/ROSIANA 031 – A quarta sequência de GSV – Rosenfield

ROSIANA 031 – A quarta sequência de GSV – Rosenfield

011: QUARTA SEQUÊNCIA

Esta curta sequência constitui um ponto de suspensão do fluxo narrativo. Ela é uma espécie de ‘parêntese meta-narrativo’, pois dissolve em um grau máximo a sintaxe, chegando a uma mera justaposição de elementos, temas e imagens. Esta ‘constelação’ hiperfragmentada salienta, de um lado, os principais temas que afloraram na primeira metade do romance, anunciando, de outro, elementos ainda incompreensíveis para o leitor e que apenas a segunda metade do romance elucidará. Ela orienta, embora inconscientemente, a atenção do leitor.

051: Quarta sequência: ‘O que é saber tudo?’

Esta curta sequência, de um pouco mais de três páginas, representa um ponto de suspensão da narração. ‘Suspensão’ não significa aqui interrupção temporária do fluxo linear. Embora a anedota fatual (o relato cronológico dos eventos e das ações) prossiga, o narrador parece querer dirigir a atenção, mais uma vez, para a dimensão situada além dos fatos e das aventuras da vida. No início da sequência, o narrador sublinha que o relato está, sob um certo aspecto, encerrado. Para compreender o ‘ponto dum fato’, isto é, o problema moral e ético além do enredo de aventuras, seria suficiente reler e revirar a primeira parte da narração. Na verdade, tudo já está elipticamente ‘apontado’: os fragmentos da segunda metade do romance estão esboçados como sombras precursoras que a narração subsequente apenas elucidará.

O encerramento desta sequência aponta para a narração por vir, salientando que o ponto de fuga dos fatos narrados será a culpa e o erro do narrador que aí se revelarão.

Entre estas duas articulações que encerram a primeira e abrem a segunda parte, o texto parece fazer jorrar uma

052: série de elementos já conhecidos: os nomes dos principais personagens, lugares, bichos e rios, assim como os temas-mestres – nonada, Deus, demo, medo e pacto afloram nos fragmentos de uma divagação que desliza e salta abruptamente de uma associação à outra. A compreensão de cada uma destas associações comprimidas em fórmulas herméticas depende, é claro, de uma leitura ativa do restante do texto – daquele ‘remexer vivo’ que o narrador exige insistentemente do Senhor. Esta parte do texto constitui um verdadeiro ‘magma’- a fusão de todos os elementos essenciais em uma matéria hiperconcentrada. A ideia do magma – matéria primordial que constitui o centro do planeta e na qual tudo está potencialmente contido – parece perseguir o autor João Guimarães Rosa em toda sua vida. Sua primeira obra, um conjunto de versos até hoje inéditos por vontade do autor, intitula-se ‘Magma’.

No ‘intermezzo magmático’, o leitor parece ser convidado a ouvir, deixando livre curso à sua sensibilidade que se encarregará de estabelecer os vínculos que ligam estes elementos aparentemente desconexos a outras notações muito distantes no texto já narrado e no texto por vir. É este trabalho que atualizará a significação, as possibilidades significantes virtuais da matéria-prima poética: sons, palavras, imagens.

Apontaremos aqui apenas um dos elementos evocados – a figura de Diadorim. O nome do amigo surge, neste trecho, em três associações. A primeira o menciona no contexto do sertão e das travessias:

Saí, vim, destes meus Gerais: voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias… Diadorim, os rios verdes. (GSV p.235)

Um dos ‘rios verdes’ é o Urucúia, com sua dupla face de bravo e manso, que remete à dupla face do próprio Diadorim, valente e meigo, masculino e feminino.

053: A segunda menção liga o elemento Diadorim à cegueira do narrador:

Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei mal: (GSV p.236)

Diadorim ‘me veio’ – isto é, surgiu, invadiu a existência de Riobaldo – como a manifestação concreta da impossibilidade do saber. Ao saber impossível do princípio, das regras e da ordem, substitui-se o ‘adivinhar’ e o ‘sonhar’, ou seja, a intuição fantasmática.

A terceira menção vai no mesmo sentido:

O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. (GSV p.236)

Diadorim enquanto ‘sentimento’ do narrador e do personagem Riobaldo aparece assim como figura-construção da alma sensível, daquilo que os antigos concebem como a ‘paixão’. Mas as aflições do corpo, a dor que medeia Diadorim, levará do sentir e do não-saber à errança e à exploração cognitiva da travessia literária.

As pistas sugeridas aqui dependem evidentemente da nossa leitura e interpretação global da obra. Elas já foram preparadas pelo trabalho sobre as outras sequências que vêm agora ‘informar’ nossos reflexos associativos. Com isto, queremos apenas salientar que as constelações do trecho mediano são, em si mesmas, incompreensíveis, constituindo um convite para intermináveis releituras do romance como um todo.