/A Guerra de Tróia contada por uma mulher

A Guerra de Tróia contada por uma mulher

The silence of the girls, da autora britânica Pat Barker, foi um livro que li com prazer e espanto. Prazer de voltar de outra maneira aos gregos e troianos, de tomar contato com uma escritora que consegue manter o interesse do leitor mesmo quando ele conhece os grandes traços da história que vai ser contada. Diga-se de passagem que ela não reescreve Homero,  é absolutamente fiel à Ilíada, embora vá além e complemente a narrativa baseando-se em Eurípides. O espanto, por sua vez, deve-se ao fato de que a imaginação ficcional dela é muito poderosa. E a tarefa a que se propôs era muito difícil: recontar a Guerra de Tróia na voz de uma mulher. Esta mulher é Briseide, uma rainha que vê sua cidade ser saqueada, sua família ser morta e tem que se transformar em escrava daquele que liderou a destruição: o semidivino Aquiles, filho do rei Peleu e da deusa marinha Tétis.

O mais interessante é que ela consegue dar à voz de Briseide um tom que, embora emocional e indignado, foge totalmente do maniqueísmo. Com muita delicadeza, Barker consegue descrever as diferenças entre os homens e até mesmo a relação de respeito e amizade que nasce entre Briseide e Pátroclo o amigo e muito mais de Aquiles. Aquiles aparece de forma muito rica também, por um lado uma máquina impiedosa de matar, um monstro sanguinário. Por outro, um homem sensível que toca a lira, mantém uma relação apaixonada com Pátroclo (descrita com muita beleza em meio a tanto horror) e encontra-se periodicamente com sua mãe nas ondas do mar, quando volta a ser o menino melancólico cujo destino trágico é quase inevitável. Tétis, aliás, é muito bem retratada por Barker em uma cena em que ela sai do mar e avança no acampamento grego em meio a soldados aterrorizados pela presença da deusa.

A solidariedade entre as mulheres escravizadas também é muito bem abordada, mas a autora não perde de vista as diferenças existentes entre elas: as mais jovens, as moças do título, viram concubinas dos principais heróis, até que se cansem delas ou, eventualmente, se casem com uma delas. As mulheres mais velhas ou aquelas que não são consideradas belas o suficiente, são as escravas para todas as funções, muitas vezes obrigadas a catar sua comida entre os restos dos banquetes.

A guerra propriamente dita é descrita de forma tipicamente homérica, ou seja: crua, cheia de imagens impactantes em sua dureza de pescoços cortados, braços arrancados, lanças cravadas no peito. Homero fazia isso para despertar sua platéia em meio a uma longa canção. Barker faz isso para que não idealizemos a guerra. Aqui os heróis homéricos ficam bêbados, vomitam, têm medo e, no caso de Aquiles após a morte de seu  amigo, até mesmo falham na cama. Há ratos, lixo, mau cheiro, sangue, gangrena e mortes bem reais.

O livro não é uma impossível reconstituição histórica, já que não temos elementos suficientes para isso. Não há nem mesmo como provar a existência da Guerra de Tróia. Mas através dele chegamos muito mais perto de imaginar um mundo bem diferente do nosso, ao mesmo tempo em que somos lembrados que a guerra e a figura do herói, muitas vezes celebrados em livros e filmes, tem um outro lado, que não é silencioso, embora seja silenciado.

Em Atenas, havia o costume de uma oração fúnebre feita pelo principal líder político e militar. Após o primeiro ano da Guerra do Peloponeso, Péricles foi encarregado deste discurso. O historiador Tucídides aproveita para fazer do discurso de Péricles um longo elogio ao modo de vida ateniense, à superioridade cultural e política da pólis democrática em contraste com os rivais espartanos. Apenas no antepenúltimo parágrafo é que ele menciona as mulheres:

“Também farei menção às mulheres que ficaram viúvas, expressando o meu pensamento numa breve exortação: toda a sua glória consiste em não mostrar-se inferiores à sua natureza e que se fale delas o menos possível entre as gentes, tanto no seu bem como no seu mal.”

As mulheres sempre tiveram voz, mas estas vozes foram abafadas e não chegaram até nós. O livro de Pat Barker nos ajuda a imaginar como seria ouvi-las.