O gênio modesto
- MARCOS ALVITO
- RIO DE JANEIRO – RJ
Um ateu e comunista que considerava a Bíblia um livro superior a toda literatura. Um autodidata que abandonou a escola sem concluir o ginasial por não acreditar nos professores e que se tornou diretor de Instrução Pública. Um homem fechado, quase impenetrável, que concedeu dezenas de entrevistas, isso quando não as criou do próprio punho, para evitar as distorções. Um crítico feroz da literatura, que achava Machado de Assis um grande escritor, mas péssimo romancista devido à ausência de coragem para posicionar-se. Considerava o modernismo uma porta larga para todas as mediocridades. Mas ao mesmo tempo não se considerava escritor nem jornalista, no máximo tendo admitido ser um “romancista de quinta categoria”. Um homem que foi preso sem motivo, passou por mais de dez cadeias, onde foi espancado, torturado e teve a sua saúde abalada para sempre, mas que dizia não ter acontecido nada de admirável na sua vida, que definia como “meio tola”. Alguém que no momento de maior glória e reconhecimento quase unânime como maior escritor do Brasil dizia não ter escrito nada que prestasse. Um pessimista ranzinza que adorava crianças e acreditava haver esperança para a humanidade. Um intelectual refinado, leitor em várias línguas, que considerava a fala do caboclo (do sertão) um modelo e dizia que o escritor tinha que fazer que nem as lavadeiras de Alagoas, torcer e torcer até deixar as palavras secas. Um homem de quem muita gente queria e se dizia amigo, chegando a ser homenageado em um jantar em Copacabana por setenta intelectuais por ocasião dos seus cinquenta anos. Mas que afirmava preferir morar na prisão, se lá houvesse água corrente para lavar as mãos, a viver na cidade grande, onde não havia paz para ler e escrever. Em duas palavras: Graciliano Ramos, também conhecido como Velho Graça.
É este retrato, rico e contraditório, fascinante e profundo, repetitivo e revelador, que nos é proporcionado por Conversas, um livro organizado com muita competência por Thiago Mia Salla e Ieda Lebensztayn. Os organizadores esclarecem o conteúdo e o objetivo logo de saída: “A ideia é reunir falas de Graciliano Ramos, cujo cenário em geral é a Livraria José Olympio, ponto de convívio de diversos intelectuais nos anos 1930 e 1940”.
Na verdade, o livro vai bem além disso, pois há desde a primeira entrevista concedida pelo jovem Graciliano ainda em Alagoas até testemunhos concedidos por ele pouco antes de morrer, aos sessenta e um anos. A variedade dos documentos revela um trabalho extremamente paciente de pesquisa por parte dos organizadores, um corpus:
disperso em vários periódicos e livros: respostas a entrevistas e a enquetes de imprensa, além dos diálogos que compõem causos, em que figuram o romancista e outros intelectuais conhecidos do público.
Diante de um escritor arredio e desconfiado, muitas vezes comparado a um sertanejo pelos jornalistas e literatos que buscavam pintar seu retrato, as estratégias foram variadas. Houve quem pedisse que o próprio Graciliano contasse a sua história, o que ele fez mais de uma vez, com uma coerência assustadora. Aos dezoito anos, em um “inquérito” promovido pelo Jornal de Alagoas, ele já se definia de forma marcante. Considerava “um erro grave” ter sido considerado um dos literatos alagoanos, pois achava que suas ideias tinham “pouco valor” e afirmava pouco conhecer de literatura. Mas era contundente ao explicitar sua preferência pelo realismo:
Prefiro a escola que, rompendo a trama falsa do idealismo, descreve a vida tal qual é, sem ilusões nem mentiras.
Prevendo a polêmica, tratava de se defender:
Dizem por aí que os realistas só olham a parte má das coisas. (…) é bom a gente acostumar-se logo com as misérias da vida. É melhor que o indivíduo, depois de mergulhado em pieguices românticas, deparar com a verdade nua e crua.
Vinte e oito anos depois, já escritor consagrado, parecia repetir essa profissão de fé anti-idealista quando afirma a Joel Silveira:
A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer.
Essa definição tão austera encontrava companhia em hábitos ascéticos, de trabalho disciplinado de autor que acordava todos os dias às três da manhã para poder ler e produzir em silêncio, ele que odiava o telefone, a campainha e dizia nem mesmo gostar de música ou entender patavinas de cinema. Vivia modestamente, complementando a renda dos seus artigos para jornais e revistas com um trabalho de inspetor de ensino do Colégio São Bento, mais uma das ironias da sua vida. Isso não era nada para quem já havia, na sua Alagoas natal, feito o elogio de Judas em um jornal publicado por um padre, em plena Quaresma.
Tinha horror às patotas literárias e às academias em geral. Mas isso não o impedia de passar as tardes em um banco desconfortável bem no fundo da Livraria José Olympio, na rua do Ouvidor. Reclamava do assédio dos chatos e da miríade de jornalistas, sempre a importuná-lo. Contudo o fazia, por gosto à conversa com os amigos e muitos eram brindados com um humor tão inesperado quanto cáustico. Certa vez teria dito que o comunismo não vingou no Brasil por um simples motivo, o desconhecimento da língua pátria:
Pichavam nos muros o slogan de Marx: — “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Mas quem pichava e quem lia não sabia o que era uni-vos.
O gingado dialético do Velho Graça era admirável. Por um lado, se percebia como um escritor engajado (embora evitasse esse tipo de classificação) e era um intelectual atuante politicamente. Fizera até mesmo o sacrifício de concorrer a uma vaga de deputado pelo Partido Comunista durante seu breve período na legalidade. Mesmo em campanha, quando fora obrigado até a discursar, ironizava:
Prefiro a cadeia. Na Câmara eu tenho que falar, discutir e possivelmente dizer tolice. Na cadeia, estou descansado e tranquilo.
Era realista, para variar, quando admitia que o escritor no Brasil no máximo conseguia alcançar a pequena burguesia e que “o que vigora mesmo é o folhetim, que a massa vai aceitando como entorpecente…”. Colocado diante do paradoxo de que “escrever bem” significava não ter público, devolve o problema intacto ao repórter com certo humor:
Você não vai querer dizer com isso que o escritor passe a escrever mal… Ou vai?
Dizia não gostar do que escrevia. Considerava Caetés de “uma droga completa” e lamentava a sua publicação. São Bernardo, visto por muitos críticos como uma obra-prima, mereceu do seu autor o seguinte comentário:
É menos ruim do que Caetés, mas não chega a ser um romance.
Apesar do desgosto aparentemente sincero com a sua obra, admitia quase que envergonhado: “continuarei a rabiscar romances e contos”. O motivo? Confessa a um dos seus entrevistadores:
Só encontro mesmo satisfação verdadeira em escrever.
Parecia buscar a coerência acima de tudo, talvez por ter experimentado uma vida de contradições. Quase não aprende a ler, talvez porque quisessem apressar o aprendizado com surras constantes. Mas logo se apaixona pelos livros em meio a uma infância solitária e penosa. Começa a escrever aos dez anos mas só vê seu primeiro livro publicado — a contragosto, como vimos — aos quarenta anos. Passara a juventude, em suas próprias palavras, feito um cigano, vagando entre Alagoas, Pernambuco e Rio de Janeiro, onde tentou a vida literária sem sucesso. Voltou para Alagoas e viveu a vida pacata de comerciante de panos, tornou-se prefeito, diretor de Instrução Pública e acabou sendo preso sem acusação formal, motivo pelo qual vem parar novamente no Rio de Janeiro. Aí passou a viver e acabou por se tornar um escritor reconhecido por críticos e pela opinião pública.
Reafirmava sempre seu horror aos fascistas, mas perguntado se os nazistas seriam capazes de escrever um poema, responde com generosidade crítica:
Sim, devem fazer também poemas. Se não os fizessem, abandonariam completamente a espécie humana.
Não foram poucas as tentativas de sintetizar Graciliano Ramos, o homem. O crítico Brito Broca ressaltava a “simplicidade de seu trato” e a “dureza no olhar”, embora admitisse que esta logo se desfazia em um “sorriso de franqueza e simpatia”. Joel Silveira, que o entrevistou pelo menos nove vezes, falava em “jeito áspero e cru”, ressaltando que às vezes Graciliano gostava de puxar conversa e saltar de um assunto a outro, mas em outros momentos ficava “ensimesmado, curtindo sozinho sua acidez”. Assim descrevia seu amigo Graciliano:
Apresenta uma fisionomia cansada, fisionomia de alguém que já viveu bastante. Seus cabelos são grisalhos e profundas rugas sulcam sua face, face ensolarada de verdadeiro sertanejo. Os olhos é que logo impressionam. Não são olhos comuns. São olhos vivos e alertas, sombreados por duas olheiras esmaecidas. Olhos fundos que penetram, que indagam, que às vezes substituem a voz. Os gestos desse homem são lentos. A conversa é macia. O riso é curto, quase sem expressão. (…) E o pensamento distante, muito distante, um pensamento perdido que parece flutuar em outra esfera, em momentos inexplicáveis de sentir.
O fato é que, apesar da sua casmurrice e de seu mau humor estratégico, ou talvez por causa disso, Graciliano cativava os que iam conversar com ele. Francisco de Assis Barbosa registrou “sua estranha e admirável personalidade”. Osório Nunes via nele “um espírito em busca de horizontes”, “investigador e penetrante”. Ruy Facó também tentou decifrar a esfinge:
Homem fechado, pensando muito e falando pouco (…) guarda toda a sua energia comunicativa para externá-la através de seus romances e de seus contos. (…) Geralmente, chamam a este tipo de intelectual de “escritor torturado”.
O próprio Graciliano, instado a definir-se, não fazia concessões:
Odeio esportes. Não gosto de praias. Detesto viagens. Sou um animal sedentário; nasci para ostra: caramujo.
Perguntado acerca da “permanência de sua obra”, responde impiedosamente:
Não vale nada, a rigor, até, já desapareceu.
O Velho Graça que me perdoe, mas desta vez ele estava redondamente enganado.
Org.: Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla
Record
420 págs.
Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.
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