“Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem”
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas
Felizmente, há sempre muita coisa boa para ler. No caso de Herdeiras do Mar, da americano-coreana Mary Lynn Bracht, o que me decidiu por ele, foi uma entrevista com a autora. Nesta, ela reivindica o estatuto de universalidade para a sua obra, negando-se a rotulá-la de literatura feminista. Não que ela seja contra o feminismo, mas ela perguntou à entrevistadora por que os livros de homens, com protagonistas homens e temáticas masculinas são simplesmente literatura, sem adjetivo. De que adiantaria escrever um livro sobre duas irmãs coreanas separadas pela brutalidade e pela violência perpetrada por homens durante a segunda guerra mundial se ele viesse a ser lido somente por mulheres.
Ler esse livro e aqui eu falo na qualidade de alguém pertencente ao gênero masculino, te dá uma dimensão inesperada do sofrimento e do horror experimentado pelas mulheres, no caso pelas irmãs Hana e Emi. Elas viviam numa pequena ilha sul-coreana e pertenciam a um orgulhoso grupo étnico chamado haenyeo. Dentre eles as mulheres eram muito respeitadas e tinham muito poder, graças à importância da sua atividade como mergulhadoras, buscando comida e eventualmente pérolas. Acontece que a Coréia havia sido invadida pelo Japão, que há anos praticava uma pesada política de assimilação cultural, dentre outras coisas obrigando o japonês a ser a única língua ensinada nas escolas. Além disso, como faziam em outros países controlados por eles, os japoneses sequestravam mulheres, algumas muito jovens, para servirem como “mulheres de consolo” nos “bordéis” exclusivos para o Exército nipônico. Ali elas eram estupradas inúmeras vezes por noite, seis dias por semana.
Hana era uma orgulhosa e talentosa mergulhadora haenyeo. Vive com sua mãe, que também mergulha, com seu pai, que é pescador, e com sua irmã menor, Emi, que ainda não está na idade de enfrentar o mar. É uma família pobre, mas feliz, equilibrada. Mas os japoneses já estão rondando e algumas meninas já foram levadas por ele. A mãe encarrega Hana de cuidar de sua irmãzinha e avisa: não deve jamais ficar a sós com um soldado japonês. Um dia, quando Hana está mergulhando, mas sempre mantendo um olho na irmã que brinca na areia, ela vê um soldado japonês se aproximando pela praia. Antes que ele veja Emi, Hana sai nadando desesperadamente e se põe à frente do militar japonês, que depois ficamos sabendo ser o cabo Morimoto. Ele irá raptá-la e ela é enviada de trem para a Manchúria, região também controlada pelo Japão.
A partir daí a narrativa se bifurca em dois tempos e dois destinos. Seguimos as desventuras de Hana e de sua busca por liberdade em 1943. E acompanhamos o esforço de uma senhora muito idosa em 2011, ainda com esperanças de reencontrar a irmã que a salvou de um destino nefasto, ou seja, Emi, a irmã menor, agora uma anciã, tentando fazer as pazes com seu passado.
A escrita é muito sensível mas sem descambar para excessos e a trama é excelente, com muitas reviravoltas, que incluem uma estada de Hana entre os povos da Mongólia. O livro consegue alcançar dois objetivos que raramente andam juntos: a denúncia e a qualidade literária.
Um dos personagens centrais do livro é o mar. Além das haenyeo, nós também mergulhamos em um mundo e em experiências que nos seriam interditadas se não fosse o poder da literatura e daquilo a que damos o nome de arte.
Recomendo com alegria.
Oi!!
Estou querendo muito ler este livro, mas não encontro em nenhum lugar.
Você sabe onde posso comprar?
Obrigada!
Oi, Heloísa, desculpe a demora, só vi seu comentário hoje. O livro foi editado pela TAG-Livros, procure por eles na Internet.