/A mulher do Hermógenes – Parte 1

A mulher do Hermógenes – Parte 1

A MULHER (do Hermógenes) – Parte 1 – (tem spoiler)

Marcos Alvito

O mundo de Grande sertão: veredas é sobretudo um mundo masculino. O amor entre Riobaldo e Diadorim floresce em meio a duas guerras sangrentas marcadas pelo ódio, pela traição, vingança e busca da honra. Temos soldados do governo e bandos de jagunço se enfrentando e perseguindo pelo sertão de Minas e parte da Bahia e Goiás. Dos chefes de bandos, curiosamente nenhum tem mulher, nem mesmo se diz se são casados, viúvos ou solteiros. Joca Ramiro, Zé Bebelo, Sô Candelário, Titão Passos, João Goanhá, nenhum deles sequer demonstra interesse em buscar a companhia feminina. Ao contrário de seus homens, sempre à procura do mais próximo bordel ou de mulheres para serem estupradas, o que já comentamos no texto sobre a relação entre os jagunços e as mulheres. É como se estivessem seguindo o conselho de Hesíodo, poeta grego do século VII a.C. Ele aconselha ao agricultor se abster de contato com mulheres antes de arar a terra. Sendo a terra o polo feminino, o homem precisava de todo o vigor da masculinidade para fecundá-la. Da mesma forma, os os chefes, parecem dirigir sua masculinidade somente à guerra, evitando o contato com o feminino.

Há apenas uma exceção: Hermógenes é o único chefe de bando com mulher e filhos. O próprio Hermógenes, todavia, durante a guerra abstém-se de frequentar meretrizes, gerando comentários maliciosos entre os jagunços:

“— “Será, o Hermógenes também gosta de mulher’s?” — eu careci de saber, perguntei. — “Eh. Aprecêia não. Só se não gosta…” — um disse. —“Quà. Acho que ele gosta demais é só nem dele mesmo, demais, demais…” — algum outro atalhou.”

Só que ele tinha, sim, uma mulher, morando lá longe, em suas terras. É o que diz Diadorim, ao contar a Riobaldo o plano de atravessar o Liso do Sussuarão para chegar de surpresa à fazenda do Hermógenes e sequestrar a mulher e filhos do assassino de Joca Ramiro  para obrigá-lo a lutar:

“Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por lá do Sussuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuía sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá morava sua família dele legítima de raça — mulher e filhos. A gente suprisse de varar o Liso em boas farsas, se chegava lá sem ser esperados, arrastava aquele pessoal por dura surpresa — acabou-se com aquilo!”

Como se sabe, esta primeira tentativa de fazer a travessia do Liso, sob o comando de Medeiro Vaz, terminou em um fracasso retumbante, com perda de homens e animais. A tarefa aparentemente impossível, todavia, será retomada por Riobaldo, ou melhor pelo Urutú-Branco em que ele se transformou depois de tentar fazer o pacto com o Demo nas Veredas-Mortas. O objetivo dele em atravessar o Liso do Sussuarão era o mesmo de antes, surpreender os vigias da fazenda do Hermógenes para raptar sua família:

“Onde chegados na aproximação do lugar que se cobiçava. Dado dia e meio — descrevendo no rumo que certo achamos logo — se havia de ter a casa da raça do Hermógenes! Lei de que íamos dar lá, madrugando madrugada, pegando todos desprevenidos, em movível supetão. Pois o Hermógenes parava longe, em hora recruzando meus antigos rastros, estes rasgos ele não adivinhava. Aí era o meu contrabalanço. Ah! — choca mal, quem sai do ninho…”

O plano dá certo e o Urutú-Branco-Riobaldo o executa com requintes de crueldade, como ele admite: “essas ferocidades assim”. Ao amanhecer seu bando ataca a casa de fazenda no alto do morro aos gritos, matando não somente os capangas do Hermógenes mas também os animais viventes: “até boi manso que lambia orvalhos, até porco magro em beira de chiqueiro”. O que faz lembrar o episódio da Fazenda dos Tucanos. Em seguida, para completar o serviço, tocam fogo na casa e ficam ali, a vê-la arder até o fim. Só à tarde é que vão embora, esgotados mas satisfeitos, tendo alcançado o objetivo:

“A gente traspassava de cansaços, e sobra de sono. Mas, trazida presa, já em muito nosso poder, estava a merecida, que se queria tanto — a mulher legal do Hermógenes.”

Com isso:

“a gente trazia a Mulher; com ela agarrada em mãos, se ia necessitar o Hermógenes a dar combate.”

Esta mulher, cujo nome jamais será dito, impressiona fortemente Riobaldo. Primeiramente, por sua força de espírito, por seu estoicismo diante daquela situação tão adversa, evitando demonstrar sentimentos, aceitando tudo sem nada pedir:

“Aquela mulher sabia dureza; riscava. Ela discordava de todo destino. Assim estava com um vestido preto, surrado muito desbotado; caíu o pano preto, que tinha enlaçado na cabeça, e ela não se importou de ficar descabelada. Deixaram: ela sentar, sentou. Nunca encurtou a respiração. (…) Deram a ela de comer, comeu. De beber, bebeu. A curto, respondeu a algumas duas ou três coisas; e, logo depois de falar, apertava demais a boca fechada, estreitos finos beiços. Mas falava quase assoviado.”

Sem se dirigir a ela, Riobaldo atenta para suas necessidades mínimas:

Adverti que estava descalça, e assim devia de ser fora do uso, decerto por causa da hora e confusão em que tinha sido pega. Se arranjou para ela par de alpercatas.”

Mas se sente intimidado pelo olhar da mulher, que parecia culpá-lo pelos atos bárbaros que ele cometera:

Ela soubesse que não se pertencia com a gente. Aceitou meu olhar, seca, seca, com resignação em quieto ódio; pudesse, até com as unhas dos pés me matava. Enrolou a cara num xale verde; verde muito consolado. Mas eu já estava com ela — com os olhos dela, para a minha memória.”

Aquele breve momento em que se miraram marcou na memória de Riobaldo os traços e a maneira de ser da mulher, a quem ele não diz palavra, nem ela diz a ele:

“Magreza, na cara fina de palidez, mas os olhos diferiam de tudo, eram pretos repentinos e duráveis, escuros secados de toda boa água. E a boca marcava velhos sofrimentos? Para mim, ela nunca teve nome. Não me disse palavra nenhuma, e eu não disse a ela.

Esse silêncio de Riobaldo tem um ingrediente a mais. Ele notara sobre a mulher:

“Devia de ter sido bonita, nos festejos da mocidade; ainda era.”

Por isso…

“Tive um receio de vir a gostar dela como fêmea. Meio receei ter um escrúpulo de pena”

A postura da mulher reforçava este sentimento de culpa de Riobaldo: em meio a um bando de homens, ela ficava ao mesmo tempo escondida (“embiocada”) e em uma atitude permanente de súplica, o que a torna inesquecível para Riobaldo:

“E ela ficava assim embiocada, sem semblantes, com as mãos abertas, de palmas para cima — como se para sempre demonstrar que não escondia arma de navalha, ou porque pedisse esmola a Deus. Lembro dessa mulher, como me lembro de meus idos sofrimentos. Essa, que fomos buscar na Bahia.”

E a mulher não abandonava sua maneira: ao mesmo tempo em que se escondia dos olhares dos homens do bando e evitava conversar, demonstrava auto-controle e conseguia transmitir uma indignação que era interpretada por Riobaldo como fruto do ódio, um ódio que despertava medo no Urutú-Branco:

“Essa mulher, conforme vinha, num definitivo mau silêncio, a cara desaparecida pelo xale verde, escanchada em seu cavalo. Tinham dado a ela um chapéu-de-palha de ouricurí, por se tapar do forte sol baiano. A mais, dela não se ouviu queixa ou reclamação; nem mesmo palavra. O que eu desentendia nela era aquela suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio então era bom, na razão desse sentido: que às vezes é feito uma esperança já completada. Deus que dele me livrasse!”

A Mulher, em maiúsculas como aparece no texto, evita falar com quem quer que seja do bando. Nada pedia: “não dava trabalhos” e continuava se escondendo na medida do possível: “vinha ocultada no xale verde”. Riobaldo, sentia e agia como quem se sabe culpado: tem medo que a mulher adoeça e ordena o “bom tratamento”.

Mas em certo momento a Mulher faz algo inesperado. Quando estão nas terras do avarento fazendeiro do-Zabudo, trancada no quarto-do-oratório, a Mulher manda por ele uma mensagem surpreendente:

“E foi, de repente, ele se chegou com esta, que não se esperava por barato nem caro: — Que a nhã senhora, aquela, suplicava o favor dum particular com o moço chamado Reinaldo…”

A conversa demora um bocado, o que deixa Riobaldo ansioso e preocupado. João Goanhá, meio de brincadeira, indaga se a mulher seria capaz de fazer feitiço (“mandraca”). Enquanto embaralha as cartas, Riobaldo pergunta a si mesmo se a mulher não iria fazer algum pedido a Diadorim. Riobaldo não consegue mais se concentrar no jogo e vai até a varanda onde seus homens dormiam ouvindo o som da chuva.

E nada de Diadorim. Quando sai, Diadorim nada revela a Riobaldo, ou melhor, tenta despistá-lo:

“Diadorim não vinha, não dava de sair do quarto-do-oratório. E, quando foi que veio, não me contou nada. O que disse, comum: — “Ah, ela só chorou mágoas…””

Riobaldo, agora um chefe selvagem e brutal, por orgulho nada pergunta, embora ache que Diadorim estava “escondendo fatos”. Chega a pensar em falar que “não gostava de hipocrisias” mas depois nada diz, pois não poderia “duvidar das ações de Diadorim”, o qual não era “criatura de traição”. Mas fica desgostoso.

Nós também poderíamos ficar desgostosos, já que nunca iremos saber o que Diadorim e a Mulher conversaram. Mas, pelo que acontece mais adiante na narrativa, bem que podemos especular.

Mas isso será o tema da Parte 2