DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 7
GRÃO MOGOL – A CIDADE DE PEDRA
Sétimo dia de viagem. Depois do café, esperei uns minutos para sair de São Francisco em horário rosiano, às seis horas e sete minutos. Horário rosiano é qualquer horário que tenha o número sete, que por seu caráter místico era preferido por Rosa. Na Idade Média representava a perfeição da soma dos quatro elementos da natureza com a Santíssima Trindade. É a união entre a matéria e o espírito. Como lembra Walnice Nogueira Galvão, há as sete virtudes, os sete pecados capitais, as sete idades da vida humana, os sete pecados capitais, os sete pedidos do Padre Nosso, os sete dias da Criação e os sete tons da música gregoriana. Também na Cabala e na Alquimia este número é importante.
Em Grande sertão: veredas, o sete aparece com destaque. Citemos algumas passagens. É Riobaldo alegando, sem nisso acreditar, que seus pecados foram perdoados: “me confessei com sete padres, acertei sete absolvições.” Diadorim, por sua vez, explica sem explicar porque inventou o nome Reinaldo: “A vida da gente faz sete voltas”. A coragem de Zé Bebelo é assim descrita por Riobaldo: “era o duro – sete punhais de sete aços”.
Nem o horário rosiano me salvou de uma estrada muito movimentada antes de Montes Claros, com zilhões de scanias-jumentonas e cavalões desutilitários. Todos querendo ultrapassar a todos, parecia uma dança, dava até vontade de rir. O burrinho teve que usar de toda a sua paciência. Montes Claros é a terra de Darcy Ribeiro e a cidade mais importante do norte de Minas, com mais de quatrocentos mil habitantes. Mas é também é um labirinto. Demorei uns quase meia hora para atravessar a cidade e chegar na estrada, mesmo assim com a ajuda de Agripina.
Não conhecem Agripina? É a moça que viaja comigo. Fala bastante, mas sempre as mesmas coisas do tipo “Radar reportado à frente”. Tento conversar sobre outros assuntos, o que o doutor foi fazer na fazenda de Riobaldo ou por que Diadorim se vestia de menino desde criança, mas ela só quer saber de estrada: “Prossiga durante trinta minutos até BR 122”. Não é a melhor das companhias, mas sem ela eu não teria conseguido sair de Montes Claros. Dobrei à direita, à esquerda, pra cima e pra baixo umas quinze vezes. Deve ter gente que entrou lá no século passado e ainda não conseguiu sair. Planejei até minha retirada por helicóptero.
Os últimos cinquenta quilômetros, na estrada só para Grão- Mogol, já são bons, sem muito movimento. A cidade fica numa montanha de pedra impressionante, o rio Itacambiraçu corre em um leito de pedra, as casas mais antigas são de pedra, as ruas são de pedra, há muros de pedra por toda a parte, a monumental Igreja de Santo Antônio é de pedra. As montanhas em volta, adivinhem: de pedra. É um panorama poderoso.
Fui a Grão Mogol por conta da recomendação de Elfi Kurten Fenske, grande conhecedora da obra de Rosa e do sertão mineiro. Na obra, Grão Mogol aparece em momentos estratégicos. Quando morava na casa de seu padrinho-pai Selorico Mendes, Riobaldo é acordado de madrugada pela chegada de um bando de jagunços liderado por Joca Ramiro, pai de Diadorim. Ele tinha vindo ajudar dois irmãos, seus aliados Aluiz e Alarico Totõe, este último fazendeiro em Grão Mogol. Seria Joca Ramiro de Grão Mogol também? Bem que poderia ser e isto explicaria muita coisa. Grão Mogol não fica longe da Bahia e quando finalmente Joca Ramiro se junta às tropas que o esperavam no acampamento, ele traz duzentos homens, a maioria recém-recrutados: “manos-velhos baianos”. E há ainda outro motivo, o mais decisivo deles, que deixarei para um diário mais à frente.
Havia viajado mais de cinco horas e minha primeira providência almoçar, logicamente feijão tropeiro e uma saladinha. Ao levantar da mesa, um sujeito magrinho, com bigodinho e tudo, fica bem perto de mim e me pergunta se eu sou do Rio. Já não gostei dele aí, senti um jeito ruim. Piorou quando começou a sussurrar que tinha diamantes para vender. Virei as costas e fui embora.
Até o nome de Grão Mogol deriva do diamante. O povoamento começou a acontecer no último quartel do século XVIII, com a descoberta de diamantes por garimpeiros, nome que significava alguém que se escondia nas grimpas, porque a repressão das autoridades coloniais era pesada e houve vários enfrentamentos. Em meados do XIX um chefe chamado José Costa liderou uma forte resistência às tropas do governo. Até mesmo um governador chegou a marchar com soldados contra os garimpeiros de Grão Mogol. Reza a lenda que ainda hoje há diamantes nas bases de pedra sobre as quais se costumavam construir as casas.
Sobre o nome da cidade, há várias versões. A folclórica diz que vem de Grande, Gran, Grão, Amargor, pelo sofrimento dos escravos, que falavam Magô e daí Mogol. Não há a menor possibilidade desta explicação ser verdadeira. Mas é um fato sociológico importante a crença na mesma, apontando para as desventuras da escravidão. Outras fontes acham que o nome se refere ao maior diamante do mundo, encontrado na Índia em 1550 e que só deu azar para seus proprietários. Ele se chamava Grão Mogol e a cidade mineira teria sido batizada como uma homenagem.
Para mim, não são os diamantes que impressionam e sim a pedra, a formação rochosa magnífica em meio à qual se construiu a cidade. Nunca havia visto nada semelhante. A região também é muito bonita, com cachoeiras em torno. A cidade hoje é pequena, menor do que no auge do garimpo do diamante. Conversando com seu Jofrez, um senhor de mais de setenta anos, conhecedor da história local, ele me disse que hoje Grão Mogol vive das pensões dos aposentados, dos funcionários municipais e estaduais, da agricultura de subsistência e da exportação de mão de obra sem qualificação para trabalhar nas colheitas de café no sul de Minas e de laranja no interior de São Paulo.
Fui andando e descobri a Casa de Cultura, que também é biblioteca. É um belo prédio, todo em pedra. Havia duas funcionárias. Uma, mais jovem, olhava o celular ininterruptamente. Outra, avó, cuidava do neto, ajudando-o a fazer o dever de casa, além de olhar no celular quando possível. Perguntei se havia algum livro com a história da cidade. Disseram que sim, mas que como existia apenas um exemplar (os outros desapareceram), o diretor guardava a preciosidade trancada na gaveta.
Mas, conversa vai, conversa vem, vovó me pergunta se eu gostaria de ver o livro: Grão Mogol, de Manuel Esteves. Digo que sim. Não era nem tão antigo, eu nasci um ano antes (caramba!). Era obra de um autor nascido na cidade, com somente 108 páginas. Tinha mais curiosidades do que outra coisa. Mas havia um tiquinho da história de Grão Mogol, que resumi acima.
Voltei para o hotel, com uma linda vista das montanhas. Por lá mesmo jantei antes de descansar.
Teria mais dois dias para explorar os mistérios da cidade de pedra.
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
Foto: M.A. , rio Itacambiraçu correndo em um leito de pedra, Grão Mogol, agosto de 2019