/ROSIANA 080 – Zé Bebelo, homem da ordem e do progresso, e suas ambiguidades

ROSIANA 080 – Zé Bebelo, homem da ordem e do progresso, e suas ambiguidades

“Mas, muito mais importante que as datas, jamais claras, e mérito de grande escritor, é a encarnação em personagens de romance do próprio processo político de consolidação nacional levado a cabo em sua última parte pela República Velha, e de que a ditadura Vargas marca o termo. Zé Bebelo desempenha o papel histórico do princípio centralizador e republicano, em oposição ao princípio federativo e localista representado pelos coronéis – Joca Ramiro e seus pares – com seus bandos privados.” (64)

Zé Bebelo é o homem da Ordem – ‘Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e do legal!’ – e do Progresso: ‘Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas.'” (64)

“Embora pense em seus interesses particulares e tenha um olho no congresso, fala sempre nos interesses da nação: ‘Agora, temos de render este serviço à pátria – tudo é nacional!’ E é a única personagem deste livro capaz de raciocinar não em termos de tradição e alianças privadas de dominação, mas em termos de república e de canais democráticos.” (64)

“Os atributos pessoais de Zé Bebelo representam a modernidade, no contexto histórico de República Velha do romance; são eles a inteligência, o desejo de instruir-se, a visão nacional. Mas, também ele ambíguo, comporta forte contingente de atributos pessoais tradicionais: a valentia em primeiro lugar, a sede de poder pessoal, a (64)

utilização dos recursos habituais para cumprir seus intentos – usa jagunços para acabar com os jagunços. Rende-se afinal à lei do sertão, assumindo a chefia do próprio bando que combatera; e isso, para levar avante uma missão de vingança particular sem qualquer ‘propósito’ nacional. Perdeu a parada histórica; só lhe restava ou morrer pelas armas – à maneira tradicional – ou degradar-se em negociante, que é o que lhe acontece; ao menos, este fim implica uma etapa histórica mais avançada.” (65)

“É por tudo isso que Zé Bebelo, figura tão marcante, tem muito mais tiques pessoais e traços distintivos do que os demais chefes que aparecem no romance. Ele pode menos resvalar para o plano mítico que os demais, sempre apresentados de maneira nebulosa e grandiosa. Não lhe é possível provocar a reverência do leitor – nem do narrador – com seus ‘Maximé!’, seus xingamentos, seu desejo de ser deputado, seu falatório incessante, seu apito. É figura sem a dignidade cavaleiresca e mítica de Medeiro Vaz e Joca Ramiro, por exemplo; por isso mesmo, tão mais humana e simpática.” (65)

“Não é por coincidência que Zé Bebelo é aliado do governo, armado por ele, financiado por ele: é o princípio centralizador, respaldado pelo centro. Os outros chefes, Joca Ramiro inclusive, fazem parte da habitual aliança privada de dominação, eventualmente – e é este o caso do enredo deste romance – em oposição ao governo central. Todos eles são poderosos fazendeiros; e sua motivação política e privada é várias vezes mencionada no texto.” (65)

GALVÃO, Walnice Nogueira.
(1972) As formas do falso. Um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Editora Perspectiva. pp. 64-65.