Muito além do papel
- MARCOS ALVITO
- RIO DE JANEIRO – RJ
- JORNAL RASCUNHO
Agora somos todos ciborgues, seres híbridos provenientes da fusão homem+máquina. Há muito que nos preocupamos com a possível humanização das máquinas e com os efeitos disso, vide o Blade Runner de Ridley Scott. Poética do ciborgue trata do reverso da medalha: de que forma as máquinas tornam-se uma extensão do nosso corpo, alterando nossa sensibilidade, nossa percepção e, por fim, mas não menos importante, nossa capacidade de criação e invenção. Por exemplo: o uso do computador altera todo o processo da escrita, não somente em termos técnicos da possibilidade bem mais rápida de edição, mas inclusive acelerando “a elaboração mental do texto”. Isto fica ainda mais claro citando-se um trecho do poema Lírica do ciborgue:
o ciborgue habita
debaixo da tua pele
pouco a pouco
ele toma conta
de todos os teus
sentidos e não sentidos
(…)
trilhões das tuas células
serão sutilmente alteradas
e as funções dos teus órgãos
serão novas
quando já não terás
um só eu
mas vários eus
que nem sequer
serás
é com eles
que para sempre
viverás
para além do óbvio
O outro conceito fundamental é a tecnopoiesis: “os processos tecnológicos utilizados para produzir obras de arte e poesia visual”. Não seria simplesmente uma experimentação de novos instrumentos, e sim uma “abertura para uma percepção poética diferente”. Daí a necessidade de uma nova poética, que dê conta da complexidade derivada da sinergia entre homem e máquina, espelhada na videopoesia, na telearte, na infopoesia, na holopoesia “e de tantas outras formas de potenciar e transformar a relação dos homens com o mundo e consigo próprios”.
Trata-se de uma antologia de textos do artista múltiplo e teórico português E. M. de Melo e Castro, alguns publicados há quase meio século, outros inéditos. Os vinte e dois artigos são muito variados quanto à extensão e profundidade de análise, alguns para jornais, outros catálogos de exposição e alguns com maior fôlego teórico. Melo e Castro faz um histórico da poesia visual e de outros experimentos anteriores à arte digital, fornece e analisa exemplos variados destas novas formas poéticas e teoriza a respeito.
Pode-se dizer que a sua premissa já estava presente em um texto de 1965:
Quando digo que se aproxima a exaustão de uma determinada maneira de o homem se exprimir, não faço mais do que registrar um fato sobejamente comprovado em todo o mundo e que provém diretamente da já referida aceleração constante do processo tecnológico-econômico que vivemos.
A esta profunda transformação do mundo corresponderiam “novos gêneros poéticos e artísticos”, situados sobretudo “naquela região híbrida do entrecruzamento do texto literário e das artes plásticas”. O autor escreve com a autoridade do criador de Roda Lume, em 1968, considerado o primeiro videopoema. Nesta forma de expressão, colocam-se novas questões como o tempo de exibição, regulando até certo ponto a percepção por parte do leitor. Explicando: “um tempo rápido resulta numa percepção visual instantânea, tendendo no limite para o subliminar”, enquanto “um tempo lento tenderá a propor uma leitura interiorizada, abrindo-se para a fruição subjetiva”.
Outros exemplos, como os poemas visuais do português Almada Negreiros, os poemas concretos, infopoemas e os videopoemas do próprio autor, são difíceis de descrever sem o suporte visual presente no livro. Menos ainda práticas ainda mais vanguardistas como “as performances sinestésicas de Márcio-André”, uma verdadeira “encruzilhada sensorial” composta de violino eletrônico e a projeção simultânea de imagens de poetas discursando (Haroldo de Campos, Erza Pound e Paulo Leminski entre outros), vídeos de trens se deslocando em vários sentidos e velocidades e de um bailarino percutindo seu corpo com as mãos. Talvez fosse até o caso de complementar o livro com um DVD, o que facilitaria o acesso aos casos mais performáticos.
Melo e Castro é, acima de tudo, um entusiasta destas “novas poéticas digitais”. Ele se pauta por um fragmento de Heráclito: “Se não esperares o inesperado, nunca o acharás. Ele é penoso e difícil de encontrar. O chão não cultivado nada produzirá”. Admite, todavia, que estes novos meios digitais têm sido utilizados muito mais para a banalização e vulgarização do que para a invenção e para as “novas possibilidades criativas”. O problema é que estas novas formas exigem um outro tipo de “leitor”, uma nova sensibilidade. A respeito, ele lembra um poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) datado de 1917, Ultimatum:
Proclamo em primeiro lugar a lei de Malthus da Sensibilidade;
Os estímulos da sensibilidade aumentam
em progressão geométrica; a própria sensibilidade
apenas em progressão aritmética.
Apesar das dificuldades, caberia ao poeta perseverar em tarefas “paradoxais” como “sentir o que está para além dos sentidos, pensar o que se nunca pensou, inventar o novo (…) comunicar o incomunicável”. Isso não seria mais possível de fazer com a literatura verbal e escrita, pois na sua fixidez ela não se adaptaria mais “às situações plurais e abertas das transformações epistemológicas da sociedade e cultura atuais”.
Poética do ciborgue dá dezenas de exemplos dessa nova “arte digital”. Muitos extremamente criativos e interessantes, incitando à reflexão. Concordo que a “poesia eletrônica” seja “uma complexa e múltipla proposta em aberto: um constante repto à nossa imaginação criadora, conceitual e visual”.
Agora somos todos “Homo Sapiens Ciborgue”? Talvez. Não creio, todavia, que seja uma questão de opor a poesia-poesia à arte digital, fruto da fusão entre ciência e poesia. O entrecruzamento do texto literário e das artes plásticas é uma proposta extremamente válida e que tem sido praticada há décadas, mas é uma possibilidade e não uma fatalidade.
Esgotamento das possibilidades da escrita, incapaz de dar conta de uma pós-modernidade marcada pela aceleração, fragmentação e complexidade? Pode ser. Mas aqui dou meu humilde testemunho de leitor. Talvez a minha sensibilidade ainda seja muito século 20 e em mim o processo de ciborguização ainda esteja em um estágio incipiente. O fato é que nenhum destes novos artefatos foi capaz de gerar em mim o mesmo tipo de emoção estética e existencial proporcionado pela leitura de um breve poema de Mário de Sá-Carneiro, aliás citado pelo autor:
Eu não sou eu nem o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte do tédio
Que vai de mim para o outro.
Confraria do Vento
194 págs.
Professor alforriado da universidade, dedica-se a oferecer cursos livres de literatura e ao Urucuia, podcast voltado para ajudar a ler Grande sertão: veredas, sua paixão maior.
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