/DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 8 – BOTUMIRIM OU EM BUSCA DA ROLINHA PERDIDA

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 8 – BOTUMIRIM OU EM BUSCA DA ROLINHA PERDIDA

Um daqueles típicos dias de viagem: você não acha o que procurava e encontra o que não imaginava.

Acordei às cinco e lá fui eu escrever um diário atrasado. O melhor de estar em um hotel é o café da manhã já prontinho, inclusive sem açúcar, sem falar no mamão, uma rara iguaria nos estabelecimentos por onde eu havia passado até então. Mas o melhor daqui é um funcionário chamado Antonio, o mineiro mais mineiro que conheci. Tem um sotaque canônico das gerais, gostoso de ouvir. Não dá gargalhada nunca, mas tem sempre um sorrisinho irônico prestes a nascer no canto da boca. O olhar é vivo, amigo ma non troppo, com uma pontinha de dúvida, nem que seja por brincadeira. Não sei se ele ficou meu amigo, mas eu fiquei amigo dele. A única foto em que eu apareço, dentre as milhares que tirei, foi uma de mim ao lado do Antonio. Com o tal sorriso, é claro.

Mesmo sendo esta a minha segunda visita ao sertão mineiro, pela primeira vez vejo o tempo nublado, parecendo até que iria chover. Mas por volta das onze da manhã abriu aquele sol indiscutível.

Meu programa hoje seria totalmente diferente. Tenho um querido amigo, João Luiz Quental, que me apresentou à arte de observar pássaros. Um dos objetivos da viagem era fotografar pássaros do sertão, o que fiz na medida do possível, sou um passarinheiro iniciante quase sem conhecimentos. Mas com um bom professor.

João me deu uma dica preciosa. Nas matas em torno de Botumirim, perto de Grão Mogol, foi redescoberta em 2015 a rolinha do planalto, também chamada de rolinha-brasileira ou pombinha-olho-azul. Era uma espécie que se acreditava extinta há mais de 70 anos, fora vista pela última vez em Goiás no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial.

Sendo assim, depois do café parti para Botumirim, que fica a 69 quilômetros de Grão Mogol. Eu estava um pouco cansado das mais de cinco horas de estrada do dia anterior mas nada como ir em busca da rolinha perdida e agora achada.

Acontece que cometi um erro fatal, permiti que Agripina Waze ficasse de folga. Com isso, é lógico, sem os conselhos repetitivos mas precisos e preciosos, eu me perdi.

Acabei dando em outra pequena cidade, Cristália. Na parte alta, uma igrejinha, bem cuidada. Mais abaixo, um ajuntamento de gente, fui ver o que era. Sendo quinta-feira, estava ocorrendo a feira dos pequenos produtores. Eu diria micro-produtores, porque em cada barraca havia quantidades mínimas de produtos, quatro ou cinco dúzias de bananas, uma dezena de aipins, algumas alfaces. Era muito simpático. Aproveitei para reabastecer comendo um delicioso pastel acompanhado de um puríssimo suco de goiaba. E não resisti a fotografar mais um imenso (em termos relativos), majestoso e belíssimo ipê amarelo no fim de uma estradinha de terra. Já tinha encontrado o que não havia procurado.

Retomei o caminho, agora de fato rumo a Botumirim. Passei pelo lindo rio Itacambiraçu, nome que significa grande pedra empinada no meio do mato. No dia nublado, as águas pareciam azuis, contrastando com o leito de pedra clara. Ao

fazer o caminho de volta, passei por uma localidade chamada Adão Colares, distrito de Botumirim. Na entrada da localidade há uma placa que diz assim:

ÁREA URBANA

COM SALIÊNCIAS

Bem, depois não diga que eles não avisaram.

Durante o trajeto para Botumirim até o burrinho pedrês ficou assustado com o volume de eucaliptos. Em certo trecho há uma verdadeira avenida eucaliptal, com o gigante devorador dos dois lados. Tirei foto de todas as etapas: plantados, já crescidos, transformados em lenha e amarrados, prontos para serem transportados.

Para saber onde há eucaliptal é fácil: é só ler as placas muito bem colocadas avisando que daqui a 400, 300, 200, 100 metros há a saída de caminhões longos. Em nenhuma placa que vi há menção a eucalipto ou a carvão. Eles sabem muito bem o que estão fazendo.

Ainda no caminho pra Botumirim, um susto. Parei para fotografar a paisagem. Quando fui ver, dezenas de metros à frente havia dois cavalos bloqueando a estrada. Se eu viesse em velocidade não sei o que poderia ter acontecido. Fui andando até eles e os animais acabaram voltando para o mato. Esse é um perigo enorme, pois simplesmente não há como prever quando eles podem aparecer. Não só eles, mas também bois e vacas, sem falar no atropelamento de animais menores.

Botumirim, finalmente. É daquelas cidades em que você lamenta não ser um cabrito. Porque você sobe e desce, sobe e desce. É mais uma localidade que nasceu da busca de diamantes ainda no século. Hoje é uma pequena cidade. Seu brasão tem boi e café. A natureza que existe ao redor, suas cachoeiras, suas matas, sua fauna, sobretudo de pássaros, têm atraído pessoas do Brasil e do exterior.

Como tem sido desde o início da viagem, as pessoas foram super simpáticas comigo. Eu não tinha ideia de como obter informações sobre a rolinha do planalto. Adotei a calma mineira e primeiro resolvi almoçar. Na sorveteria, a moça me falou do restaurante da Neusinha, de comida saborosa. Lá, outra moça me passou o telefone do Wilson, que normalmente serve de guia aos observadores de pássaros.

O telefone estava errado. Sem problema, a moça atravessou a rua e foi na casa do Wilson falar com a mulher dele, que conseguiu o telefone certo do marido. O Wilson disse não estar em Botumirim no momento, mas me passou o telefone do Marcelo, biólogo que administra a reserva onde as últimas rolinhas do planalto do mundo podem voar livremente. Marcelo foi muito gentil, mas explicou que estava em Belo Horizonte para um seminário do IBAMA. E alertou que a visita às rolinhas só pode ser feita agendando-se com meses de antecedência. Compreendi e dei os parabéns a ele pelo trabalho que está realizando.

O exemplo da pombinha-olho-azul mostra, mais uma vez, que é inclusive muito mais lucrativo preservar do que destruir: ao longo de todo o ano a pequena Botumirim recebe biólogos e observadores de pássaros do mundo todo. Eles têm que se hospedar, comer e contratar serviços de guia. Mas há quem prefira derrubar a mata para plantar eucaliptos.

Saber que a rolinha-do-planalto em tão boas mãos me deixou feliz. Resolvi comemorar com um sorvete. A moça que me dera a dica de onde almoçar me indicou um lugar imperdível: a cachoeira do rio do Peixe. Só que são doze quilômetros de estrada de terra e meu burrinho só gosta de correr no asfalto.

Mas na volta paro na entrada para outra cachoeira, já no município de Grão-Mogol. É a famosa Véu das Noivas. Neste momento de estio deveria chamar-se Noivas sem véu. Na entrada, há uma placa avisando que é uma caminhada de um quilômetro até a cachoeira. Deve ser um quilômetro sertanejo, daquele com três mil metros. Sendo que a metade do caminho é de subida e na pedra, aumentando o risco de contusão.

Mas você não pode reclamar de falta de aviso, pois logo no início da trilha há uma placa enumerando tudo de ruim que pode te acontecer, desde ser picado de cobra até quebrar a perna, eximindo o parque estadual de Grão Mogol de qualquer responsabilidade. Em mineirês poderia ser traduzido como “Ocê quer fazer essa trilha? Ocê é que sabe!”

Vale a pena correr o risco. O caminho é bonito, com vegetação de cerrado, ipê amarelo e um cacto que estava dando uma linda flor laranja. A montanha de pedra em torno, imponente, misteriosa, sagrada, causa enorme impressão. A cachoeira em si, quando está com água, deve ser espetacular.

Ao retornar, fui jantar no centro de Grão Mogol, o hotel em que estou é um pouco afastado. Depois de comer, passei na Casa do Artesão. Na verdade, das artesãs, pois é um grupo de mulheres que trabalha numa enorme sala bem iluminada. É uma espécie de cooperativa, que produz trabalhos muito bonitos, alguns deles sob encomenda de uma famosa loja de móveis existente em todo o Brasil.

O que sobrou de mim depois desse dia tão movimentado teve que encontrar forças para escrever o diário. Benditos dias em que não encontramos o que queremos mas achamos o que nem podíamos imaginar.

Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas

Foto: M.A., Cachoeira Véu das Noivas, no Parque Estadual Grão Mogol, MG, agosto de 2019. Na foto abaixo, tirada do Wikiaves, a famosa rolinha-do-planalto.