/DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 11 – PÃO COM MANTEIGA E CÉU AZUL

DIÁRIO DO SERTÃO – DIA 11 – PÃO COM MANTEIGA E CÉU AZUL

Brincava com meus alunos perguntando qual é a maior aspiração do homem (e da mulher). Ficavam atônitos quando respondia ser café com leite e pão com manteiga. Parece pouco, mas significa que você está vivo e não há aspiração maior. Ainda mais para viver um dia como hoje.

Desci para escrever às cinco da manhã. Há um samba que diz: “Quero viver como passarinho…” Assim estou: acordo antes do sol, durmo cedo e gosto de voar, ao menos na imaginação. Toni, o dono da pousada, já estava preparando o café. A conversa com ele foi ótima. Nasceu em Itacambira e foi professor de educação física por aqui. Embora tenha trabalhado alguns anos em São Paulo, não aguentou viver lá e retornou.

Conta que há quatro anos a cidade vem sofrendo as piores secas da sua história. Diz que o solo onde foi plantado eucalipto demora cinco anos para se recuperar com uso de muita água. A precipitação pluviométrica de Itacambira já foi de 1500 mm 1200, hoje é de 700mm. A fauna era abundante, havia garças, bandos de marrecos. Em toda a parte, flores, sempre-vivas para todos os lados e que do nada brotava um ponto de água no cerrado.

A missão de hoje era conhecer a igreja por dentro e conversar com o padre sobre os registros de batismo. Mas isso seria somente no fim da tarde, até lá eu poderia passear bastante. Montei no burrinho e fui até a entrada do caminho para a Cachoeira do Curiango. O curiango é um dos mais de cem pássaros mencionados em Grande sertão: veredas. Quando vi o caminho para a cachoeira, uma longa estrada de terra de 12 quilômetros, pensei no burrinho e desisti. Tenho que tratar bem do bichinho. Como Riobaldo diz, homem à pé, sem cavalo, “o sertão engole”.

Parti para a segunda opção, mais perto, a Cachoeira do Rio Encantado, nome que o Rosa adoraria. A estrada de terra era razoável e bem mais curta. Depois há uma trilha tranquila até a cachoeira, não muito longa e sem grandes subidas. Na entrada dela há o Bar do Zeca. Pelo tamanho e boa conservação do estabelecimento, deve ser um pagode e tanto num domingo ensolarado.

Mas neste domingo que começou nublado e frio, a cachoeira é só minha. O lugar é um oásis no meio da rocha. Escalei as grandes pedras, atacando de cabrito para ver tudo de cima. Minhas botas valeram cada centavo. A água é escura por causa do minério, mas é limpa. Muita paz. Como diz Riobaldo: “perto de água tudo é feliz”.

Rosa não dava ponto sem nó. Coloca como local do batistério de Diadorim uma região belíssima, com montanhas, rios, cachoeiras, matas que à época eram abundantes e uma fauna que até algumas décadas atrás era riquíssima. Afinal, Diadorim tem uma sensibilidade especial para a natureza.

No caminho consegui fotografar bem de perto um gavião e na cachoeira fotografei um casal de papagaios e um outro pássaro que não consegui reconhecer. É curioso como sempre encontro gaviões à beira ou até mesmo no meio da estrada. Eles notam o carro e vão embora, é lógico, mas parecem até meio acostumados, porque só levantam vôo quando chego bem perto. Predadores não estão acostumados a ter medo.

Por falar em medo, como bom carioca, nascido e criado em cidade, morro de medo de cobras. Para mim, cada tufo de capim tem uma, pronta a me morder. Para nós, medrosos, o jeito é adotar o lema do Menino: “carece de ter coragem”. Eu tento. O que me move é o desejo de aprender, de entender melhor o universo rosiano.

Estou há onze dias no sertão de Minas e tenho sido muito bem tratado. É nobreza simples deste povo, que ainda sabe o significado da hospitalidade. E há também aquilo que um forasteiro inofensivo como eu representa: a possibilidade da novidade, de uma outra história, para arejar um pouquinho a vida. Na grande cidade o outro ser humano é um estorvo, alguém que está disputando contigo, de alguma forma: na fila do supermercado, no trânsito, até mesmo para andar na rua. Um forasteiro aqui não compete com ninguém, a princípio não causa problema algum. Aqui há espaço, tempo, ar.

À tarde, à espera da missa e do padre, fico escrevendo. Em uma mesa de madeira sólida em frente a uma janela com uma visão do horizonte. Gosta de galo? Então vem morar aqui na Pousada Sempre Viva, onde tem um galo que abre seu vozeirão de cantor de ópera de dez em dez minutos. É gostoso de ouvir. Da janela, dei uma olhada no sujeito. É um galo de penugem bonita, mais vermelha do que as estradas de terra daqui. Parece ter disposição pra namorar todas as galinhas de Itacambira.

O plano é chegar um pouco antes da missa para falar com o padre. Vou lá tomar banho e me preparar. Com licença. Depois do banho, vesti calça comprida pela primeira vez na viagem e coloquei uma camisa polo preta bem séria que uso para dar aulas. Estava uma tarde absolutamente gloriosa e fotografei o céu além de tirar mais umas mil fotos da igreja que para mim simboliza Diadorim, ou melhor, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Afinal, Diadorim só existe para Riobaldo, é um segredo de amor. Riobaldo diz: “Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu.”

Itacambira é aberta à luz, à visão ampla das montanhas que a cercam de perto e ao longe, o olhar da gente respira amplidão. Em Itacambira, ver mais de 180 graus de céu é coisa fácil.

Percebi que a igreja estava aberta e acesa e entrei. Uma mulher de uns trinta anos preparava o templo para a missa. Pedi licença e comecei a explorar os espaços da igreja. Primeiro, o tamanho: se fosse maior seria grande, se fosse menor seria pequena, parece ser do tamanho exato para criar uma atmosfera íntima, envolvente. No site do patrimônio histórico de Minas a igreja é descrita como tendo uma arquitetura pouco usual, que contribui para uma atmosfera teatral.

O altar é lindo, tem algo de magnético na superposição de planos, com um Santo Antonio modesto encimando tudo. Há um púlpito lateral de madeira bem espalhafatoso, cheio de estilo.

A pia batismal onde se deu o batistério de Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins? Uma beleza, toda de madeira, colorida, imponente e alegre, perfeita para derramar água sagrada no pobre e assustado bebezinho lindo que ela devia ser. Sim, eu estou vendo a cena. Se você não vive a literatura você não entende nada de literatura. Nem precisa ser um alucinado como eu.

Fotografei a igreja de cima abaixo, do lado de fora, do lado de dentro apontando para o lado de fora, sempre com a benevolente autorização da auxiliar do padre. Essa vocês não vão adivinhar: o padre é carioca, da Tijuca. Com cerca de quarenta e cinco anos, conta que está há vinte e seis anos em Minas. Boa praça, tranquilo, bem humorado e prestativo. Logo quis me mostrar as mui preservadas múmias que ainda hoje estão sob o chão da igreja. Abriu um alçapão de madeira e eu me senti em um programa do Discovery Channel.

Eu disse mas ele não ouviu: o que me interessava eram os livros de registro de batismo, só para ver como eram e tirar uma foto. Padre Jorge é mais otimista, ele vai tentar achar uma Maria Deodorina. Disse que demora, mas já achou o nome de um antepassado de uma senhora que queria obter a cidadania italiana. No meu caso é a cidadania rosiana.

Depois vi que o Padre Jorge me enviou mais de uma dúzia de fotos do “Registro de Baptisados da Freguezia de Itacambira”, da capa e das páginas, com aquela letra bonita bem século XIX, um tesouro. O incrível é que o padre não entendeu ser uma personagem de ficção e me pediu para eu dar o nome completo e a filiação para ele procurar com calma. Quem sabe ele acha?

Sinceramente, não esperava tanto de Itacambira. Como diria o Rosa, Itacambira transcende. Sou do céu, da luz do dia. Não vou morrer e ficar encantado que não mereço tanto. Quero é sumir num azul estonteante, diadorinesco feito o firmamento desta cidade, que te abraça o tempo todo.

Amanhã vou montar no burrico novamente e partir para Corinto, antiga Curralinho, onde Riobaldo aprendeu a ler, escrever, atirar e outras coisas mais que depois eu conto.

10 de outubro: NOVO Grupo de leitura de Grande sertão: veredas

Fotos: M.A., poço do Rio Encantado;  Itacambira, MG, agosto de 2019