Bourdieu – a cultura popular e o paradoxo dos dominados
Natureza e data do texto:
Passagem do artigo “Os usos do ‘povo'”, publicado no livro Coisas ditas (São Paulo:Brasiliense,1990). Pp. 186-187.
“a ‘cultura popular’ é um saco de gatos…”
“As próprias categorias empregadas para pensá-la, as questões que lhe
são colocadas são inadequadas.”
O exemplo da ‘língua popular”: tanto ela quanto a ‘língua legítima’ só se definem por oposição e, portanto, consagrar a língua dominada “ainda é um efeito da dominação” na qual a língua dominada está para a língua legítima como a natureza para a cultura:
“Aquilo que é chamado de ‘língua popular’ são modos de falar que, do ponto de vista da língua dominante, aparecem como naturais, selvagens, bárbaros, vulgares. E aqueles que, por uma preocupação de reabilitação, falam de língua ou de cultura populares são vítimas da lógica que leva os grupos estigmatizados a reivindicar o estigma como signo de sua identidade.”
O PARADOXO DOS DOMINADOS: (a partir do exemplo da gíria)
“Forma distinta da língua ‘vulgar’ – aos próprios olhos de alguns dos dominantes -, a gíria é produto de uma busca por distinção, porém dominada, e condenada, por essa razão, a produzir efeitos paradoxais, que não podem ser compreendidos quando se quer encerrá-los na alternativa da resistência ou da submissão que comanda a reflexão corrente sobre a ‘língua popular’. Quando a busca dominada de distinção leva os dominados a afirmarem o que os distingue, isto é, aquilo mesmo em nome do que eles são dominados e constituídos como vulgares, deve-se falar de resistência ? Em outros termos, se, para resistir, não tenho outro recurso a não ser reivindicar aquilo em nome do que eu sou dominado, isso é resistência ? Segunda questão: quando, ao contrário, os dominados se esforçam por perder aquilo que os marca como ‘vulgares’ e por se apropriar daquilo em relação a que eles aparecem como vulgares (por exemplo, na França, o sotaque parisiense), isso é submissão ? Acho que essa é uma contradição insolúvel: é uma contradição que está inscrita na própria lógica da dominação simbólica, mas as pessoas que falam de ‘cultura popular’ não querem admiti-la. A resistência pode ser alienante e a submissão pode ser libertadora. Tal é o paradoxo dos dominados e não há escapatória. De fato, é mais complicado ainda, mas creio que isso já é suficiente para embaralhar um pouco as categorias simples, em particular a oposição entre resistência e submissão, com as quais se costuma pensar essas questões. A resistência situa-se em terrenos muito diferentes do terreno da cultura em sentido estrito – onde ela nunca é obra dos mais despossuídos, o que testemunham todas as formas de ‘contracultura’, que, como eu poderia mostrar, supõem sempre um determinado capital cultural. E ela adquire as formas mais inesperadas, a ponto de permanecer quase invisível para um olho cultivado.”