na fazenda Sempre Verde: reversão – doidice
A predileção riobaldiana pelas mulheres, seu carinho verdadeiro por Nhorinhá, Otacília e todas as outras moças que conheceu, contrastam com a atitude dos jagunços acostumados a uniões sumárias e violentas como o rapto e o estupro. Os costumes jagunços parecem desviar o fogo erótico para a paixão mais arcaica da destruição.
Freud mostra que a destrutividade natural não tem, em um primeiro momento, nenhuma conotação sádica. Ela existe independentemente do prazer erótico de infligir dor e adquire esta significação ao fazer regredir a atividade erótica (voltada para a vida) para o estágio mais primitivo da destruição que desconhece e desrespeita o outro ser vivo. O sadismo constitui assim a regressão de um estágio mais avançado a um país primário de humanidade.
Hermógenes parece ser a figura emblemática desta regressão possível do homem, encarnação da condição humana perversa – sempre disposta às inversões mais paradoxais, como, por exemplo, a caça da morte e o gozo do ódio e da destruição gratuita. Este fundo obscuro do ser humano manifesta-se de maneira exemplar na cena do julgamento na Fazenda Sempre Verde. Joca Ramiro aparece neste julgamento como o grande justiceiro que introduz uma inovação capital na existência jagunça. Em vez de matar e destruir sumariamente o inimigo, ele concorda em poupar a vida de Zé Bebelo, a fim de investigar sua culpa e de infligir uma pena simbólica correspondente. A
048: inovação substituiria a guerra primitiva e selvagem por uma guerra civilizada, regida por leis e não apenas pelo impulso passional e violento.
O julgamento termina com um aparente triunfo da justiça regrada – Zé Bebelo terá o direito de viver e será apenas exilado do território dos bandos de Joca Ramiro. Uma leitura atenta discernirá, no entanto, duas sombras inquietantes nesta ‘justiça’ principiante. De um lado, os discursos dos chefes revelam que um jagunço concebe a guerra como um fim em si mesmo. Ela não serve para alcançar um alvo ou um objetivo visando outro estado do que o da guerra (por exemplo, a convivência pacífica ou o regramento justo das relações entre os homens). Guerrear aparece, ao contrário, como uma diversão fechada sobre si, um prazer gratuito que procura sua permanente renovação. De outro lado, Hermógenes e Ricardão mostram-se totalmente inconformados e atingidos por este procedimento demorado e simbólico da justiça. Hermógenes expressa abertamente seu ressentimento e sua avidez pela destruição sangrenta do inimigo. Riobaldo observa:
O Hermógenes e o Ricardão – eles dois eram chouriço e morcela. (GSV p.213)
Em outras palavras, estes chefes reduzem-se a envelopes cujo único conteúdo é sangue, querendo encher-se (como chouriço e morcela) da substância vital das suas vítimas. Os dois chefes, Ricardão, o ‘bruto comercial’, e o sádico Hermógenes apresentam-se aqui como uma dupla, como duas versões do mesmo ser. Isto indica que, na lógica do romance, a avidez de dinheiro é concebida apenas como outra forma de violência primordial, podendo associar-se a esta como seu braço executor:
De ripipe, espiei o Hermógenes: este preteou de raiva. O Ricardão não acabava de cochilar, cara grande de sapo. O Ricardão, no exatamente, era quem mandava no Hermógenes. Cochilava fingido, eu sabia. (GSV p.206)
049: A ordem aparente do julgamento repousa assim precariamente sobre a raiva e o ódio pulsante. É esta raiva primordial – mais do que o personagem ou o indivíduo Hermógenes – que vai destronar e matar Joca Ramiro. Irredutível a qualquer regra, este fundo selvagem aparece como uma matéria sem forma, como uma avalanche que ameaça soterrar as construções frágeis da cultura.
Cabe assinalar que esta associação entre a violência e a avidez retornará no transcurso do livro. Por exemplo, na figura do rico fazendeiro Seu Habão que tudo escraviza e que suscita em Riobaldo a fantasia de um rio entrando e destruindo a casa do seu padrinho indefeso.
A existência pacífica dos fazendeiros nas suas pacatas cidades pode vir a confundir-se com a violência sem piedade do sertão. As reversões perversas do mal vindo à tona na própria virtude não têm limites nem ‘pastos demarcados’ – como diz o narrador do sertão no primeiro parágrafo do romance. Pela experiência nas proximidades do Hermógenes, Riobaldo sente-se profundamente implicado nesta confusão ilimitada do bem e do mal.
São também estas as imagens que encerram a terceira sequência. Na tentativa de vingar rapidamente o assassinato de Joca Ramiro, os ramiros são incapazes de encontrar os ‘Judas’ do Hermógenes. Os bandos inimigos parecem estar secretamente misturados, permeáveis uns aos outros, de forma que não chegam a se opor claramente:
[…] não vimos, não ouvimos, não soubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e impedir. […] Atravessaram por nós, sem a gente perceber, como a noite atravessa o dia, da manhã à tarde, seu pretume dela escondido no brancor do dia, se presume.
Os hermógenes aparecem, assim, como o inconsciente do ser humano, presente em todas as manifestações deste, cortando seus caminhos e perturbando sua existência sofrida, mas nunca visto e jamais reconhecido.
050: A transição para a curta parte mediana do texto é o resumo de um trecho já relatado – o mando de Medeiro Vaz sobre os homens que permaneceram fiéis a Joca Ramiro, a volta e a chefia de Zé Bebelo até a batalha vitoriosa na Fazenda São Serafim.”