LENDO COM PRAZER # 006
OS CUS DE JUDAS, de Antonio Lobo Antunes
Antonio Lobo Antunes é hoje um dos mais importantes romancistas da língua portuguesa, imediatamente consagrado após a publicação de Os Cus de Judas em 1987. O autor servira como médico ao exército português que tentava inutilmente manter seu império colonial em África. Escreve um romance que tem uma prosa nada documentária e sim muito elaborada e por isso mesmo bem mais capaz de transmitir a violência e o sem sentido da guerra, bem como o conservadorismo da sociedade portuguesa sob a ditadura de Salazar. Ele desenvolve uma lírica do pesadelo. Para dar uma ideia do estilo de Lobo Antunes, bastará citar um pequeno trecho do livro:
“- Felizmente a tropa há de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados. Os homens da família, cuja solenidade pomposa me fascinara antes da primeira comunhão, quando eu não entendia ainda que seus conciliábulos sussurrados, inacessíveis e vitais como as assembléias de deuses, se destinavam simplesmente a discutir os méritos fofos das nádegas da criada, apoiavam gravemente as tias no intuito de afastarem uma futura mão rival em beliscões furtivos durante o levantar dos pratos. O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia”
(…)
“De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.”