/DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 9 – A FONTE DE TUDO

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 9 – A FONTE DE TUDO

Adoro acordar antes do sol, sobretudo em viagens. Se for para ficar na cama dormindo, a daqui de casa é bem confortável. Ontem tinha sido um dia cansativo com as idas e vindas entre Grão Mogol, Cristália e Botumirim, isso porque eu não tinha ideia do que me esperava hoje.
 
Voltei a Botumirim. Não para ver a estrela da companhia, a rolinha-do-planalto. Mas para fotografar pássaros em geral. Fui informado que havia um local, chamado Campina, um vasto descampado no alto de uma montanha, onde poderia avistar espécies interessantes. O Burrinho Pedrês quase fez o caminho sozinho em uma hora e meia. Nos dois dias em que fui a Botumirim, jamais ultrapassei ou fui ultrapassado por carro algum, a estrada é muito deserta. Dá para apreciar a natureza e ficar a sós com nossos pensamentos.
 
Fico com vontade de parar e fotografar cada uma das porteiras e dos misteriosos caminhos que se iniciam a partir delas. Não há nada mais poético, nem que simbolize melhor o que é uma viagem: você só conhece o ponto de partida. O meu ponto de partida em Botumirim era a igreja da cidade, onde iria encontrar meu guia.
 
Os guias mais experientes não estavam disponíveis, somente o filho de um deles. É um rapaz, cujo nome é o sobrenome de um cantor americano muito famoso. Riobaldo já falava dessa mania: “Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtêi – nome moderno, é o que o povo daqui agora aprecêia, o senhor sabe.”
 
Bem magrinho, de altura mediana, muito simpático e educado, aos dezessete anos, está no terceiro ano do Ensino Médio. Nunca ouviu falar de Guimarães Rosa. E olha que é um jovem inteligente, inserido em muitos grupos e atividades: participa dos Exploradores, um grupo de escoteiros promovido pela Igreja Adventista (sem ser da igreja) e de um grupo de jovens da Igreja Católica. Além disso, ajuda o pai, que além de guia é pintor de paredes. Faz um curso de observação de pássaros com o biólogo Marcelo, que mencionei na crônica de ontem. E ainda por cima guia observadores de pássaros nas horas vagas.
 
Que ele seja mineiro do sertão e sequer saiba quem é Guimarães Rosa dá o que pensar. Fico me imaginando numa expedição literária indo conversar com adolescentes da região sobre Grande sertão: veredas. Quem sabe?
 
Ele me conta que vem muita gente do exterior para ver a rolinha-do-planalto. Antes de começarmos a subir, avisou que a trilha era comprida e que seria melhor comprar um lanche na padaria. Ele tinha comprado dois pães de queijo. Comprei três, além dos biscoitos maizena e do polvilho que trouxera, ninguém tem mãe portuguesa impunemente.
 
A ideia era subir o trecho inicial, uma estrada de terra, usando o carro. O burrinho empacou na primeira ladeira, avisando que burro não é bode, nem tampouco cavalão-desutilitário-4×4. Isso porque eu só alimento esse burrinho com palha aditivada. O jeito foi encarar tudo a pé. Só oito quilômetros de subida. No ritmo de um guia magrinho de dezessete anos que nasceu ali. Um teste para meu motor 5.8.
 
A primeira ladeira já dava vontade de desistir. E depois do trecho de terra piorava. Quilômetros de trilha quase toda de pedra, mas não estou falando de uma estrada de paralelepípedos, e sim de pedras enormes, você saltando para lá e para cá. Ao chegarmos na Campina propriamente dita eu queria ser resgatado de helicóptero. Mas ele insistiu em prosseguir. Fomos até a nascente de um córrego, o córrego Bananal. Foi a primeira nascente que conheci. Ali é o começo de toda a vida que existe no sertão. Não é só a fonte do córrego, é a fonte de tudo.
 
Nem só de beleza vive o viajante. Sentamos em pedras amplas e confortáveis de frente para as águas, que eu chamei de “Praça de alimentação”. Ali comemos nosso lanchinho. E no meu caso recuperamos as forças para o retorno, mais oito quilômetros. Felizmente a favor da lei da gravidade desta vez.
 
Na subida, vimos muitas flores, que aparecem de forma dramática em meio a uma paisagem seca e pedregosa. Os pássaros resolveram entrar em greve: só consegui fotografar um. Claro que alguns passaram por nós feito os periquitos que batizei de periquitos adeus, porque só me aparecem quando já estão indo embora.
 
Ao me ver bufando e suando, meu jovem guia lembrou de um grupo de velhinhos chineses. Ao vê-los, duvidou que fossem capazes de fazer a trilha. Os danados não só subiram tranquilamente até a Campina. À tarde ainda foram à cachoeira do Curiango, que também exige caminhada. Vou pegar o contato para perguntar que vitaminas estão tomando.
 
Almocei em Botumirim mesmo, no restaurante da Neusinha. Estava um solão e senti aquele soninho depois do almoço. O jeito foi dar tapas no próprio pescoço e no braço para ver se despertava na marra. Também dei umas paradas para fotografar, pois levantar e andar um pouco me ajudava. Sem falar no rock’n’roll.
 
Cheguei em frangalhos no hotel mas lembrei que tinha que colocar gasolina e calibrar os pneus para a viagem de amanhã.
 
Itacambira, terra de Diadorim.
 
Em outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas
 
Foto: M.A., nascente do córrego Bananal, Botumirim, MG, agosto de 2019.