A culpa foi do concurso de Miss Olimpo, quando Palas Atena, Hera e Afrodite disputaram o direito de ficar com a maçã de ouro onde estava escrita a frase que atiçou a vaidade das três: “para a mais bela das deusas”. Elevado por Zeus à condição de árbitro único, o mortal Páris aceitou a melhor oferta de suborno que recebeu: o amor de Helena de Esparta. Acontece que a moça foi era casada e o marido ficou furioso quando ela foi raptada e levada para Tróia. Eis aí o motivo mitológico para uma guerra que estava no centro da poesia homérica. Na Odisséia – Odysseus era o nome original de Ulisses -, contam-se as peripécias do herói que passou dez anos cercando Tróia e igual tempo para retornar a sua casa e a seu pequeno reino na ilha de Ítaca. O longo poema termina com o retorno de Ulisses e o feliz reencontro com a fiel Penélope, que por ele esperou vinte anos e não aceitou casar-se com nenhum dos cento e oito pretendentes que viviam exigindo que ela escolhesse um dentre eles, sem dúvida para se tornar o novo soberano. Penélope, descrita como “irrepreensível”, “prudente” e virtuosa em todos os sentidos, era também astuciosa e à noite desfiava o manto que tecia durante o dia, pois prometera escolher um dos pretendentes após terminá-lo. Ao chegar em casa, primeiramente disfarçado de mendigo, o muito ardiloso Ulisses massacra os cento e oito insolentes que assediavam sua esposa, seu cargo e suas riquezas. Em seguida, seu filho, Telêmaco, recebe a incumbência de matar as doze escravas que haviam desonrado a casa ao dormirem com os pretendentes.
Atwood, como se fosse uma Penélope pós-moderna, desfaz os fios da narrativa tradicional e põe Penélope a tecer uma outra história. No Hades, habitado pelas sombras dos mortos, Penélope que agora sabe de tudo, reconta a sua história e a história das escravas. Como ela mesma explica:
“Agora que todos os outros perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato. Devo isso a mim mesma. Tive de me esforçar para contar o caso: contar histórias é uma arte menor. Coisa para velhas, andarilhos, rapsodos cegos, criadas, crianças – gente com tempo a perder. Antigamente, as pessoas ririam se eu bancasse o menestrel – não há nada mais ridículo do que uma aristocrata que se mete a artista -, mas a esta altura não me importo mais com a opinião pública. A opinião de quem está aqui: das sombras, dos ecos. Portanto, vou tecer minha própria narrativa.”
Mitologia grega é uma expressão muito enganosa. Jamais existiu um livro único. O que havia eram tradições orais que os rapsodos, os autores de tragédias e comédias, retomavam e reinterpretavam continuamente. Havia diferentes versões para determinados episódios. E obviamente nem tudo chegou até nós. Atwood se vale de alguns relatos alternativos para falar da infância de Penélope, por exemplo.
Mas o que ela sobretudo faz é por em cheque o topos da mulher submissa, silenciosa, fiel até a morte. As aventuras e os feitos de Ulisses são postos em dúvida e toda a brutal crueza do comportamento masculino travestido em coragem e honra. Além da voz de Penélope, escutamos também o coro das escravas:
“Também éramos crianças. Também nascemos dos pais errados. De pais pobres, pais escravos, pais camponeses e pais servos; pais que nos venderam, pais de quem nos roubaram.”
O que temos é uma espécie de mitologia vista pelo avesso. Não se pense, todavia, que há aqui um esquema maniqueísta de homens maus versus mulheres perfeitas. Penélope percebe com clareza defeitos e problemas de ambos. Boa parte do humor do livro está presente na maneira pela qual ela descreve sua prima Helena de Tróia, a quem acusa “por seu egoísmo e sua luxúria depravada”, levando a tantos sofrimentos e horrores por querer ser famosa e destacar-se na multidão.
Como sempre, Margaret Atwood foge de esquemas, nos faz pensar e distribui suas estocadas críticas para todos os lados. É o tipo de livro que mostra o quanto a inteligência pode nos dar prazer.