/ROSIANA 032 – A quinta sequência de GSV – Rosenfield

ROSIANA 032 – A quinta sequência de GSV – Rosenfield

ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr

(1992) Grande Sertão: Veredas, roteiro de leitura. São Paulo:Ática.

011: QUINTA SEQUÊNCIA (237-320) [pp. 313-424 da Nova Fronteira; pp. 442-606 da Nova AGUILAR em pdf]

Esta sequência inicia com o relato da campanha fracassada de Zé Bebelo contra os hermógenes. Ela é representada pelo narrador como uma descida ao inferno e como uma exploração dos abismos da condição humana. O horror da guerra e da traição, da fúria de destruição e de auto-destruição, de sadismo e de avidez, leva Riobaldo a sentir ‘medo do homem humano’ – tanto dos outros homens como de si mesmo. É esta experiência do horror que conduz Riobaldo ao pacto. A interrogação desta sequência focaliza o fundamento do ser humano: o que é um sujeito?

054: QUINTA SEQUÊNCIA: ‘O QUE É UM SUJEITO?’

Nonada: o tema da vanitas (vazio, vaidade)

Estamos agora na segunda metade do romance e as primeiras palavras – ‘Vemos voltemos’ – indicam, já pelo seu ritmo, o movimento monótono e circular das andanças vãs do bando chefiado por Zé Bebelo. Parecem encerrados os tempos gloriosos das invenções e das artimanhas coroadas de surpreendentes sucessos. As paradas se seguem umas às outras, intermináveis e insignificantes. O inimigo, entretanto, se subtrai:

No borrusco, o Hermógenes corria, longes, de nós, sempre. Às artes que fugiam. (GSV p.238)

A travessia torna-se árida e estéril – como o próprio sertão na entrada da seca: ‘Chapadão, chapadão, chapadão’. (238) E o texto pontua esta atmosfera de paralisia e morte com os devaneios de sensualidade e ternura, reduzidos, na cabeça de Riobaldo, ao ‘gozo de minha idéia’. As lembranças eróticas tornam-se pálidas idéias nas Veredas desérticas:

Veredas, No mais, nem mortalma. Dias inteiros, nada, tudo o nada – […]. (GSV p.239)

055: A formulação inusitada ‘nada, tudo o nada’ ressalta que o nada torna-se uma coisa quase que concreta, como se fosse um imenso e interminável espaço vazio.

A segunda metade inicia, assim, com a reelaboração, com uma espécie de reescritura da primeira metade, cuja palavra de abertura era ‘Nonada’. Esta palavra, que significa na fala sertaneja ‘algo de pouca importância’ ou ‘bagatela’, enche-se agora de novos sentidos e vem a significar: no universo do nada, no vazio, no oco, no vão. Todas estas figuras do nada ocupam, nesta segunda metade do romance, cada vez mais espaço, reforçando assim a atmosfera pesada de loucura, de vaidade e de errança.

Da mesma forma, o tiro ao alvo do parágrafo inicial (p.9) torna-se agora um tiro de guerra: ‘Deram um tiro’ (p. 246) abrindo a batalha na Fazenda dos Tucanos que acrescenta ao terror da destruição a sombra desoladora da traição.

O sujeito subjugado pelo corpo e pela alma

A quinta sequência prolonga a reflexão pessimista que encerrava a primeira metade do livro. A terceira sequência ia no sentido de despojar o ser humano de todas as suas qualidades éticas e racionais. O homem aparece como um bicho selvagem, dominado pela sua alma bestial e propensa a todas as perversões. Esta perspectiva subverte totalmente a visão convencional do sujeito humano na nossa cultura. Com poucas exceções, a teologia e a filosofia vêem no ser humano um sujeito dotado de vontade, de liberdade e de razão, isto é, o portador de uma ação livre. O homem é assim suposto compreender seus atos e dominar os impulsos do seu corpo, realizando nesta liberdade a transcendência que o aproxima de Deus.

056: Em GSV, ao contrário, tudo indica que este sujeito encontra-se inviabilizado e renegado:

Mundo, o que em se estava, não era para gente: era um espaço para os de meia-razão. (GSV p.239)

Neste mundo de meia-razão, o homem não domina o seu corpo, nem consegue desfrutar dos prazeres que este proporciona, porque tudo se confunde, se inverte e se reverte até assumir formas monstruosas. O corpo torna-se um fardo, que pesa e aperta como excrementos, e a atividade sexual encontra-se reduzida a um onanismo repulsivo:

Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas moitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. – É essa natureza da gente… – ele disse. (GSV p. 240)

Por ironia, o nome deste onanista, derivado de ‘Conceição’, ‘conceber’, evoca de um lado o fruto da união física de um homem e de uma mulher, de outro, o aspecto espiritual do amor, o amor divino que se materializa na imaculada conceição da Virgem. Ambas as conotações estabelecem apenas um contraste, uma espécie de paródia, com a esterilidade e o aspecto vergonhoso que revela aqui essa ‘natureza da gente’. As sensações mais exaltantes como a excitação erótica parecem curto-circuitar-se e reverter-se no seu contrário – sensação de nojo, de desperdício e de poluição.

O ‘vavavagar’ – as andanças sem fim e sem finalidade precisa no mundo da ‘meia-razão’ – traz consigo o ‘vavagar’ da mente e da imaginação que percorrem as sinuosas veredas do corpo e da alma. Neste sentido, é importante não perder de vista os inúmeros jogos de palavras, trocadilhos e anagramas que pontuam este episódio sobre as divagações amorosas. O trecho elabora simultaneamente o sofrimento embutido no verter das emoções

057: – os altos e baixos da imaginação erótica que oscila livremente entre fantasias heterossexuais, homossexuais e auto-eróticas. Este parágrafo começa assim:

A monte andante, […] Amor eu pensasse. Amormente. (GSV p.240)

‘A monte andante’ traz as significações da altura, da exaltação, da alegria, como também a conotação erótica do ‘montar’ do ato sexual. ‘Amor eu pensasse’ introduz os devaneios eróticos do narrador, mas comporta pela homofonia a indicação local ‘a mor’ – ‘mais abaixo’, apontando para as ‘baixezas’ fantasmáticas nas quais o narrador se adentrará. O aspecto propriamente fantasmático – isto é, o jogo com imagens mentais – é sublinhado na invenção lexical ‘amormente’, que representa o neologismo de um advérbio composto de AMOR e MENTE. Ele conta, com efeito, como suas fantasias deslizam da figura virginal e pura de Otacília para as imagens de mulheres mais experientes – ‘mulher ministrada, da vaca e do leite’. E o narrador termina por surpreender sua imaginação fixada no belo amigo Diadorim, fantasia homossexual que Riobaldo tenta apagar em seu germe:

De Diadorim eu devia de conservar um nojo. De mim, ou dele? (GSV p.240)

O episódio termina com a confissão sofrida do próprio onanismo:

Com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei. Ao que me veio uma ânsia. (p.240)

O corpo passional revela-se aqui como um corpo subjugado pelas formas infinitamente variadas e mutantes (vertentes!) da fantasia, da sexualidade fantasmática. Se Riobaldo – o jagunço e o narrador – sofre de um intenso sentimento de culpa, este não se refere apenas a sua amizade

058: ambígua e tingida de homossexualismo com Diadorim. O que o desespera é muito mais a maleabilidade absolutamente ilimitada dos sentimentos e a incapacidade do ser humano em domar, dirigir e dar forma a estas permanentes invenções fantasmática que representam ao mesmo tempo inversões e reversões.

Zé Bebelo e as reversões malignas da invenção

Esta problemática da impossibilidade de comandar a própria vontade e da ilusão dos que acreditam seguir o caminho reto das suas intenções é retomada, imediatamente após a sequência sobre os devaneios sexuais, ao nível da campanha periclitante de Zé Bebelo. Este chefe, cujo nome já representa um anagrama demoníaco reversível no nome ‘Belzebú’, expressa, em um primeiro momento, um representante da idéia moderna do Estado. Seu lema ‘Ordem, paz e a constituição da lei’ e sua idéia de transformar o sertão em um mundo ordenado pela reflexão racional, pela ciência e pelo trabalho evocam os princípios seguidores de Auguste Comte, do forte movimento positivista que conheceu o Brasil. No início, Zé Bebelo representa um pólo oposto – o do Estado ordenado segundo princípios racionais – ao ‘mundo de meia-razão’, de doidice e de violência do sertão.

Entretanto, as sentenças permanentemente reiteradas de Zé Bebelo começam a soar vazias, sobretudo quando ele toma o comando dos próprios jagunços (contra os quais ele lutava no início), enredando-se em uma guerra sem êxito nem fim. As explicações e os projetos do chefe prolixo começam a cansar Riobaldo, da mesma forma que o cansavam os relatos do seu padrinho Selorico Mendes: ‘De que é que aquilo me servisse? Me cansava’. (241) Sem que

059: Riobaldo refletisse conscientemente, o enfado transforma-se sub-repticiamente em ceticismo:

Além de que Zé Bebelo comandava. – Ao que vamos, vamos, meu filho, Professor: arrumar esses bodes todos na barranca do rio […] – Assim de loguinho não aprovei, então ele imaginou que eu estava descrendo. (GSV p.243)

Logo depois, contudo, o bando de Zé Bebelo é surpreendido pelos hermógenes na Fazenda dos Tucanos e na descrição da batalha ecoa a monotonia de eternas trocas de tiros:

Atirei. Atiravam.

Isso não é isso?

Nonada. (GSF p. 248)

Mas esta atmosfera de repetição sempre-igual criada por palavras dispostas no papel como versos será suspendida por um ventinho novo soprando no próximo parágrafo. Este começa com “A aragem” – o que significa ‘brisa’, mas também ‘ocasião propícia’. Ocasião propícia para o que?, para quem?

A narração deixa aflorar lentamente as percepções dispersas que Riobaldo teve de um comportamento alterado de Zé Bebelo. Foi este comportamento realmente suspeito ou será isto uma impressão errônea? Seja como for, Riobaldo relembra a ‘voz de combinação’ e não de autoridade com a qual Zé Bebelo o guia, no meio do combate, para um cômodo a fim de ditar cartas. Trata-se de missivas dirigidas aos oficiais do Governo, chamando-os de libertadores, e Zé Bebelo, que tinha adotado o nome de Zé Bebelo Vaz Ramiro ao assumir o comando dos jagunços, assina com seu nome civil: ‘José Rebelo Adro Antunes, cidadão e candidato’ (p.250)

O relato mantém a possibilidade da traição de Zé Bebelo na maior ambiguidade, nada confirma que este tenha

060: mantido seu bando de propósito na Fazenda dos Tucanos a fim de entregar os jagunços às tropas do Governo. O que conta não é tanto o que Zé Bebelo quis ou intencionou, mas aquilo que se tornou possível imaginar. Nesta perspectiva, é interessante observar a curiosidade quase diabólica e uma certa despreocupação ética com que Riobaldo observa – sem denunciá-los – os gestos suspeitos de Zé Bebelo. Riobaldo parece ser cativado pela agilidade das combinações mentais do chefe capaz de se aproveitar de todas as situações para manter sua posição de mando – tanto faz se é como soldado do governo, como jagunço ou como representante democrático (cidadão e candidato). A figura de Zé Bebelo aparece assim como uma paródia de um tipo de político brasileiro que se distingue por uma maleabilidade ideológica sem limites.

A percepção aguda que Zé Bebelo tem das constelações mutantes das forças opostas e sua falta de hesitações em aproveitar-se de todas as possibilidades que surgem no horizonte parecem transformá-lo sempre de novo em dono da situação. Nesta perspectiva, tudo indica que a traição na Fazenda dos Tucanos não foi planejada de longa data, mas que Zé Bebelo aproveitou-se apenas da ‘aragem’, da ocasião propícia.

Durante um certo tempo, Riobaldo compactua passivamente com a situação, até o momento em que um novo elemento modifica a constelação e, com ela, a sua atitude. É neste momento que Riobaldo assinalará, com palavras ambíguas e encobertas, que ele está ciente das possibilidades de traição inscritas na situação, deixando entender que ele não consentirá. Não é, portanto, pela identificação com a causa jagunça que Riobaldo enfrenta Zé Bebelo. Tampouco visa ele destronar o chefe com a finalidade de ocupar seu lugar. Tudo se passa como se o desafio riobaldiano visasse a autoconfiança ilusória que Zé Bebelo tem em relação ao domínio racional sobre as situações e que aflora na atitude pretensiosa com que ele chama os jagunços de

061: ‘Beócios, sem idéias…’ (p.264) Esta palavra, cujo raio semântico (ingenuidade simplória) não está longe da do atributo ‘seguidor’ que Riobaldo reserva para si mesmo, faz com que este perca sua confiança em Zé Bebelo:

…Os beócios, sem idéias… Não chegam a ser contrários para mim! – ele muxuxou, até desapontado. A modo que eu, em Zé Bebelo, quase que tinha perdido toda minha fiança (GSV p. 264-5)

É neste momento que algo reage em Riobaldo: ‘Ali, era a vez’. (p. 265)

Agir racional ou agir circunstancial

A ação de Riobaldo não é o resultado de uma determinação racional ou de uma decisão consciente. Ele parece agir, ao contrário, seguindo intuições e palpites que captam múltiplas e contraditórias possibilidades. Estas contradições tendem a perturbar as decisões racionais e unívocas. Neste sentido, é importante observar que Riobaldo não argumenta, diz, nem propõe nada ao enfrentar Zé Bebelo. Ele apenas salienta sua capacidade de ver e perceber: ‘Aí, na hora horinha, estou junto perto, para ver. A para ver como é, que será vai ser…’ (p.265) Riobaldo não acusa, porém somente assinala que as circunstâncias apontam para mais de um desfecho. E, de novo, é apenas a situação, a reação de Zé Bebelo repreendendo e ameaçando Riobaldo, que desencadeia o enfrentamento – ‘arrepentinamente’ e ‘no vertiginosamente’ como salienta o narrador, portanto sem tempo para refletir, pensar, planejar.

Ora, a forma estranha que toma este enfrentamento visa precisamente os fundamentos do sujeito da ação:

No mundo não tem Zé Bebelo nenhum… Existiu, mas não existe… Nem nunca existiu… Tem esse chefe nenhum… Tem

062: criatura nem visagem nenhuma com essa parecença presente nem com esse nome… – eu estabeleci, em mansas idéias. (GSV p. 265)

Riobaldo nega a existência e todo os atributos do ser existente: nomes, títulos e aparências (visagem, parecença). Ele fala em ‘mansas idéias’, sem raiva ou agressividade, como se se tratasse de uma evidência que o ser, a existência e consequentemente a ação são meras vaidades sem consistência. E como para confirmar esta fragilidade da existência, Riobaldo comenta: ‘Eu estava estando’ (p.266). Riobaldo não diz mais eu era ou eu fazia – formas verbais que afirmam o ser, a existência e a ação -, mas ele recorre a um neologismo construído a partir do verbo auxiliar, estar. Este verbo sempre designa estados passageiros, condicionados por determinadas circunstâncias: estar em um lugar, estar em uma situação são formulações que falam dos aspectos acidentais da vida e nada têm a ver com o peso metafísico do verbo ser. Parece que na consciência de Riobaldo a existência tornou-se tão frágil e precária que não existe mais o tom afirmativo do verbo ser que visa existências consistentes e verdades perenes.

Veremos em seguida que este abando do verbo ‘ser’ marca ao nível da história narrada o início de uma errança desesperada. Zé Bebelo perde o caminho para um lugar chamado ‘Virgem Mãe’, o que evoca, ao nível dos jogos de palavras que percorrem o texto do início ao fim, a perda da matriz divina, do ponto de partida da história da salvação. Em vez de encontrar a ‘Virgem Mãe’, mãe do Salvador, e, portanto, esperança de uma nova ordem do mundo temporal, Zé Bebelo-Belzebú guia seu bando para os ‘fundos’ e ‘abismos’ do sertão. É durante essas andanças desnorteadas que Riobaldo se defrontará com os abismos da condição humana.

063:

A errança nos ‘fojos’ do mundo

Nem o narrador, nem o leitor jamais saberão dos verdadeiros planos de Zé Bebelo, pois uma nova circunstância modifica a situação. Os hermógenes oferecem uma trégua temporária que permite aos bandos de jagunços a retirada antes da chegada das tropas do Governo. Recomeçam as caminhadas pelo sertão e os discursos de Zé Bebelo, incapaz de compreender as fugas dos hermógenes. Riobaldo percebe finalmente que o chefe verboso não é o ser racional que se apresenta nos seus projetos progressistas (Paz, Ordem, Progresso e a Constituição da Lei são lemas que nunca faltam nos discursos). Suas atitudes o aproximam muito mais do modo de ser dos jagunços e da relação visceral e prazeirosa com a guerra:

Nem eu não queria arreliar Zé Bebelo. Mas, para mim, ele estava muito errado: pelos passos e movimentos, porque gostava prático da guerra, do que provava um muito forte prazer; e por isso não tinha boa razão para um resultado final. (GSV p.287)

Em outras palavras, Zé Bebelo, que declara querer acabar com o sertão, está perdido neste labirinto, incapaz de encontrar o caminho, nem o inimigo. Da mesma forma que ele se engana na direção, ele se engana também no que diz respeito ao seu próprio desejo. Ele gosta de paz e ordem apenas em aparência, seu forte é a ‘vida revirada’, a excitação da guerra e a violência do combate. É nestas situações que ele se ‘endemoninhava’ revelando a outra face do seu nome – Belzebú.

Na lassidão desta ‘mesmice’ de guerra, Riobaldo propõe mais uma vez ao amigo Diadorim abandonar a vida jagunça. Como sempre, Diadorim recusa sugerindo ironicamente que Riobaldo se case com a ‘moça da Santa Catarina’, Otacília. Sem saber por que, Riobaldo fica recusando

064: também as exortações de assumir o mando: ‘Eu era o contrário de um mandador’ (p.283), comenta o velho narrador.

Este comentário que reforça as outras descrições que Riobaldo dá de si mesmo (seguidor ou cachorro que espera viajante em ponto de rancho, por exemplo) impede de compreender a cena do pacto como uma iniciativa através da qual Riobaldo visa apoderar-se da chefia. A cena do pacto aparece apenas como ponto culminante de uma série de experiências desesperadoras que Riobaldo vive durante a errança de Zé Bebelo e que o confrontam de maneira desoladora com os limites e as ilimitações [sic] do ser humano.

A primeira destas experiências é o encontro com os catrumanos – um grupo de homens de aspecto completamente selvagem, quase nus e armados com foices – que tentam barrar o caminho dos jagunços a fim de evitar que estes passem pelo povoado do Sucruiú, atingido pela peste. A selvageria primitiva dos catrumanos faz Riobalod estremecer e servirá de espelho no qual Riobaldo reconhece sua própria selvageria. Ele tenta ainda distanciar-se destas criaturas inquietantes:

Raça daqueles homens era diverseada distante, cujos modos e usos, mal ensinada. […] e de como assim estavam menos arredados dos bichos do que nós mesmos estamos […] Para obra e malefícios tinham muito governo. (GSV p.294)

A visão destes homens-animais e da ‘coisa humana’ dos doentes e mortos do Sucruiú abala a alma de Riobaldo, fazendo com que ele duvide ‘dos fojos do mundo’ (p.295).

‘Dos fojos do mundo’, dos fundos obscuros do sertão, o texto leva o leitor para a descoberta do fundo sem fundo da alma humana. Numa das paradas de descanso, Riobaldo surpreende-se aceitando alegremente o convite para uma sebaça. Concordando, ele repentinamente assusta-se diante da própria selvageria ‘de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães’ (p. 307).

065: O medo transforma-se agora em ‘medo de homem humano’. A desconfiança diante dos ‘fojos’ do ser humano encontra confirmação no encontro com o fazendeiro Seu Habão cuja avidez e frieza são imediatamente associadas à matéria selvagem, sem forma e fundo, dos bandos de catrumanos ou de jagunços:

Do que destapei: que um desses, com a estirpe daquele seô Habão tirassem dele (do padrinho Selorico Mendes), tomassem, de repente, tudo aquilo de que era dono – ele havia de choramingar, que nem criancinha sem mãe. (GSV p. 135)

O pacto

É neste ambiente sombrio, mal conotado também pelo nome do lugar – ‘coruja’ e ‘valado’ -, que Riobaldo se abandona a mais uma exploração – a das ‘Veredas Mortas’. Sem saber o que procura, ele parece assistir aos seus próprios gestos e às suas próprias palavras. A cena do pacto distingue-se, assim, de maneira significativa dos pactos tradicionais com o diabo. No Fausto de Goethe, por exemplo, o pactário procura ativamente o demônio e exige dele, em contrapartida da sua alma, o que lhe parece ser o bem supremo: saber e prazer. Fausto discute e argumenta com Mefistófeles até acertar os termos exatos do contrato.

O pacto em Grande sertão: veredas representa, como já foi dito, o ponto culminante do despojamento progressivo do sujeito dos seus atributos (razão, vontade, liberdade). Esta cena parece assim desdobrar e encenar de maneira intensa o lema secreto do romance – ‘No nada’.

Riobaldo dirige-se a uma ‘encruzilhada’ que é um brejo – ‘marimbú’, matéria sem forma -, onde ele não encontra nada, ouve nada, vê nada. Ninguém aparece, nin-

066: guém responde e o pactário perde todos os pontos de referência até não mais saber por que está aí:

Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, achao que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo! (GSV p.318)

O que está em jogo neste ‘pacto’ – se é que se pode falar propriamente em pacto – é a fragilidade da existência humana no ‘sertão’, isto é, num mundo selvagem e desregrado onde proliferam todas as perversões. A primeira metade da cena do pacto (p. 316-8) desenvolve desta maneira o tema do nada, da falta de pontos de referência e da morte simbólica, em imagens visuais (lama, frio, silêncio, escuridão, paralisia) e em construções gramaticais que ferem nossas convenções linguísticas (acumulação de partículas e de formulações da negação).

A segunda metade da cena (p. 318-320) consiste na transformação do ‘ror de nada’ (horror do nada) em ‘rorar’, isto é, ‘orvalhar’, ‘surgir subreptício’ de algo novo. Esta transformação é mediada pela percepção, no meio do nada e da escuridão, do céu estrelado cujas constelações anunciam o alvorecer. O ‘setestrêlo’ e as ‘três-marias’ já desapareceram, o que significa que a estrela-d’alva (estrela da manhã, Vênus, chamada, na Idade Média, de Lúcifer) está por aparecer. Ora, este anúncio da luz de Vênus, do dia e da vida, estabelece um contraste com a atmosfera noturna, negativa e mortífera da primeira metade.

Até a fórmula do pacto: ‘Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!…’ aparece agora como mera formalidade. O narrador insiste em esclarecer este ponto:

067:

e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava […]. (GSV p. 318)

Tudo está agora sob o brilho de Vênus – deusa do amor e da vida que transforma até o nome do demônio invocado como Lúcifer. Lúcifer é o nome que os medievais deram aos planeta Vênus e significa ‘aquele que traz a luz’. A luz anima, a noite tranforma-se em ‘um corpo de mãe’ (p.320) e o ‘pactário’ parece renascer simbolicamente, saindo da paralisia noturna para uma fusão com os elementos vitais, água e terra.

Este renascer é narrado na linguagem obscura e cifrada das encantações rituais e dos mitos arcaicos que encenam concretamente a união dos termos separados:

Foi orvalhando […]. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns de meu corpo […] Abracei com uma árvore, um pé de peu-branco […]. Soporado fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, feito se um morcegão caiana me tivesse chupado. Só levantei de lá foi com fome. (GSV p.320)

O estado de Riobaldo lembra o da ‘pequena morte’ do orgasmo. Como Romeu e Julieta, ele confunde a voz dos pássaros noturnos com os matinais. A ‘pequena morte’ corresponde a uma anulação temporária e revigorante, a uma vitória da vida sobre a morte e do amor sobre o ódio.

Por ironia, o pacto que levou Riobaldo a chamar por Satanás (figura da morte) termina sendo um pacto com Lúcifer, com a luz e a vida. Riobaldo une-se às figuras de Vênus-Eros, à força feminina da água e da terra e à luminosidade ‘lúbrica’, ‘púrpura’ e ‘amorosa’ que prolifera nos jogos literais do final da cena:

A mor, bem na descida, avante, branquejavam aqueles grossos de ar, que lubrinam, que corrubiam. (GSV p.320)

068: Tudo, montes e vales, ar e nuvens e – sobretudo – as palavras coloram-se de conotações eróticas. São estas conotações ligadas à vida e à feminidade que vão transformar, na sexta sequência, as andanças jagunças na campanha ‘bagunçada’ e carnavalesca de Urutú Branco.